Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

Acho que foi a Telma Scherer quem chamou este livro de “aula”. Ela tem razão. Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, é ideal para quem quer refletir sobre o romance como experiência escrita e lida. O livro é de 1979 e literalmente me deixou perplexo quando o li no século XX. Para minha nenhuma surpresa, logo tornou‑se um dos marcos da literatura pós‑moderna. É um romance sobre o ato de ler (e de escrever) um romance. “Você está prestes a começar a ler o novo romance de Italo Calvino…”. Já nessa primeira frase, o leitor é chamado a ser personagem de sua própria leitura — isso sem os apelos fáceis ao sobrenatural. A magia do texto nos chama. Se um viajante é absolutamente metaficcional, ou seja, faz-nos lembrar frequentemente — muitas vezes de forma irônica – de que estamos diante de uma obra de ficção. (E, não obstante, esta fato, sempre nos embrenhamos nas histórias e queremos saber mais).

A narrativa é dividida em 22 capítulos. Os ímpares são escritos em segunda pessoa (“você, Leitor”) e descrevem a tentativa do leitor de seguir sua leitura, que começa com um romance intitulado como o próprio livro. Os outros capítulos, os pares, são primeiros capítulos de outros romances que são interrompidos. Há diversos gêneros — realismo mágico, detetive, ficção científica, romance psicológico, amor –, sempre em fragmentos cortados abruptamente por uma “razão editorial” ou conspiração. Sim, é lúdico, mas totalmente decepcionante para quem quer mergulhar num fluxo ficcional contínuo. É um curioso livro sobre a estrutura e os mecanismos dos romances.

Assim, Se um viajante se desdobra em dez narrativas distintas — nenhuma delas concluída –, ao mesmo tempo avança o enredo central dos capítulos ímpares: a busca do Leitor (e da Leitora, Ludmilla) por um texto completo, assim como a busca do Leitor por Ludmilla.

Calvino explora o que chamou de “romances interrompidos”, operando por cortes sucessivos, mais ou menos o que Bolaño faz de forma menos explícita. Cada fragmento introduz um novo universo, cria uma expectativa, mas… Tchau. Essa frustração força o leitor real (sim, a gente) a se sair do conforto e da atenção de uma leitura linear. É um romance que propõe que “você” é o protagonista, fazendo com que o Leitor “real” (sim, a gente) seja confrontado com o Leitor do romance, num emaranhado de camadas. Calvino mistura leitores, narradores, autores e traduções apócrifas, questionando quem — ou o que — decide que a leitura terminou. Em cartas, Calvino confirmou que se reconhecia influenciado por Nabokov e Barthes, o que tornaria o romance também um ensaio sobre o romance.

Mas por que tudo isso é tão legal? Por que devemos nos submeter a este romance cheio de cortes? Porque nos mata — metaforicamente — como leitores. Porque nos corta o desejo. Porque é cômico ser maltratado e aqui nós não estamos falando em ser maltratado por um mau livro, mas por um muito bom. Porque os abismos narrativos não esvaziam o romance, mas tornam-se livros que ainda podem ser escritos. Porque pensa o fazer literário. Porque o monte de distrações, erros de impressão outros mistérios que cortam a fluidez, mostram que ler é viajar, mas também é se conhecer e se reconhecer. Porque é estilisticamente elegante e sutil. Porque Calvino está sempre bem humorado — é um gozador.

Se um viajante numa noite de inverno não é apenas inovador, é um convite à reflexão sobre o desejo que move a leitura. Não entrega histórias fechadas — oferece os cortes que tememos em cada bom livro. Autores falsificam, enganam. Leitores colaboram — a obra exige que você entenda que o livro só existe quando alguém se dispõe a lê-lo com atenção.

Não sei mais o que escrever sobre um livro tão fácil de ler e tão difícil. Estou comentando um romance sobre a leitura, que faz pensar que ler é resistir ao fim, é recusar o fechamento. Por isso, e por ser esteticamente sedutor, é que é tão difícil de resenhar…

P.S. — Curiosamente, nunca vi este livro ser analisado em Oficinas de Literatura. Mas isso é outro tema…

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