Atrás do balcão da Bamboletras (VII)

Atrás do balcão da Bamboletras (VII)

Chega um cliente e coloca estas duas edições lado a lado no balcão e pergunta: “Qual é o correto? O Jogador ou Um Jogador?”. Eu, que por sorte sou casado com uma mulher que tem o russo como língua mãe, respondo que tanto faz.

Ele não gosta da resposta — “Como assim tanto faz?” — e eu lhe explico que o idioma russo não tem artigos. Então, para falar só em Dostoiévski, os originais seriam “Jogador”, “Irmãos Karamázov”, “Eterno Marido”, “Demônios”, “Idiota”, “Adolescente”, etc., o que ficaria no mínimo estranho em português.

Desta forma, o título do romance preferido de Thomas Mann pode ser escrito como quis Rubens Figueiredo (Penguin) ou Boris Schnaiderman (34). Tá bom?

E ambos estão esperando por você na Livraria Bamboletras.

O Amor de Mítia, de Ivan Búnin

O Amor de Mítia, de Ivan Búnin

o-amor-de-mitiaIvan Búnin (Prêmio Nobel de Literatura de 1933) fez parte daquele grupo de nobres russos, ricos ou decaídos, que fugiu da Revolução de 1917. Era vizinho de Nabokov em seu exílio parisiense. A Rússia de sua novela O Amor de Mítia (1925) ainda era a dos nobres e grandes donos de terras tão bem descritos por Tchékhov. Não é para menos. Filho de uma antiga família de proprietários rurais, Búnin viu sua fortuna ser perdida pelo avô e depois pelo pai, um alcoolista viciado nos jogos de cartas. Teve que trabalhar cedo na cidade para ganhar a vida, mas a infância na Rússia pastoril czarista parece tê-lo marcado muito.

O tema de O Amor de Mítia não é a política, mas a inquietação e o Ciúme com C maiúsculo. Mítia tem muito a ver com o Otelo de Shakespeare. Ele ama e ama uma jovem saracoteante que se dedica a concertos, saraus e aulas de teatro. Mas o inferno do ciúme faz com que ele não viva nem aproveite nada. Tudo isto é descrito rapidamente até que ele deixa Moscou e parte para a casa da mãe no interior, cansado dos desentendimentos com Kátia. Como vários apaixonados, crê não ser correspondido.

O livro é basicamente a espera de Mítia. Ele quer receber cartas de sua amada, mas ela não manda. Estará ocupada? Não gosta mesmo de escrever? O que estará fazendo? Ela é fiel? Onde está Kátia? E ele passeia pelo campos, belamente descritos por Búnin em tradução do excelente Boris Schnaiderman. Em seus passeios, sempre acaba no Correio, à procura de cartas.

O contato com os camponeses leva-o a uma negociação direta para a compra de sexo. Búnin descreve toda a estratégia criada por um funcionário da fazenda. Mas ele não quer Alionka, quer Kátia, que persiste em seu silêncio.

É um bom e perfeitamente esquecível livrinho que dá para ler numa sentada ou deitada (118 páginas com capítulos bem curtos).

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Dostoiévski, de novo

Um pedido do Pedro, através de comentário:

Caro Milton, Conhecedor de Dostoiévski como és, dê essa dica para nós, pequenos mortais, que ainda não o leram por inteiro: há algum tradutor melhor que o outro, alguma edição mais nobre, ou tudo dá no mesmo? Gracias!

Pedro, farei de tudo para manter, nas próximas linhas, este falso conhecimento que me atribuis. Na verdade, li todas as obras de Dostô quando era jovem. Nasci em 1957 e devo tê-las lido nos anos 70. Na época, não havia edições saindo e até era complicado encontrar os livros do autor russo. Tanto que, após ler Os Irmãos Karamazov numa edição da Abril Cultural (Imortais da Literatura, Vol. 1) bati muita perna pelos sebos a fim de encontrar os outros livros. Um dia, recebi um telefonena de um sebo, mais exatamente da Livraria Aurora, avisando que tinham recebido a coleção completa das obras de Dostoiévski da José Olympio. Hoje sei que não era NADA COMPLETA, porém era vendida como se fosse e eu acreditei. Supliquei à minha mãe por uma grana, fui lá e arrematei a coisa. Como busquei de ônibus, fiz duas doloridas viagens para buscá-los. Era bonitos, vermelhos, de capa dura, um show.

E eram o que havia de melhor. Imagine: os tradutores eram Rachel de Queiróz, Ledo Ivo, Brito Broca, etc. Todos os livros vnham com esplêndidos prefácios de gente como Otto Maria Carpeaux e Wilson Martins. Posso te dizer que comi e amei aqueles livros, comi-os como se fossem o melhor Dostô possível, mas não eram. O que tinha de bom eram os prefácios…

Lá pelos anos 80, começaram a aparacer novas traduções, totalmente diferentes. A explicação era incrível. As traduções antigas, aquelas da José Olympio, eram feitas a partir de outras traduções, francesas, feitas no início do século XX. Soube que os tradutores franceses da época não eram nada respeitosos e que açucaravam expressões e até criavam algumas frases facilitadoras. Ou seja, eles adaptavam Dostô para o gosto do leitor francês, aparavam as arestas, retiravam espinhos, deixavam-no … beletrista! Caraglio! Comecei a ler exclusivamente as traduções de Boris Schnaiderman para Tchékhov e Dostô (logo vi que eram muito superiores às segunda mão) e, nos anos 90, a abençoada Editora 34 resolveu montar um time de tradutores para retraduzir todo o Dostoiévski. Antes, aqui e ali, já aparecera o verdadeiro Dostô: nos anos 80, Moacir Werneck traduziu O Jogador e O Eterno Marido direto do russo. O resultado foi um autor muito mais direto e sem firulas. Muito melhor, limpo e impactante, certamente. Fiquei desconfiado… Mas acho que a revelação do verdadeiro Dostô veio com Paulo Bezerra na Editora 34. Digo com a maior tranquilidade que quem leu O Idiota e Crime e Castigo nas traduções antigas, leu outros livros. Dizem meus olhos e minha mente que estes romanções só foram verdadeiramente traduzidos há pouco. As novas versões são Dostô, por mais que Brito Broca tenha feito milagres com sua versão francesa.

Então, meu caro Pedro, a solução é comprar a Coleção da 34 ou outras traduções diretas. Acho que posso pôr minha mão no fogo por Moacir Werneck e Paulo Bezerra. Se não faço outras indicações de tradutores é por não ser o especialista que pensas que sou. Mais: creio que a Coleção Dostoiévski da Editora 34 foi realizada com tanto interesse,  respeito e amor por Dostô que eu a colocaria em primeiro lugar.

Completando este texto meio desorganizado, te afirmo que O Idiota só se tornou a obra-prima quase insuperável que é hoje para mim após a leitura da tradução de Bezerra. A tradução da José Olympio tem todos os méritos associados ao pioneirismo e às parcas possibilidades dos anos 50, mas vão me desculpar, os dois Idiotas não têm nada a ver um com outro. Toda a transcedência e o valor altamente filosófico da obra perdeu-se na passagem para o francês ou para o português. Tanto assim, que li O Idiota da 34 como se fosse totalmente inédito.

Dostoiévski não é nada romântico, nada. É um escritor bem mais duro do que fazem crer as antigas traduções. Porém — e agora falo a todos — , se não houver grana e você encontrar uma das antigas traduções que têm reaparecido ainda hoje a preços módicos, compre do mesmo jeito. Um mau Dostô é superior a quase tudo que haverá em torno.