Chico Buarque

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Tinha 9 anos quando meu pai trouxe para casa o recém-lançado vinil “Chico Buarque de Hollanda”. Na capa, duas fotos de Chico – uma sorridente e outra sério – sobre fundo azul contínuo. Ali havia “A Banda”, “Olê Olá”, “Pedro Pedreiro”, “Você Não Ouviu”, “Tem Mais Samba”, “A Rita”, “Juca” e mais 5 músicas. Tal como os discos dos Beatles que ouvia com minha irmã, era um vinil de que se podia ouvir todas as canções. Não havia nada de segunda linha. Depois, continuamos a acompanhar a carreira de Chico comprando cada um de seus discos, até os italianos. Como muitos brasileiros, posso cantar muitíssimas músicas dele; faz parte da vida e da memória de nosso país e, quando meu pai faleceu, uma das poucas coisas que fiz questão de pegar foi este vinil.

Dia desses, vi numa comunidade do orkut pessoas escolhendo suas letras preferidas de Chico. É complicado — a audição ou leitura da obra de Chico mais parece antologia de grande autor do que obras completas –, são muitas letras notáveis e cada um só podia escolher três. A escolha passa necessariamente por nossas preferências pessoais e pelas idiossincrasias de cada um… Bem, eu meti a colher escolhendo “Eu te amo”, “Flor da Idade” e “Moto-contínuo”.

Depois, deitado em busca de sono, decidi que gostava mais da letra de “Moto-contínuo”. Em primeiro lugar por causa da perfeita combinação com a música de Edu Lobo, em segundo lugar por ser uma música sobre um assunto raro: a fé do homem e a fé no homem. Quem chamou minha atenção para esta letra foi meu amigo Alejandro Borche Casalas, pois, quando a ouvi pela primeira vez no vinil “Almanaque”, fiquei tão hipnotizado pela música de Edu que deixei de lado a letra, que pareceu-me confusamente dedicada a alguma musa de Chico… Engano crasso. Alejandro, num final de noite de 1982, perguntou-nos: sobre o que fala esta música? Não lembro de minha resposta nem das dos amigos. Lembro que ninguém disse que era sobre a fé. Como Alejandro é uruguaio, esclareceu-nos: é sobre a fê; disse assim mesmo: fê.

“Eu te amo” é uma escolha lírica e “Flor da Idade” é sua antítese; talvez seja a música mais sacana de Chico. Sacana no sentido de sacanagem mesmo.

Abaixo, transcrevo as letras de minhas preferidas para meus 7 leitores. Vocês concordam? Discordam?

Moto-Contínuo

Um homem pode ir ao fundo do fundo do fundo se for por você
Um homem pode tapar os buracos do mundo se for por você
Pode inventar qualquer mundo, como um vagabundo se for por você
Basta sonhar com você

Homem também pode amar e abraçar e afagar seu ofício
Porque vai habitar o edifício que fez pra você
E no aconchego da pele na pele, da carne na carne
Entender que o homem foi feito direito
Do jeito que é feito o prazer

Homem constrói sete usinas usando a energia
Que vem de você
Homem conduz a alegria que sai das turbinas
De volta a você
E cria o moto-contínuo da noite pro dia se for por você

E quando o homem já está de partida
Da curva da vida ele vê
Que o seu caminho não foi um caminho sozinho porque

Sabe que o homem vai fundo e vai fundo e vai fundo
se for por você.

Eu te amo

Ah, se já perdemos a noção da hora,
Se juntos já jogamos tudo fora,
Me conta agora como hei de partir?

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios,
Rompi com o mundo, queimei meus navios,
Me diz pra onde é que inda posso ir…

Se nós, nas travessuras das noites eternas,
Já confundimos tanto as nossas pernas,
Diz com que pernas eu devo seguir…

Se entornaste a nossa sorte pelo chão,
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu…

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu…

Como, se nos amamos feito dois pagãos,
Teus seios inda estão nas minhas mãos,
Me explica com que cara eu vou sair?

Não, acho que estás te fazendo de tonta,
Te dei meus olhos pra tomares conta,
Agora conta como hei de partir…

Flor da Idade

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor
Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixa um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor
Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha

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15 comments / Add your comment below

  1. Escrevi muito sobre CB no Ipsis, Milton. É, em minha modestíssima opinião, um dos grandes, ao lado de noel, Caetano, Gil e Jobim. Tenho tudo dele e sobre ele (entre livros, discos, projetos, biografias etc.)
    É o corporativismo dos Franciscos.

    “Flor da Idade” é genial realmente. Drummond & Hugo Carvana, juntos. Mas eu não colocaria “Moto Contínuo” e “Eu te Amo” entre minhas preferidas. Acho que “O Que Será (à flor da terra)”, “Geni e o Zepelim”, “Uma Canção Desnaturada” e “Mar e Lua” são de primeiro time (meu, claro).

    Abraço.

  2. Assino em baixo sobre o que disse o Grijó: é um dos grandes, ao lado de Noel, Caetano, Gil e Jobim.

    Acrescentaria: João Gilberto (não como compositor, mas inventor, pois “qualquer canção por João passa a ser de João”), Vinicius, Milton Nascimento (o time de Minas), Caymmi, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Cartola, Gonzaguinha, João Bosco, Jorge Benjor, Dolores Duran, Joyce, Chico Science, Lenine, Renato Russo, Hebert Viana, Cazuza, Elomar…

    Das músicas de Chico: todo o “Circo Místico” (junto com Edu), mas coloco duas músicas acima das demais: “Beatriz” e “Sobre Todas as Coisas”.

    É curioso, enquanto elaborava a lista acima, foi difícil lembrar-me de Dolores e Joyce (apareceu-me uma lista enorme, mas de intérpretes…).

  3. Milton,
    tarefa impossível fazer uma listinha de 3…
    Sem falar no capítulo especial que merecem as letras humorísticas do Chico.
    A Rosa é uma coisa fantástica na forma de montar as rimas. E tem Biscate, Feijoada Completa, Doze Anos, Até o Fim, Sem Compromisso, Morena de Angola.
    O Chico piadista merece um estudo.
    Vê só que coisa fantástica de Biscate: “Andas de pareô e eu sigo inadimplente”.
    E a gente não pode esquecer do monumento que é Vai Passar, que não se enquadra em qualquer categoria.

    Um abraço.

  4. Milton estou em falta com voce… ainda não li o último monólogo amoroso, mas já as coisas entram no eixo… quero ler com calma e atenção o que não dá com uma adolescente pedindo a toda a hora para eu sair heheheheh
    Mas dei uma olhadinha no ‘E porque hoje é sábado’ e adorei a mudança.
    Quanto ao Chico tenho quase todos os discos de vinil dele… não consigo escolher gosto de tudo.
    Um mais que ótimo 2009 para voce e sua família.
    Forte abraço.

  5. Sabe, Milton, eu nunca tinha prestado atenção na letra de “Moto-Contínuo” e ela é fantástica. “Flor da Idade” também é muito boa, mas minhas escolhas passariam com certeza por “Construção”, a qual acho a sua letra mais fantástica, e “Meu guri”, que me arranca lágrimas.

  6. “Como, se na desordem do armário embutido
    Meu paletó enlaça o teu vestido
    E o meu sapato inda pisa no teu…”

    Estes versos são maravilhosos. É difícil, realmente, escolher 3 letras do Chico.

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