O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévitch

O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévitch

Nestes dias, falar em homem — mesmo que em sentido geral — talvez seja inadequado para o título de um livro narrado em sua maioria por mulheres, mas OK. Aleksiévitch é uma jornalista que se dedica a compilar entrevistas de pessoas, formando romances-corais. Os depoimentos de sucedem, sendo maravilhosamente tratados como literatura pela autora. O resultado aqui é de uma cacofonia viva e profundamente comovente de vozes russas para quem a era soviética era tão essencial quanto sua natureza.

O fim do homem soviético é um mosaico de vozes de todas as regiões da antiga União Soviética que revelam, através de longos e tortuosos monólogos, como era realmente viver sob o comunismo. Para uma nova geração de russos nascidos após a Segunda Guerra Mundial, a era de Mikhail Gorbachev, perestroika e glasnost, a tentativa de golpe, o colapso da União Soviética e as subsequentes crises econômicas sob Boris Yeltsin anunciavam uma sensação de liberdade, mas muitos russos ficaram desiludidos e zangados. O que o socialismo agora deveria significar para o antigo Homo sovieticus, agora pejorativamente chamado de sovok? (“lata de lixo”)? Em segmentos que ela chama de “Sobre o ruído das ruas e as conversas na cozinha”, Aleksiévitch transcreve esses monólogos e conversas gravadas em uma prosa sinuosa de fluxo de consciência. Pessoas de todas as idades delineiam eventos com perplexidade e fúria, terminando em um novo mundo assustador onde o capitalismo de repente era bom com o “dinheiro tornando-se sinônimo de liberdade”. Os suicídios que Alexievich narra são de cortar o coração, assim como o sentimento reiterado de “ingenuidade” do povo diante da decepção, a resistência do anti-semitismo, a guerra nas ex-repúblicas soviéticas, a fome e as terríveis condições de vida. A autora captura essas vozes formando um documento de valor inestimável. É literatura profundamente significativa como história.

Você pode abrir O fim do homem soviético em qualquer lugar. As histórias vêm de uma enxurrada de vozes: médicos, escritores, trabalhadores, ex-funcionários, soldados, vêm de todos. Fazendo poucas intervenções, a autora dá espaço a essas pessoas. Quando ela insere um comentário, está entre colchetes e muitas vezes são muito comoventes. Uma carga de catarse está em exibição. As pessoa realmente falam para Aleksiévitch.

A maioria das histórias são sobre as promessas das eras Gorbachev e Yeltsin. Em vez de tolerância e oportunidades, as pessoas foram apresentadas a uma forma brutal de capitalismo, que dividia as pessoas em vencedoras e perdedoras. Em vez de paz, após o desmembramento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1991 em estados independentes, ressurgiram ódios raciais cruéis. Este livro está cheio de saudade dos velhos tempos, por mais terríveis que possam ter sido. Parte do anseio é pela antiga vida intelectual da Rússia. “Os livros eram a vida para nós. Eles eram todo o nosso mundo. Agora tudo é o dinheiro”.

Um homem comenta: “Saímos de nossas cozinhas e fomos para as ruas, onde logo descobrimos que, afinal, não tínhamos nada – o tempo todo estávamos apenas conversando. Pessoas completamente novas apareceram, esses jovens de anéis de ouro e blazers magenta. Havia novas regras: se você tem dinheiro, você conta — sem dinheiro, você não conta. Quem se importa se você leu tudo de Hegel? ‘Humanidades’ começou a soar como uma doença.”

Aleksiévitch nos leva a muitas cozinhas que já foram a alma da vida dissidente russa. “Para nós, a cozinha não é apenas onde cozinhamos, é a sala de jantar, o quarto de hóspedes, o escritório”, diz a autora. As cozinhas são onde “podíamos criticar o governo e, o mais importante, não ter medo, porque na cozinha estávamos sempre entre amigos”. Hoje, a cozinha russa são muitas vezes lugares sem alma, cheios apenas de imitações de aparelhos de última geração. Menos conversa acontece. Menos comida sai de lá também.

Na introdução a este livro, Aleksiévitch escreve sobre seu método. “Não pergunto às pessoas sobre socialismo”, diz ela, “quero saber sobre amor, ciúme, infância, velhice. Música, danças, penteados. A miríade de detalhes de um modo de vida desaparecido.”

Recomendo.

Svetlana Aleksiévitch (1948)

Svetlana Aleksiévitch foi detida em Berlim, suspeita de carregar uma bomba…

Svetlana Aleksiévitch foi detida em Berlim, suspeita de carregar uma bomba…

A Fundação Olga Tokarczuk informou no dia de hoje:

Senhoras e Senhores,

Ontem, Svetlana Aleksiévitch devia ter chegado a Wrocław antes da meia-noite. No final da noite descobrimos que ela estava detida no aeroporto de Berlim, aparentemente porque ela carregava uma bomba… Ela só foi autorizada a sair depois que o avião partiu. A bomba não foi encontrada, claro. Os organizadores do evento Aleksiévitch e Tokarczuk Protest enviaram uma missão de resgate noturno para Berlim por terra e a Prêmio Nobel já está em Wrocław.

No carro, ela deu uma pequena entrevista à colaboradora da Fundação Olga Tokarczuk e à Wrocław House of Literature, a tradutora Janie Karpienko. Leia a entrevista da vencedora do Prêmio Nobel na situação mais surreal que tanto os organizadores do evento de hoje como a própria escritora já encontraram. Antes do exaustivo dia de Svetlana em Wrocław, esperamos que ela consiga ao menos descansar um pouco. Prometemos também que não vamos deixar essa situação ultrajante sem explicação de parte das instituições responsáveis pelo ocorrido.

Svetlana Aleksiévich ao finalmente chegar em Wrocław.

O que aconteceu no aeroporto de Berlim?

— Uma história de Lukashenko. No aeroporto em Berlim, durante a verificação de segurança, coloquei minhas bagagem de mão na esteira. Então, tudo parou para nova verificação. Pensei que isso que acontece às vezes. Talvez eu tivesse esquecido de tirar um perfume ou qualquer outra coisa pequena. Fiquei muito tempo esperando. Finalmente, um homem do aeroporto chegou e disse que ia abrir minha mala. Queria ajudá-lo, mas ele mesmo abriu. Quando ele abriu a mala, ficou descontrolado, muito irritado… Eu fiquei muito curiosa sobre o motivo de ele ter reagido daquela forma. Disseram-me que eu teria que esperar. Eu não sabia o que estava acontecendo. Fiquei esperando e esperando… Reclamei que ia perder o avião, mas eles não reagiram. Depois de muito tempo, uma senhora do serviço do aeroporto se aproximou e ficou ao meu lado. Minha pergunta foi: “O que aconteceu?”. Ela respondeu “Estamos à espera da polícia”. Fiquei surpresa – “Por que a polícia?”. Pensei que ela gostaria de ver as minhas coisas outra vez. Mas ela não deixava ninguém chegar perto delas. Então veio um policial, apontou para minha mala e disse tinha uma bomba nela! Eu respondi que eles deviam ser loucos. Depois, outro homem chegou cheio de aparelhos e verificou novamente. Pediram que eu descarregasse tudo o que havia na mala. Eles ficaram conversando por um tempo… E disseram que tudo estava OK. Verificaram a minha segunda bolsa onde estavam o meu tablet, alguns livros e um caderno que leveva comigo. Olharam tudo, não havia bomba e me liberaram. Nem me pediram desculpas.

Ninguém disse nada?

— Nada. Já era tarde, o aeroporto estava quase vazio. Eu nem sabia para onde ir porque já tinha perdido o voo. Queria obter informações, perguntar se poderia pegar outro voo, mas não achei ninguém. Liguei para meu agente e um amigo veio me buscar. Depois houve outro problema com a bagagem principal. Não a encontrávamos. E bem — tudo estava fechado. Finalmente encontramos um ponto de recolhimento de coisas extraviadas. Uma mulher veio falar conosco — era uma russa de Chelyabinsk que me reconheceu. Ela prometeu escrever uma queixa sobre a situação. De qualquer forma, recuperei a minha bagagem. Só aquela mulher russa se desculpou. Ninguém além dela.

Como você analisa essa situação?

— Essas pessoas sentem uma autoridade sem limites e sabem que não haverá consequências pare elas. No entanto, nunca tinha visto nada assim antes.

Como te sentes agora, depois de uma viagem de carro noturna, já em Wrocław?

— Um pouco cansada, mas está tudo bem. É uma cidade muito bonita e gosto dela.

Visitando a zona evacuada de Tchernóbil

Visitando a zona evacuada de Tchernóbil

Eu sempre incomodei a Elena para saber. Ela mudava de assunto, dizendo que doía falar naquilo. É que gosto de saber tudo sobre a pessoa que amo. Desde o nascimento, todo esse passado me parece puro encantamento, ainda mais se pensar que qualquer alteração — ou decisão tomada — poderia ter desviado Elena de mim. Afinal, ela veio de muito longe. Porém, a história de Tchernóbil não tem nenhum encantamento e devo ser apenas um cara chato.

Não há magia no acidente de Tchernóbil e sua relação com a cidade bielorrussa de Moguilióv, onde Elena nasceu e viveu até o final da adolescência. A cidade fica próxima do acidente e os ventos costumam ir para aquele lado. Quando li o livro de Svetlana Aleksiévitch, Vozes de Tchernóbil, soube que tinha razão — a cidade fora atingida fortemente. Mas ela me contava poucas coisas, na verdade uma coisa só, um fato que ocorrera no dia 1º de maio de 1986. Ignorantes do que estava ocorrendo, a população participou do desfile tradicional da data. Todos foram convocados para o mesmo e ninguém fora avisado de qualquer perigo. O acidente nuclear acontecera cinco dias antes, em 26 de abril. Um casal de professores que costumava ouvir a Voz da América foi para o evento munido de guarda-chuvas. Não chovia e todos riram deles. Depois de alguns dias, apareceu uma nuvem escura que passou lentamente sobre a cidade e a grande chaminé de uma famosa fábrica de tecidos sintéticos pegou fogo sem faísca nenhuma… Depois ela viu a carcaça resultante. Todos estavam assustados com a reação química entre a chaminé e a nuvem.

Quando eu estava lendo Vozes de Tchernóbil, a igualmente bielorrussa Aleksiévitch falou numa professora de arte, alguém muito inteligente e capacitada, e logo tive a certeza de que Elena a conhecia. Perguntei e ela me trouxe fotos onde estavam a tal professora, sua mãe e a própria Elena. Em pleno início dos anos 80, eles pareciam formar uma comunidade de hippies tardios. As fotos eram sempre de grupo, improvisadíssimas, e Elena aparecia como uma pré-adolescente rindo no meio de uns caras barbudos e de umas mulheres 100% ripongas.

Só ontem, inesperadamente, apareceram outras fotos. A excelente pianista e professora responsável pela turma da Elena, formada exclusivamente por futuras musicistas, era casada com um policial de alto cargo em Moguilióv. Por solidariedade e para demonstrar mobilização, ele e sua esposa organizaram uma excursão à área evacuada. Fariam uma apresentação de canto para os policiais que vigiavam o local, impedindo o acesso e os roubos de casas e maquinário. Ignorando o perigo e pensando em fazer uma coisa boa, as meninas aceitaram o convite. Era perigoso, mas elas queriam dar alento àquelas pessoas que se sacrificavam. E foram cantar na zona evacuada em Brahin. Na volta, o marido da professora e os policiais que acompanharam o grupo receberam uma significativa promoção e privilégios apenas concedidos aos liquidadores de Tchernóbil. As estudantes não ganharam nada.

Ficaram lá três dias. Ela disse que cantaram, caminharam, se emocionaram, riram e dançaram com os milicianos. Um deles se apaixonou por ela e pediu-lhe o endereço. Trocaram cartas, mas nunca mais se viram.

Um dia, falei que queria registrar a história de sua relação com o acidente. Faria algo ao estilo de Aleksiévitch, mais uma voz de Tchernóbil. A coisa não andou. Não insisti.

Hoje a Elena está muito bem, basta olhar a linda mulher que é. Mas tem saúde frágil e teme que a radiação abundante venha a se manifestar um dia, se já não aconteceu. Ela fala em esquecer o passado, mas, repito, sou muito chato. Ela concordou que eu mostrasse as fotos de ontem.

Na zona evacuada. Elena é a menina que está no centro, com aquele blusão supostamente muito colorido, obra de D. Klara, sua mãe.
Na zona evacuada. Elena é a menina que está no centro, com aquele blusão presumidamente muito colorido, obra de D. Klara, sua mãe.
Elena bem no meio, cantando com um olhar meio estranho.
Elena bem no meio, cantando com um olhar meio estranho.
As meninas cantando. Elena é a segunda à direita.
As meninas cantando. Elena é a segunda à direita.

A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch

A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch

A guerra não tem rosto de mulherA guerra não tem rosto de mulher é mais um excelente produto do curioso, trabalhoso e eficiente método de Aleksiévitch fazer literatura. O livro é formado de pequenas introduções da autora e de trechos de entrevistas que são retrabalhadas, classificadas e ordenadas. O efeito é o de um torpedo, cheio de dor e humanidade. Os relatos são curtos, vindos todos de mulheres soviéticas que lutaram na 2ª Guerra Mundial. Suas funções são de francoatiradoras, enfermeiras, lavadeiras, médicas, pilotas, cozinheiras, artilheiras, comandantes, tanquistas, sapadoras, enfim, elas estiveram em todos os gêneros de trabalho de soldados em guerra. Matavam e eram mortas. E cada sobrevivente tem uma história diferente e pessoal para contar. A morte, é claro, é onipresente. Todos os relatos envolvem sofrimento, mas também há histórias de amor, de coqueteria e de pequenas alegrias.

Todos sabem que a história é escrita pelos vencedores, mas é pior do que isso, ela é escrita por homens e apenas sobre homens. As mulheres são apenas enfermeiras? Nada disso. E a escolha do feminino no livro de Aleksiêvitch é fundamental. O masculino ama as ações honrosas, a narrativa oficial, enquanto que as mulheres são mais afeitas às “anotações da alma” e aos sentimentos. Nada de estatísticas, de narração de batalhas, apenas detalhes do que é viver dentro de um conflito como aquele..

Isto é, depois de sete anos de entrevistas e de quilômetros de cassetes gravados, Svetlana Aleksiévitch não escreveu um livro somente sobre a guerra, mas principalmente sobre o comportamento do ser humano na guerra, perseguindo menos “os grandes feitos e o heroísmo, mas aquilo que é pequeno e humano”.

A originalidade de Aleksiévitch está em nos descortinar as mulheres não reconhecidas e que participaram ativamente de uma guerra crucial do século XX. Os relatos são crus e violentos, dando-nos uma realidade despida de heroísmo. O ambiente parece muito artificial para aquelas mulheres que usavam cuecas — por falta de calcinhas –, não menstruavam e trabalhavam dias sem dormir. O paradoxo entre ser mulher e soldado é um dos principais pontos dos relatos.

Não é um livro tão bom quanto Vozes de Tchernóbil — os fatos narrados em A guerra não nos causam as cada vez mais terríveis surpresas de cada capítulo daquele –, mas a autora bielorrussa nos dá uma notável contribuição para o entendimento do que foi o dia a dia do maior conflito armado de todos os tempos.

Svetlana Aleksiévitch
Svetlana Aleksiévitch

Tradutora de Svetlana Aleksiévitch, Sonia Branco vira ‘sócia’ da bielorrussa

Tradutora de Svetlana Aleksiévitch, Sonia Branco vira ‘sócia’ da bielorrussa
Sonia Branco e Svetlana Aleksiêvitch: "Nosso livro"
Sonia Branco e Svetlana Aleksiévitch: “Nosso livro”

Encontro entre autora e tradutora durante a Flip rendeu agradecimentos e dedicatória especial. Escolhida para verter obras da bielorrussa, Sonia Branco relata experiência de noites debruçadas sobre obras “densas e envolventes”.

Da Gazeta Russa

A Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch, que esteve na recente edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), é uma escritora de muitas vozes. E, se uma delas fala português, isso se deve a Sonia Branco. No evento, além de terem a oportunidade de trocar algumas palavras, o encontro rendeu uma “parceria” inesperada: em sua dedicatória, a bielorrussa agradece pelo que chama de “agora nosso livro”.

“Foi uma emoção muito grande. Jamais imaginaria que isso fosse acontecer”, conta Sonia. A voz brasileira da Nobel de Literatura, aliás, também é uma mulher de muitas faces.

Com nome de heroína de Dostoiévski – aliás, uma paixão de ambas –, Sonia Branco não para por aí. É professora de Língua e Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora e mestra em Teoria Literária, tradutora com vasta experiência, e um dos maiores nomes em estudos eslavos do Brasil.

O contato com Svetlana aconteceu por acaso. Após o anúncio de que a bielorrussa seria a Nobel de Literatura de 2015, iniciou-se uma corrida para lançar seus livros no Brasil. E isso passava pela escolha de tradutores para sua obra – densa, humana, mas contemporânea e de fácil acesso.

Logo, Sonia Branco foi contatada e, durante alguns meses, abriu mão de finais de semana, noites e feriados para dar corpo à versão brasileira de “Vozes de Tchernóbil”, um dos livros mais importantes de Svetlana Aleksiévitch. A obra sobre a catástrofe nuclear foi uma das três escolhidas para apresentar a bielorrussa ao Brasil, juntamente com “A Guerra não tem rosto de mulher” e “Tempo de segunda mão”.

“Passei meu Natal com a tradução. Chorei muitas vezes com o texto, me envolvi demais. É um livro denso e que precisa de um cuidado especial”, diz Sonia. O trabalho evoluiu e, enfim, a tradução pronta, e livro já está nas prateleiras. Mas a glória maior da brasileira ainda estaria por vir.

A participação de Svetlana na Flip era uma grande oportunidade para Sonia Branco conhecê-la. Mas, sem ingressos garantidos, restou comprar os bilhetes – como qualquer mortal – e aguardar uma brecha na agenda da bielorrussa. A chance aconteceu logo após a participação de Svetlana na Tenda dos Autores – evento principal da feira. Mesmo com a enorme fila para autógrafos, Sonia conseguiu trocar algumas palavras com a escritora.

E, ainda mais importante do que um “convite” para Minsk, foi a dedicatória singela e generosa feita por Svetlana Aleksiévitch, que escreveu no exemplar de Sonia “obrigado pelo, agora, NOSSO livro”. Assim, a brasileira se tornou “sócia” de um Nobel de Literatura. E, paralelamente, Svetlana Aleksiévitch ganhou uma nova voz feminina e bem brasileira.

Svetlana Aleksiévitch, a Nobel que gosta de ouvir

Svetlana Aleksiévitch, a Nobel que gosta de ouvir

Do publico.pt

A Prêmio Nobel da Literatura 2015 foi a estrela da Festa Literária Internacional de Paraty. É uma mulher cansada das guerras e das tragédias e que encontrou um novo tema para o próximo livro: o amor.

SvetlanaAlexievichMain“Sobre a guerra não vou conseguir escrever mais. Disso tenho a certeza”, atirou Svetlana Aleksiévitch do palco da Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Em resposta, ela ouviu o silêncio na plateia de 850 lugares que na noite de sábado abarrotava os assentos. Lá fora, uma multidão que não conseguiu bilhete juntou-se, sentada ou de pé, em frente ao telão gigante onde é transmitido gratuitamente o que se passa no palco principal: mais de 1800 pessoas, segundo números da organização. Ao mesmo tempo, decorria à porta da tenda uma manifestação contra a ausência de autores negros na FLIP e contra o presidente interino Michel Temer. Momentos antes, também um grupo de mulheres se passeara na sala, em silêncio, segurando lenços brancos onde se lia “Ana Cristina Cesar era gay”, em protesto contra a abordagem da FLIP à autora homenageada desta edição.

Em russo, com a sua voz pausada, o inconfundível cabelo ruivo, e enfiada num fato salmão, a Prêmio Nobel da Literatura de 2015 continuou a explicar, numa conversa conduzida pelo jornalista e editor da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, Paulo Roberto Pires, que “os homens não gostam muito de ter mulheres na guerra, principalmente mulheres que escrevem”.

A autora de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (Companhia das Letras) recordou que estava na guerra do Afeganistão a fazer o seu trabalho de jornalista, acompanhada por um coronel bem cínico, quando lhe mostraram uma arma que lhe pareceu muito bonita: “É horrível dizer isto, mas era mesmo uma arma bonita, moderna, via-se que quem a construiu passou bastante tempo a pensar na melhor maneira de matar outro homem.” O coronel olhou para ela de cima para baixo e respondeu-lhe que sempre que a dita arma era disparada era preciso depois raspar do asfalto, com uma colher, o corpo abatido.

Algum tempo mais tarde, num dia em que faziam mais de 40 graus, o mesmo coronel levou-a a um local onde a arma tinha sido utilizada para matar os seus soldados, dos quais tentavam recuperar os corpos para enviar alguma coisa às famílias. “Eu tenho cultura russa, acredito que temos de ser verdadeiros até ao fim. Mas não sou uma super-mulher, sou um ser humano normal. Quando lá cheguei com aquele calor e vi aqueles pedacinhos de corpos espalhados pelo chão, desmaiei. Mas ao mesmo tempo tinha de voltar para casa e escrever aquilo tudo. E depois alguém vai perguntar: como é que sobreviveu no Afeganistão?”.

Pausa para respirar fundo antes de continuar: “É muito difícil responder. Não sei como sobrevivi a essas experiências, sofri muito, não consigo sequer visitar lares de crianças abandonadas. Antigamente eu ia para os hospitais onde havia homens sem braços, sem pernas, hoje em dia não consigo. Mas sei que o me salvava, o que me salvou: é que eu amo a vida. Temos a que nos apegar.”

O amor, “a única saída”

A Nobel bielorrussa, agora com 68 anos, sabe que nunca mais voltará a esses lugares. “Não fui à Tchechênia porque não podia ver mais um ser humano assassinado por outro ser humano que não gostou do que ele pensava, não conseguia sequer imaginar ver um corpo morto. Tudo o que quis dizer a respeito das guerras já o disse nos meus livros, e como autoproteção estou à procura de novas ideias.”

O novo livro que está a escrever, revelou, tem por tema o amor. “Mas também há uma certa guerra nisto, não posso dizer que esse assunto é muito fácil de tratar.”

Apesar de ter no seu currículo livros como Vozes de Tchernóbil, Svetlana diz que não coleciona tragédias. “Na verdade há muitas tragédias, mas ao mesmo tempo há crianças, flores, amor, pôr-do-sol… Na vida, há momentos em que se consegue ganhar força e continuar a enfrentar as dificuldades. Acho que tenho de passar, naquilo que faço, essa beleza. Os meus livros, mesmo convivendo com a tragédia, falam de amor, que é a única saída para nós.”

Além de Tchernóbil, Paulo Roberto Pires lembrou também a tragédia de Mariana, no Brasil, onde a ruptura de duas barragens operadas pela empresa mineira Samarco provocou um desastre ambiental. Réplica de Svetlana: “A humanidade ocupou o lugar errado dentro da natureza. É muita ingenuidade usar a força contra ela. Os índios no Brasil conhecem melhor a natureza do que nós, hoje em dia, com todas as tecnologias. O mundo precisa de uma nova filosofia de vida, se não esse progresso vai levar à nossa autodestruição.” E ainda: “Não acredito que o homem venha a ser salvo pelo homem racional, mas por um homem que venha a ter uma visão ampla e não veja só o progresso. Na nossa civilização só temos o homem-consumo. Daqui a alguns séculos, vão dizer o quanto éramos primitivos.”

Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch

Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch

vozes-de-tchernobilA literatura de Svetlana Aleksiévitch é muito singular. Ao mesmo tempo que é documental, tem altíssima qualidade, fenômeno mais comum em ficcionistas. Aliás, a produção da escritora bielorrussa é única. Como boa jornalista que é, ela entrevista e abre aspas. Na verdade só faz isso, mas unifica os discursos sob um rigoroso filtro literário que dá forma e unidade a seus livros. Há anos divido com estudiosos a convicção de que a ficção é a única forma narrativa que roça a realidade. Aleksiévitch abala tal convicção. Talvez fosse melhor dizer que o texto literário — jornalístico ou não — é o único gênero de escritura que arranha os fatos. O resto são dados, contextualizações, circunstâncias, mas não é informação real. O habitat desta, desculpem, é o bom texto. E a diferença da escritora bielorrussa para seus pares é que seu texto não é apenas bom, é de um virtuosismo arrebatador.

Aleksiévitch não é uma escritora de eventos comuns nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que ela nos oferece é todo um mundo emocional. Vozes de Tchernóbil é uma obra coral. São centenas de depoimentos, um enorme painel de vozes reais, cada uma delas peça de um mosaico estarrecedor. É uma espécie de romance coletivo ou romance de evidências. As pessoas falam de si mesmas formando um contexto de pesadelo onde a radiação paira invisível, como um deus terrível, implacável. Vozes é uma montanha de pequenas histórias que recria a grande história, provando que a verdade está distribuída entre seus vários participantes e que a vida individual é mesmo algo ininteligível.

Para mim, é muito difícil escrever uma resenha que não seja gonzo. Tenho que participar dela, pois minha mulher conhece pessoalmente alguns dos entrevistados. Ela me trouxe fotos de uma delas, uma professora da Escola de Arte e Cultura de Moguilióv. Ou seja, vi fotos de minha Elena, de sua mãe e de uma pessoa “de Tchernóbil” tiradas poucos anos antes da explosão do reator. Mais: nestas vozes do povo bielorrusso reconheço várias posturas e piadas — sem nenhuma relação com a tragédia — que noto na casa onde moro hoje e onde amo ficar.

(Aliás, paralelamente, neste blog, tenho enorme vontade de acrescentar uma voz ao relato de Aleksiévitch).

A literatura da bielorrussa dialoga em vários níveis com a música. Há polifonia nos “corais” e, como na música, o mesmo tema é retomado diversas vezes sob diferentes abordagens. Lendo Vozes, pensei várias vezes nas Variações Goldberg de Bach, onde o tema é criativamente explorado de todas as formas possíveis. Cada voz que entra tem uma visão diferente, de onde só podemos concluir que há 7 bilhões de diversas perspectivas (ou cegueiras) em nosso planeta. Mas a união de todas elas parece tornar inequívocos os fatos e suas consequências pessoais… Olha, só lendo.

Aleksiévitch escreveu sobre Tchernóbil, sobre a Guerra do Afeganistão, sobre as mulheres remanescentes da 2ª Guerra Mundial e sobre o fim do homem soviético. É claro que é muito combatida em seu país e na Rússia, pois seus temas são sempre as pessoas comuns sofrendo sob o Leviatã. Mas não é surpreendente que agora vá escrever sobre o amor, porque o afeto, além da radiação, é onipresente como pano de fundo de Vozes.

Recomendo fortemente e nem precisaria. Afinal, sei de nove amigos que estão lendo o livro nestes dias. Svetlana Aleksiévitch diz que sua pátria é a Bielorrússia, terra de seu pai e onde viveu toda sua vida, mas que também é ucraniana, onde ela e sua mãe nasceram. Só que sua verdadeira pátria é a grande cultura russa, da qual autenticamente faz parte .

(Livro comprado na Ladeira Livros).