Em 2003, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) apresentou a Sinfonia Nº 2 de Mahler, “Ressurreição”. É uma obra para 200 músicos, entre instrumentistas e coral. O pequeno palco do Teatro da Ospa não comportava adequadamente toda esta gente mas… o que fazer? Além disto, a Ospa não dispunha de músicos suficientes para executar a obra — que exige 10 trompas, 8 contrabaixos, 8 trompetes, 6 trombones, 4 percussionistas, enorme coral, etc. — mas o que fazer senão ir buscar músicos nas orquestras de São Leopoldo, Caxias e Blumenau? O que não dava era ficar sem a Ressurreição! Todo este lindo e idealista esforço foi recompensado pela lotação completa do teatro — o que provava, pela undécima vez, que o público não quer ouvir somente musiquinhas ligeiras e indulgentes.
Mahler foi o maior regente de seu tempo e tudo o que ele não tinha era indulgência para com seus músicos e público. Compunha música belíssima e de complexidade acima da média. A orquestra ora é tratada convencionalmente (tocando em grupos de instrumentos), ora os músicos são pinçados individualmente ou em pequenos grupos para executar solos nada triviais. Este contraste entre orquestra normal e orquestra rarefeita é fundamental na música de Mahler e é um suplício para o músico despreparado, desatento ou nervoso. Numa palavra, Mahler é difícil, mas vale o esforço.
Chegamos ao Teatro e fomos para nossos lugares. Todos os amigos que encontrei estavam felizes com a perspectiva daquilo que aconteceria nos 90 minutos seguintes. Sentamos no mezanino: meu filho Bernardo no I10, eu no I12, Claudia no I14 e nossa amiga Daniela no I16. Quando a música começou, o Gordão que estava sentado à nossa frente, no H8, começou uma luta contra seu guarda-chuva. Não sabia onde colocá-lo, e ele e sua esposa Gordona, sentada no H6, começaram a conjeturar em voz alta qual era o melhor lugar para a geringonça, enquanto a mesma batia nas cadeiras, fazendo concorrência com a percussão mahleriana. O trabuco, após ser colocado entre duas cadeiras da fila em frente (!), repousou. Já a dupla, não. Acho admirável que um casal ainda tenha assunto depois de 30 anos de casados, mas não seria melhor procurar um restaurante para conversar? O Bernardo, que tinha 12 anos, começou a me cochichar:
— É a baleia falante…
E, depois de alguns minutos:
— Pai, tu sabias que as baleias podem cantar? Ainda bem que estas só conversam.
Algumas crianças têm um limiar de irritação bem alto, é o caso dele. O mesmo não se pode dizer da Claudia, que, à minha esquerda, lançava olhares furibundos para o Gordão. Já eu apenas suspirava audivelmente a cada reinício de conversa. Porém, a música era tão bela que nossa alegria foi retornando e o ódio ao Gordão foi se transformando em ironia. Numa das inúmeras pausas que Mahler impõe à orquestra, o Gordão perguntou intrigado à Gordona:
— Ué, parou?
A certamente impagável resposta da Gordona foi abafada pela orquestra. Uma pena!; mas, em determinado momento, aconteceram coisas que desestabilizaram o Gordão. Para que vocês entendam, é necessária uma explicação: os dois últimos movimentos da sinfonia propõem-se a fazer uma representação exterior (se bem que, como Mahler dizia, tudo era representação interior…) de nada menos que o Dia do Juízo Final e da Ressurreição dos mortos. Para tanto, o autor manda alguns instrumentistas (trompetes, trompas, percussão) para fora do palco. Enquanto saíam, o Gordão observava:
— Ué, não tão gostando? Já vão embora?
Não, meu caro amigo. É que de lá, dos bastidores, eles iniciarão um conflito fantasmagórico com a orquestra que está no palco. Quando a orquestra do palco executar o suave tema da redenção, dos bastidores virá o som das trompas e da percussão executando o que Mahler disse representar “as vozes daqueles que clamam inutilmente no deserto”. Este trecho fez com que o Gordão levasse seu corpo para a frente, a fim de observar bem o fenômeno. Falou para sua mulher que não sabia quem estava tocando. OK. Só que logo depois começou a marcha dos ressuscitados no Juízo Final. Em meio a este tema, as trompas e os trompetes que estão lá atrás nos bastidores — representando agora a enorme multidão de almas penadas –, enchem o ar com seus apelos vindos de todos os lados do palco. Aquilo foi demais para o Gordão. Ele se virou indignado para a Gordona e afirmou:
— Não é possível! Tem gente ensaiando lá fora! No meio do concerto!
Não foi possível conter o Bernardo. Mesmo tapando a boca com a mão, todos os que estavam perto ouviram sua risada.
Apesar disto, foi uma noite inesquecível. A OSPA, naquela noite com Isaac Karabitchevsky, esteve muito bem. Tanto que guardei os ingressos com um recadinho atrás: “Bela noite. Não esquecer do Gordão da H8 e de sua Gordinha da H6”.
Milton,
sinto que, de fato, você pôde assistir não a apenas um, mas a dois espetáculos grandiosos
kkkkkkkkkk
O Gordão tem tudo para se transformar num personagem antológico!!
abç
Ah! Nós, os magros, bem instruídos e bem comportados…
(desculpa! não consigo evitar…)
(cada vez adoro mais esse teu filho… totalmente mal comportado.) (Sim, um adorar meio narcisita, vindo da inadequada aqui…)
bj, f
Como é que você consegue despertar meu desejo irrefreável de assistir a uma apresentação da Sinfonia Nº 2 de Mahler, “Ressurreição”, falando do gordo? Parece coisa do Mahler: dois temas, dois cenários, narrativas que se cruzam…
Gustav Mahler is the greatest composer I have ever heard. He inspires me every day of my life.