Oito e meio, de Federico Fellini

ottoemezzo_02Ontem, na Sala 8 do Espaço Itaú do Bourbon Country em Porto Alegre, teve início a 8 ½ Festa do Cinema Italiano com a apresentação, em gloriosa cópia renovada e digitalizada, do clássico de Federico Fellini Oito e meio (8½). A programação da Festa pode ser conferida aqui.

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Rever Oito e meio (1963) em impecável projeção digital é uma grande alegria. Para quem não sabe, Oito e meio é um filme autobiográfico de Federico Fellini cujo foco está no bloqueio criativo de um diretor de cinema, alter ego do próprio diretor. Este já tem os atores contratados e disponíveis, o produtor, o dinheiro do mesmo e a equipe, só lhe faltam as cenas e a história. Só. Muitas das cenas do filme foram retiradas da vida do próprio Fellini, outras, de seus sonhos e inseguranças. O título é uma referência à carreira do próprio, que até então já havia dirigido sete filmes e meio, sendo este o de número 8,5º.

Uma das imagens do sonho da sequência inicial
Uma das imagens do sonho da sequência inicial

O cineasta chama-se Guido Anselmi. Ele está esgotado e resolve se internar em uma estação-de-águas para buscar inspiração. Anselmi é conhecido por fazer filmes desencantados, sem esperança, e ele próprio parece tomado destas perspectivas em relação a si mesmo. Da mesma forma, Fellini passara por um desses bloqueios, só que utilizou uma estratégia engenhosa para contornar o que estava sentindo: narrou a própria dificuldade. Então, Oito e meio é metalinguístico, usa a linguagem do cinema para comentar um filme que parece que não vai acontecer. Só que muita, mas muita coisa ocorre na tela enquanto os personagens perguntam ao diretor o que farão.

Como disse, a ideia foi concebida em meio às dificuldades do próprio Fellini com um roteiro que simplesmente não andava. No caso real, a confiança em Fellini era tão completa que a produção — cujo roteiro nem existia — já tinha recebido financiamento, elenco principal e equipe técnica. Então, em vez de comunicar aos profissionais o cancelamento, o diretor criou uma original, rarefeita e simbólica história sobre um diretor de cinema sob bloqueio criativo. E foram realmente notáveis a liberdade de criação e os recursos disponibilizados pelos produtores. Assim, os fantasmas do diretor ganharam corpo e voz num filme de narrativa caótica, com um vasto exército de atores e figurantes, mas com cenas altamente estudadas. Várias delas parecem verdadeiros balés realizados em frente às câmeras. Todo um mundo onírico é mostrado paralelamente à realidade.

Fellini demonstra a seu alter ego Mastroianni como fazer
Fellini demonstra a seu alter ego Mastroianni como fazer

É um filme incrivelmente belo e confuso. O olho de Fellini parece mover-se impacientemente sobre cenas altamente plásticas, sem se fixar. Estamos realmente assistindo a uma crise. Guido Anselmi — interpretado por Marcello Mastroianni — é vazio e parece não ter o menor respeito por si e pela produção. Parece arrependido do que está causando, mas não consegue ou não quer fazer a máquina do cinema parar. O resultado é um filme todo quebrado em diversos episódios soberbos.

Também é uma história de culpa, de uma vida compartimentada onde a mentira está presente em todos os escaninhos. Ele diz aos produtores que tem um filme, quando na verdade não tem. Diz aos atores que o roteiro está pronto, quando não escreveu nada. Tenta apaziguar sua mulher — Anouk Aimée, lindíssima –, enquanto tem um caso.

Na cena da mesa do café, Guido está com sua esposa enquanto a amante, Sandra Milo, parece mostrar fisicamente a falta de direção do filme. Toda torta, suas pernas voltam-se para um lado, mas ela vai para outro… (Nota: Milo era a amante de Fellini na vida real). Como se não bastasse, ele parece criar uma mulher de sonho, a inatingível Claudia, vivida por uma inacreditável Claudia Cardinale.

Cardinale: beleza ideal, inacreditável
Cardinale: beleza ideal, inacreditável

Tudo isso vai acontecendo em uma crescente e estranha atmosfera de desencanto circense, um clima do qual apenas Fellini tinha a fórmula. A incerteza sobre o filme, a angústia, parecem não importar muito. Valem mais o riso e a reflexão. O final é esplêndido ao mostrar a vida como uma festa. Após formar uma imensa roda com todos os figurantes e equipe, espécie de melancólica despedida (a vida é triste, mas também é uma festa a ser compartilhada), Fellini cria um dos mais emocionantes momentos do cinema quando Guido e sua esposa, reconciliados, aderem à dança que Guido não dirige mais, passando a fazer parte dela.

Guido entra na dança da vida, confundindo-a com a arte
Guido entra na dança da vida, confundindo-a com a arte

 

2 comments / Add your comment below

  1. FELLINIANA
    by Ramiro Conceição
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    Oito e meia. É noite.
    Ou talvez seja o 8 ½:
    o poema do poeta… sem palavras.
    Tudo é melindroso e confuso nesse
    melado fuso sujo do mundo…
    .
    Do quarto andar da torre das metáforas,
    vejo na calçada a castanheira que ao dia
    foi porto aos bem-te-vis. Mas… É noite.
    .
    Ao pé das castanhas na via pública,
    meninas e meninos fazem poses…,
    a desconhecer que o belo  não as tem.
    Não há putas e nem há sinal de gigolôs.
    Tudo se resume num intervalo de aulas
    duma noturna escola capixaba de Vitória.
    .
    Mas convenhamos que é uma escola estranha,
    pois boa parte do ano não passa dum casarão
    fechado, quase abandonado: não há placa, nem
    outdoor a iluminar a fachada… É, não há nada.
    .
    Em meses determinados, o mato é podado;
    a pintura retocada; e lâmpadas são fixadas.
    O resultado é que, às vezes, à noite, a rua
    fica prenha de motos e de carros ancorados.
    .
    Mas que raio de escola é essa?
    Quem são eles que parecem já formados?
    Não resisti: fui ao porteiro do condomínio
    e finalmente descobri: é um desses cursos
    preparatórios aos concursos públicos;
    é um nicho de mercado: um ninho
    de passarinhos destinado ao abate.
    .
    Ah…, sim, agora compreendi:
    é uma pedagogia à educação
    de como, em pouco tempo,
    colocar burrinhos à sombra.

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