Publicado em 30 de junho de 2006
Obs.: Aqui, damos continuidade à novela coletiva Porto do Desespero. O segmento anterior está aqui e dizem que todos os outros capítulos estão aqui, na coluna da esquerda. Mas tem que dar uma procurada dentro de cada blog que você entrar, viu?
Os décimos de segundo que o corpo de Daniel levou para cair da janela até o chão foram longuíssimos. Todos os principais fatos de sua vida foram-lhe apresentados como num filme para que pudesse, quem sabe, arrepender-se. Como fundo, a voz de Cid Moreira, recitando em tom fúnebre:
Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Enquanto via o chão branco com 50 centímetros de neve aproximar-se rapidamente, continuava a ouvir:
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro,
sem uma bolsa d’água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas;
se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Daniel, cada vez mais preocupado com a batida contra o solo, especulava: quem me dera ter um pára-quedas ou ser mais leve! Será que o autor deste ícone da auto-ajuda achava que o cego Borges andava para lá e para cá com um pára-quedas sob a axila?
Porém, quando Cid chegou na sílaba tônica de “leve”, Daniel chegou ao chão. O fato de haver ouvido claramente a segunda sílaba era no mínimo alvissareiro. Visto da janela de onde saíra há poucos segundos, o recorte de seu corpo enterrado na neve faria a alegria de qualquer cineasta. Os poucos transeuntes que viram a cena – todos velhinhos canadenses que costumavam passear quando a temperatura chegava aos vinte graus negativos – exclamavam-se, mas uma velha senhora gritava desesperadamente. Mesmo com o nariz enterrado na neve, Daniel notou que caíra sobre algo peludo e gostoso de abraçar, ao mesmo tempo que escutava destacar-se a voz da velha:
– Ele levou um tiro e caiu sobre o cão de minha sobrinha-neta Anne-Lucie! Eu ouvi o tiro. Que horror!
Sob um ohhhhh dos circunstantes, Daniel ergueu-se lentamente e, com uma furtiva lágrima caindo-lhe do olho esquerdo, disse à velha senhora:
– Diga a Ana Lúcia que seu cão não morreu em vão. E… Gostaria de lhe dizer que… Sei lá, sabe? É que se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono.
Os velhinhos olharam apalermados uns para os outros quando um casal saiu correndo do Hotel Quebec pedindo para que Daniel os acompanhasse. Mariana chorava e Roberto a puxava pelo braço. Roberto disse a Daniel:
– Vamos resolver esta merda com um moderador. Queremos que o Idelber Avelar resolva quem de nós, a partir de agora, comerá Mariana.
– Mas ele nem tem um blog! – reclamou Mariana.
– Já tem de novo!
Olhou para Daniel novamente.
– Essa vaca queria que o Smart Shade of Blue fosse nosso moderador, disse que todos o odiavam. Claro que, em sendo assim, deve ser um justo. Mas prefiro ir a New Orleans, muito mais perto.
Entraram os três no Karmann Ghia de Roberto. Como isto é uma Pulp Fiction, havia espaço de sobra.
– Você está bem, Daniel? – perguntara docemente Mariana, enquanto o via abrir o zíper das calças.
– Preciso de maior leveza, gente. Vou me masturbar.
– Ninguém vai sujar de porra a porra do meu carro – trovejou Roberto.
(Porém, meus sete leitores devem estar se perguntando sobre o tiro ouvido no quarto durante a longa queda de Daniel. Simples, no momento em que Mariana e Roberto lutavam, um homem de fenótipo neo-nazista – musculoso, skinhead, de botas pretas e piedosos cilícios nos pulsos – derrubara a porta com um pontapé e perguntara:
– Há alguém aqui que não aprecia os Wunderblogs?
Mariana percebeu a gritaria lá fora e concluiu que Daniel, aquele boca aberta, teria caído e morrido na queda. Também viu uma tatuajem no pulço do homem, logo abaixo dos torturantes silícios vindos diretamente da Califórnia.
Era o rosto de Alexandre Soares Silva!
Naquele momento, sentiu que crescera como ser humano. Entendeu que tinha que ser autêntica na presença do corpo morto de um dos homens com os quais praticara intercurso e declarou, veemente:
– Eu não gosto!
E Roberto interveio:
– Ele perguntou o quê? Se a gente não gosta do blog do Wunder Wildner? Eu adoro o Wunder. Ele tem blog?
Em resposta, a cara do articulado skinhead torceu-se em indescritível mágoa. Ele puxou um trabuco e fez mira em Mariana. Antes de atirar, gritou dramaticamente “Morraaaaaaa!”, porém Roberto, ex-goleiro do ASA de Arapiraca, saltou sobre seu braço, desviando o tiro. Quando preparava-se para encher o cara de porradas, Roberto sentiu que o skinhead desistira do combate por decisão deste escriba. Saiu furibundo dizendo que
– porra, o Flavio Prada me deixa apanhar de uma mulher no capítulo anterior, e neste não me deixam bater no Wunderbar, que merda.
Após rápida deliberação, fugiram do hotel. Nas escadas, Mariana explicava-lhe que o cantor era Wander – e não Wunder – Wildner. Fim da história do tiro.)
Agora, eles rumavam para New Orleans, milhares de quilômetros ao sul de Quebec, a fim de que Idelber resolvesse a pendenga sobre quem continuaria comendo quem. Não conseguiam descobrir a pronúncia correta do nome do moderador. Roberto garantia: era Ídelber; Daniel sustentava ser Idélber e Mariana queria um Idle Bear. Enquanto dirigia, Roberto via como Daniel se recuperara da queda. Com a ponta dos dedos da mão esquerda, ele segurava um dos mamilos de Mariana, enquanto que, com a mão direita, se masturbava. Só que, sentado no meio do espaçoso banco de trás, era obrigado a cruzar os braços, pois não conseguia masturbar-se com a mão esquerda. Com isto seu braço esquerdo atravessava o carro em direção ao seio de Mariana, enquanto que, com a mão direita, tentava manter um certo ritmo. Não era confortável. Mariana tirava o máximo prazer possível da situação com suas duas mãos dentro da calcinha. Chegou tão rapidamente a seu objetivo que Roberto refletia sobre quão rodada seria aquela gata.
Foi uma viagem altamente confusa, psicologicamente tensa e cheia de momentos bergmanianos – pois os rapazes não sabiam mesmo quem comeria quem e apenas Mariana tinha alguma idéia do que fazer. Roberto insistia em cheirar a cada parada, além de polvilhar com a droga tudo o que comia. Finalmente, chegaram a New Orleans. Estava tudo diferente. A cidade parecia um lago. Viram um cãozinho chamado Oliver vibrando com a oportunidade de ganhar um novo dono, um blogueiro desesperado por ver submersos os pés das mulheres, os professores de Tulane boiando nas águas aproveitando o sol e pássaros voando sem ter onde pousar.
Foi quando o Karmann-Ghia (um anfíbio?) começou a ser acompanhado por uma enorme sombra. Aquilo assustou-os. Era estranho: sol por toda a paisagem e uma sombra acompanhando-os! Depois desta situação hitchcoquiana, notaram que as pessoas olhavam admiradas para algo que estava sobre o carro. Foi uma circunstância fortemente shyamalaniana. Enquanto resolviam – sem decidirem-se a nada – quem sairia para examinar o que havia no teto, viram enormes garras envolver o carro como se este fosse uma lata de sardinha. Perceberam que eram erguidos ao mesmo tempo que enormes asas assomavam às janelas. Começaram a gritar desesperamente, mas só obtiveram como resposta um
– Graaaaak!
Creio que todos vocês sabem de quem será o próximo segmento da sensacional, aleatória e aleotária novela feminista “Porto do Desespero”. Sim, ele mesmo, El Rey, terá que se ver novamente com o pássaro que acaba de matar num post.