Na última sexta-feira, 29 de janeiro, comemorou-se os 150 anos de nascimento de Anton Pavlovich Tchékhov. Eu sabia da data, mas talvez a morte de J. D. Salinger tenha me atrapalhado e deixei-a passar em branco. Hoje, seus biógrafos sempre citam a viagem à Sacalina como o verdadeiro divisor de águas entre o Tchékhov leve e o pesado, o brincalhão e o sério e — por que não dizer? — o sadio e o doente. O que faz uma pessoa de saúde não muito boa sair de Moscou a 21 de abril, atravessar toda a Sibéria até o mar do Japão, para chegar a Aleksandrovsk (na ilha de Sacalina) somente no dia 11 de julho? Estes quase três meses de viagem quase acabaram com a saúde do escritor. Apesar disso, ficou cinco meses na ilha de Sacalina, entrevistando 10.000 pessoas entre moradores e detentos — explico: Sacalina servia, assim como regiões da Sibéria, como local de desterro para criminosos, comuns ou “políticos”. Dentre estes, havia um grande amigo seu, Vladimir Korolenko. Voltou por Vladivostok e ainda foi ao Sri Lanka, no sul da Índia. A 8 de Dezembro regressou a Moscou. Sim, este ano, li uma biografia de Tchékhov e as datas já não fechavam muito bem. As versões para sua morte também não fecham. A esposa contou assim; o médico, assado; até Raymond Carver escreveu sua versão. Em comum, apenas o fato do escritor agonizante ter pedido uma champanhe.
Suas origens são humildes, o pai era um servo que conseguiu comprar a liberdade. Nasceu pobre e morreu rico, principalmente em função das peças teatrais. Foi uma pessoa extraordinariamente ativa e solidária. Era médico — exerceu a profissão por uma década — , escreveu imensa obra, desenvolveu campanhas de prevenção à disseminação do cólera, financiou pessoalmente a construção de escolas em aldeias, não gostava muito de intelectuais passadistas (apesar de admirar Tolstói) e ensinou a como escrever um conto através de técnicas até hoje repassadas pelas “oficinas literárias”. Tudo isso em apenas 44 anos, quando morreu de tuberculose.
No ano passado, revi A Gaivota e não vou resistir a copiar a bela capa da última edição brasileira, com o escritor ao centro e sua mulher Olga Knipper à direita.
Em 2004, escrevi o texto a seguir em homenagem aos 100 anos de morte de Tchékhov:
Quando era menor, meu filho Bernardo às vezes perguntava: “Pai, qual é o teu escritor preferido?”. Minha resposta era que meu escritor preferido eram uns 100 caras. Quando ele insistia citava algo por volta de 10. Quem? Acho que Cervantes, Dostoiévski, Balzac, Kafka, George Eliot, Machado, Döblin, Stendhal, Virginia Woolf, Sterne, Thomas Mann, Tchekhov, mais ou menos isto. Mas, se meu inquisidor fosse implacabilíssimo como Fernando Monteiro em suas listas (vocês deveriam ler a RASCUNHO, repito!) e me ordenasse escolher um e somente um, eu – talvez estranhamente – escolheria Anton Pavlovitch Tchekhov.
Acho que gosto se discute sim. Em meu caso com Tchekhov, creio saber parcialmente de onde vem meu fascínio por suas histórias e peças de teatro. Estou consciente de algumas coisas que aprovo nele: o realismo, a clareza, o humor, a leveza, a abordagem compreensiva dos personagens, a pouca ênfase a coisas que outros escreveriam cheios de exclamações (ele parece dizer: não te ajudarei, descubra sozinho o que há de importante aqui), a imaginação para criar cenas e situações significantes, uma visão um pouco diferente do amor – o qual é visto sem muitas ilusões – e a total falta de preconceitos que o permite transitar por toda a sociedade russa do século XIX. Talvez ele não fale a todos da forma como fala a mim. Sei que Dostoiévski, Mann, Cervantes, etc. são melhores, porém insisto: Tchekhov é o meu escolhido. É também uma questão de convivência agradável, preferimos ficar com alguém cuja presença e essência nos seja amiga.
Era o verão de 1978, tinha 20 anos e passava férias na casa de minha irmã, que fazia pós-graduação no Rio de Janeiro. Lembro do dia: manhã chuvosa, temperatura amena, não ia dar praia. Voltei para a cama e peguei O Beijo e Outras Histórias. Pensava que, tendo lido quase todos os livros de Dostoiévski, Tolstói, Gogol e Turguênev traduzidos na época, me restava conhecer aquele Tchekhov. Amava os russos e, naqueles anos, também os soviéticos… Então, comecei a ler O Beijo – uma boa história – indo depois para o conto da cachorrinha Kaschtanka. Gostei. Almocei no centro e, quando passeava pela Cinelândia, resolvi entrar na Biblioteca Nacional e pedir para ver o que eles tinham de meu novo escritor. Eles trouxeram poucos livros, mas, dentre eles, estava O Beijo.
Peguei o livro e continuei a lê-lo na BN. Passei a uma história que estava no final do livro: Enfermaria Nº 6. Em minha vida, li-a umas 4 vezes, a última deve fazer uns 15 anos. Talvez tenha sido minha maior experiência literária. Fiquei estupefato com a quantidade de humanidade que me era repassada, com a economia do autor, com a poesia condensada de sua prosa. Ali não havia teses a defender, nem grande enredo, mas havia uma sinceridade, uma nitidez nos personagens que me causou enorme impressão. Continuei a ler as histórias de trás para diante e conheci a irônica Uma História Enfadonha, na qual descobri que Tchekhov podia criar diálogos tão bons quanto os de Jane Austen. Voltei para a casa diferente.
Tchekhov viveu apenas 44 anos e era médico. Até os 26 anos, publicou 300 histórias em jornais russos, quase todas cômicas. Vivendo em Moscou, era obscuro. Porém, sem que soubesse, estava tornando-se famoso em São Petersburgo, onde tinha numerosos leitores. Isto perdurou até o dia em que recebeu uma carta do severíssimo crítico Grigorovitch:
“Os atributos variados de seu indiscutível talento, a verdade de suas análises psicológicas, a maestria de suas descrições (…) deram-me a convicção de que está destinado a criar obras admiráveis e verdadeiramente artísticas. E o senhor se tornará culpado de um grande pecado moral, se não corresponder a estas esperanças. O que lhe falta é estima por este talento, tão raramente conhecido por um ser humano. Pare de escrever depressa demais…”
Tchekhov mudou e, sem perder a graça e a leveza mozartiana de seu texto, tornou-se realista. O novo estilo custou-lhe críticas violentas, que o acusavam de “mau gosto” e de utilizar “detalhes sujos e grosseiros”. Ele respondeu: “Pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as pérolas e mostrá-las livres de qualquer impureza, equivale a rejeitá-la.”
Rubens Figueiredo, tradutor e prefaciador de O Assassinato e outras histórias faz outras observações sobre Tchekhov:
“No ambiente intelectual russo, o debate só parecia fazer sentido quando tomava formas extremadas. A fama crescente de Tchekhov e a expectativa em torno de seus textos obrigaram-no a defender-se dos mal-entendidos, cada vez mais numerosos.”
“Os leitores russos se haviam acostumado a tomar os escritores como campeões de credos políticos e religiosos mas, no caso de Tchekhov, esbarravam em textos obstinadamente inconclusivos. Mais grave ainda, suas entrelinhas pareciam indicar que tanto as grandes sínteses intelectuais quanto os padrões de pensamento herdados pelos costumes serviam antes para encobrir a realidade.”
“O desconcertante é que Tchekhov consegue munir sua prosa de uma sutileza capaz de sugerir outras camadas de experiência, como se a realidade nunca se esgotasse.”
E, mais desconcertante: “Para Tchekhov, a religião era moralmente indiferente. Ou seja, a crença, seus conceitos, seus símbolos e rituais eram ineficazes para deter a crueldade e o egoísmo, mas tampouco constituíam suas causas.”
Tchekhov: “Não cabe ao escritor a solução de problemas como Deus ou o pessimismo; seu trabalho consiste em registrar quem, em que circunstâncias, disse ou pensou sobre Deus e o pessimismo.”
Há muitos livros de Tchekhov que indicaria. Tenho 22 na minha frente. Como ele era contista, novelista e dramaturgo, há muitas coletâneas e, nelas, muitos contos e novelas repetidas. Vamos começar pelas peças teatrais: acho que As Três Irmãs, A Gaivota, Tio Vânia e O Jardim das Cerejeiras são tão extraordinárias que prescindem dos atores e podem ser lidas como uma novela de diálogos. A novela Enfermaria Nº6 está em vários livros, assim como os contos Inimigos, A Dama do Cachorrinho e um conto clássico que os tradutores deveriam se reunir a fim de estabelecer um nome, pois ele pode se chamar Queridinha aqui, O Coração de Olenka ali, Dô-doce (?) acolá, assim como Amorzinho ou qualquer outra coisa.
Os melhores livros são as duas traduções de Bóris Schnaidermann:
– A Dama do Cachorrinho e outros contos. Editora 34. 1999 Trad. de Bóris Schnaidermann ou
– Contos. Civilização Brasileira. 1959.
(O segundo é o mesmo livro reeditado e revisado por Schnaidermann 40 anos depois. Mas quem encontrar a edição de 59 num sebo pode comprá-lo de olhos fechados. As duas versões são espetaculares.)Outros livros que indico:
– Contos e Novelas. Edições Ráduga (Moscou). 1987. Um primor de tradução para o português realizada por Andrei Melnikov.
– O Assassinato e outras histórias. Cosac & Naify. 2002. Trad. de Rubens Figueiredo.
– O Beijo e outras histórias. Círculo do Livro. 1978. Trad. de Bóris Schnaidermann.
– A Enfermaria Nº 6 e outros contos. Editorial Verbo. 1972. Trad. de Maria Luísa Anahory.
– Os mais brilhantes contos de Tchekhov. Edições de Ouro. 1978. Trad. de Tatiana Belinky.
– Histórias Imortais. Cultrix. 1959. Trad.de Tatiana Belinky.Filmes:
Há dois esplêndidos filmes de Nikita Mikhálkov baseados “em qualquer coisa de Tchekhov” (palavras do próprio diretor e roteirista): Peça Inacabada para Piano Mecânico (1977) e o famoso Olhos Negros (1987) com Marcello Mastroianni detonando no papel principal atrás da Dama do Cachorrinho.Em vida, Anton Tchekhov já era conhecido, respeitado e até popular, mas não era uma celebridade. Após sua morte, Tolstoi disse: “Creio que Tchekhov criou novas – absolutamente novas – formas de literatura que não encontrei em parte alguma. Deixando de lado falsas modéstias, afirmo que Tchekhov está muito acima de mim”.
Naquele tempo, os contemporâneos não deram atenção a esta opinião. Pensavam que o conde já idoso estava a superestimar Anton Tchekhov, atribuindo-lhe características acima das que merecia. Passados cem anos, vemos agora que Tolstoi não estava tão equivocado. Atualmente, na Rússia, Anton Tchekhov encontra-se ao lado dos grandes clássicos: Púchkin, Gogol, Dostoiévski e Tolstói. E, como dramaturgo, está entre os mais célebres e montados autores mundiais.
“Anton Pavlovitch Tchekhov sentou-se na cama e de maneira significativa disse, em voz alta e em alemão: ´Ich sterbe´ – estou morrendo. Depois, segurou o copo, voltou-se para mim, sorriu seu maravilhoso sorriso e disse: ´Faz muito tempo que não bebo champanhe´. Bebeu todo o copo, estendeu-se em silêncio e, instantes depois, calou-se para sempre. E a pavorosa calma da noite foi apenas alterada por um estampido terrível: a rolha da garrafa não terminada voou longe.”
Olga Knipper, esposa de Anton Tchekhov.Faz pouco mais de 100 anos que o fato narrado acima ocorreu. Tchekhov faleceu em 15 de julho de 1904 em Badenweiler, Alemanha.
Adendo: E-mail de Fernando Monteiro:
Você tem toda a razão sobre Tchekov: ele tem uma “redondez”, uma satisfação tão total e plena do que esperamos encontrar num escritor… que mereceria, sim, ser o escolhido, entre todos, como o preferido de um leitor super-exigente.
Das histórias de AT, eu gosto especialmente de “A Estepe”, uma novela relativamente curta e genial, que narra a viagem de uma criança como uma metáfora (a novela toda) da viagem que atravessamos sem saber porque e para quê.
Assim é que o meninozinho russo (o próprio Anton, é claro) viaja — e a travessia da estepe vasta, com todos os seus incidentes, se torna o núcleo mesmo da impressão estranha da novela, como naquele filme (Olhos Negros) de Michalkov, em que Mastroianni recorda “as névoas da Rússia num passeio de carruagem, na infância, há muito tempo”…
Creio até que Nikita Michalkov faz uma alusão mais ou menos direta à novela, porque o argumento de “Olchie Chiorne” foi criado a partir da fusão duas narrativas clássicas de AT.
Para mim, Tchekov é o Machado de Assis da pátria de Dostoiévsky.Bom final de semana!
Fernando