Trabalho Comunitário

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Talvez um dia comente o absurdo de minha condenação em um acidente de trânsito em que estava com o carro parado em local permitido; talvez escreva sobre como se forja testemunhas com a finalidade única de conseguir algum dinheiro (uma ninharia) com uma ação, mas hoje vou escrever um pouco a respeito das duas turmas que estão sob minha responsabilidade. Explicação: cumpro minha pena ensinando matemática numa instituição religiosa — o Centro de Educação Profissional São João Calábria — na periferia de Porto Alegre. Faço questão de dizer a vocês que eu ensino mesmo; sei que sou um professor melhor do que aqueles que meus alunos têm em suas escolas. Não há grandes méritos, nem especial bondade e não sou candidato à Madre Teresa de Calcutá; afinal, escolhi fazer o que gostava e extraio prazer desta atividade. É para ser um descanso de atividades mais chatas. Então, se reclamasse, estaria na mesma falsa posição do político que escolheu ser político, mas diz sacrificar sua vida pessoal por seu estado ou eleitores… Sem que estes tenham lhe pedido nada. Não, não me sacrifico em hipótese alguma, apenas gasto sete horas semanais num trabalho pelo qual não recebo nada — contrariamente à atividade política. Este, o fato de não ser remunerado, seria minha única reclamação.

O que me impressiona é a notável diferença entre as duas turmas com as quais trabalho. A de terça-feira pela manhã é muito fraca e minha missão seria a de lhes ensinar a Regra de Três, pois fazem um curso profissionalizante em que é absolutamente indispensável ter noções de proporções, porcentagens, etc. Pensei que fosse fácil; um grande engano. Estes alunos cuja idade gira em torno de 15 e 17 anos, têm poucas noções de como se fazem multiplicações ou divisões. Ficou logo claro que eu teria que recuar e voltar aos conceitos fundamentais. Conversei com os orientadores e eles me explicaram que eu estava realizando um trabalho social e, portanto, tinha carta branca para descumprir o programa a fim de partir para aulas de conceitos fundamentais.

(Isso é tanto mais surpreendente quando comparo esta turma com aquela das sextas-feiras à tarde, que parece ser formada por doutores, apesar de serem da mesma classe social.)

Voltando a meus alunos de terça, faço uma pergunta: como é que eles puderam chegar à sétima ou à oitava série do primeiro grau – e alguns já estão no segundo grau – sem saber dividir 65.536 por 1000? Pois bem, exatamente este cálculo, que escrevi no quadro há quinze horas atrás, gerou um enorme debate em aula.

— Para onde vai a vírgula? Para a esquerda ou para a direita? – disse o mais culturalizado.
— Porra, que vírgula? Hahahahaha.
— Professor, isso é muito trabalhoso, vou ficar horas fazendo.
— Bota três zeros lá atrás e pronto!
— Mas tu tá dividindo, meu! O resultado não vai ser maior.
— Não, bota um zero só! Lá atrás.

Foram trinta minutos de exercícios só de multiplicação e divisão por múltiplos de 10. Uma incrível dificuldade.

Nos intervalos, a pedido deles, dou aula de matemática sobre os temas do colégio de cada um: um pede auxílio nas equações de primeiro grau, nas de segundo grau, na divisão de polinômios, no diabo… mas como é que vão entender esses tópicos se não dominam conceitos muito mais básicos? Olha, é complicado e, se extraio algum prazer em ajudá-los, sinto um enorme cansaço quando saio de lá – lembram que eu escolhi um trabalho para descansar? É um trabalho de Sífifo e, se depois estou buscando minha pedra um pouco mais acima com alguns de meus alunos, com outros a coisa parece piorar.

Conversando com outros professores, eles me informaram que aqueles jovens vêm de famílias paupérrimas, que muitas vezes dormem (ou não) em peças com um monte de gente, que brigam entre si, que alguns fazem o curso apenas pelo lanche e que têm um comportamento totalmente imprevisível, dependente muitas vezes dos acontecimentos noturnos. É óbvio, se o pai chegou bêbado ou drogado na noite anterior, se o irmão resolveu bater em todo mundo ou se vendeu a TV para o traficante, isto influencia o comportamento na aula da manhã seguinte. E muitas vezes o drogado é o próprio aluno.

A forma de controlá-los foi aprendida à base de muito sofrimento. Porém, um belo dia, vi um aluno beslicando o outro e perguntei sobre a conotação sexual daquilo:

— Conta pra nós. Ele te atrai tanto a ponto de tu sentires vontade de dar uns beliscõeszinhos? É tão gostoso assim?

Toda a aula riu e o cara ficou quieto, constrangido frente aos colegas. Noutro dia um maluco começou simplesmente a gritar na aula.

— Este é teu canto de acasalamento? Bonito…

Mais risadas e menos um aluno disposto a fazer loucuras na minha aula. Apliquei a tática várias vezes e eles passaram a me respeitar como alguém perigoso, que “tira com a cara do aluno”. Como não sei gritar, nem reclamar, nem expulsar de aula, o meu jeito de controlá-los é analisando-os de forma caricatural. Eles me veem com alguma simpatia e temor, quase pedindo para que eu não resolva atacar. É o meu jeitinho meigo… (Só preciso parar de inventar apelidos, sou criativo nisso e sei que uns se ofendem, pois seus colegas acabam adotando a coisa).

Como falava ontem ao Flavio Prada no MSN, nasci com uma incontrolável determinação germânica de tentar fazer tudo bem feito. Considero-me um baita preguiçoso e sou o mais inábil dos seres vivos, mas se é para me mexer, penso que devo -– com meu talento nenhum –- tentar fazer como meu único ídolo incondicional, Johann Sebastian Bach, fazia: apesar de viver numa época em que não havia noção de obra e em que poucos artistas criavam arte para expressar-se, ele tratava de fazer bem feito só por quê, talvez, se sentisse melhor assim, mesmo sabendo que amanhã os Concertos de Brandenburgo poderiam estar servindo de papel para enrolar carne –- o que realmente aconteceu. Então, eu, com minha inexistente aptidão, tento dar um jeito de melhorar a vida dos guris de terça.

Já os de sexta-feira são inteiramente diferentes. Devem ser tão pobres quanto os de terça, só que funcionam melhor. Um foi às finais das Olimpíadas de Matemática (não sei o que é isso e tenho preguiça de procurar saber) e quase todos os outros dizem ser os primeiros de suas turmas no colégio. Claro, pensei que pegaria um grupo de vileiros arrogantes, porém nada disso acontece. Dar aula para eles é muito estimulante e saio de lá com a certeza de que empurrei a pedra alguns metros acima. E, na sexta-feira seguinte, eles trazem o tema feito e não esquecem de nada! Ou seja, é uma hora e meia de diversão com a participação de todos.

Por que tanta diferença? São duas turmas homogêneas totalmente distintas. Não sei ainda a resposta. Na última sexta, aconteceu de estar tão alegre com os resultados dos da sexta que comecei a contar algumas piadas mais ou menos dentro de nosso assunto. Não deu muito certo; quando ninguém riu da primeira que me ocorreu, dei-me conta de que a dificuldade estava em entender algumas expressões que eu utilizara, como “Não obstante” e a terrível palavra “anacrônico”. Ele pediram que eu recontasse a piada com outras palavras, porém, com eles já conhecendo o final, acabaria fazendo papel de idiota. Então, mudei a anedota (anedota?, será que esta eles conhecema palavra?). Deu certo. O único problema é que agora eles já me pediram mais piadas para a próxima sexta. Me acham engraçado. Preparei alguma coisa sobre geometria e as malditas polegadas que eles precisam saber para seu curso de usinagem. Onde achar piadas sobre isso? Vou ter que dar um jeito de inventar.

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18 comments / Add your comment below

  1. Ai ai, Milton, eu tinha um professor igualzinho a como você se descreve. Nunca expulsava ninguém da sala, mas deixava a gente aterrorizado com a possibilidade de humilhação pública. Todo mundo ficava mais ou menos quietinho, mas ele tinha que contar várias piadas durante o decorrer da aula. Uma vez ele conseguiu uma foto de uma menina gordinha que eu tinha tido um caso (eu devia ter uns 15 anos) e mostrou para todos na aula. Pois é, depois disso eu me tornei sócio-fóbico.

    Sobre as Olimpíadas de Ciências, eu participei da de Física. Não é nada demais, são exames em várias fases e os finalistas ganham algum prêmio e são convocados para ir ao exterior participar de uma Olimpíada Internacional. Mas isso funciona muito mais para fazer este aluno que tem um interesse maior do que o comum em alguma destas áreas ganhar ainda mais gosto pela coisa, penso.

    1. Bom, eu nunca faria isso, Gilberto. É uma coisa pessoal e de modo algum eu ofenderia alguém deste modo. Em primeiro lugar porque acho muitíssimo agressivo e, em segundo lugar, porque numa dessas um deles vai querer bater em mim. A coisa é mais de longe, tem de ser. Imagina, meter-se na vida pessoal de um aluno! Tô fora.

      Sobre as Olimpíadas: meus alunos tem enormes dificuldades financeiras e familiares. Sei lá como estudam. Acho admirável que alguns deles consigam refugiar-se nos estudos, buscando cursos, qualificação e até Olimpíadas. Como disseste, se o cara é inteligente, acaba ganhando gosto pela coisa. É só dar acesso. Aí é que mora o problema.

  2. Interessantes suas agruras e epifanias educacionais. Rachel passa por coisas assim, dando aulas para alunos de diversas origens sociais e níveis de escolaridade. Só não é matemática, que tem o seguinte agravante: as maquininhas de calcular. Eu, que fui de bom a excelente aluno de matemática, hoje só faço calculos (qualquer um!) no computador. Resultado: completa incapacidade de efetuar, de cabeça, as operações mais simples. Só não faço idéia do por que turmas de alunos de origem semelhante contarem com tão acachapante diferenciação de nível. Para Rachel, não há muito mistério: os alunos da universidade pública são sempre melhores, independentemente da classe social (e na UERJ cerca de 50% dos alunos são oriundos das classes C e D), enquanto os do ensino privado (com muitos alunos das mesmas classes acima, mais alguns da classe A e muitos da B) são poucos aqueles que possuem algum preparo. Finalizando, recomendo a leitura de Diário de Escola, de Daniel Pennac, novamente um quase-romance quase-biografia do autor, às voltas com seus alunos na periferia de Paris, com problemas idênticos àqueles que temos por comuns aqui no Brasil, mas teríamos por exceções no tal do “Primeiro Mundo”, mas não são.

    1. Eu faço de cabeça… Tive a sorte de sempre frequentar a universidade publica. Ah, e o colégio tb.

      Li este Pennac. Gosto de seus livros.

  3. Milton, permita-me uma sugestão para teus alunos de terça, se é que já não a tentaste aplicar. Matemática (com seus números, contas, memorizações e fórmulas) costuma parecer à maioria das pessoas algo tão abstrato como música por escrito parece a mim. Eu só me interessei por matemática, física e outras ciências semelhantes quando percebi as aplicações, as relações carnais das mesmas com o mundo à minha volta. Assim, acho mais provável a possibilidade de interesse por parte dos alunos se a matemática for apresentada como uma interessante ferramenta que os ajude com e explique fatos e demandas do seu dia-a-dia, que os capacite a resolver os seus problemas práticos cotidianos e para isto seria precioso que eles colocassem quais seriam esses problemas ou situações que lhes pareçam complicadas. Na linha Paulo Freire. Acho que usar reais aplicados às necessidades e desejos deles, tipo comparar o preço de um tênis que eles cobicem, à vista e a prazo, a passagem de ônibus, o custo de uma refeição, a comparação disso com o salário, deste com o FGTS e o desconto do INSS. Coisas assim, onde os alunos possam ter o interesse pela matéria despertado e aí sim motivem-se a querer desvendar esses mistérios. Um abraço!

    1. Pois tu sabes que eu faço isso? Os cálculos de percentuais começam por eles comprando um tênis ou um mp3 no camelô e pedindo um desconto… Todo mundo entende, mas e o cálculo? É que vem sem nada da escola. Olha, não sei o que será desta geração. Falo dos absolutamente pobres, claro.

  4. Essa dinâmica concernente a cada grupo é um mistésrio.
    Milton. O humor é um grande instrumento pedagógico, e eu tenho defendido a proposta que ele seja usado como uma forma de abordar a sexualidade na escola, para além das aulas de biologia, exatamente pq, apoiada nas minhas pesquisas, acho que o humor é a forma privilegiada porque a cultura popular brasileira trata de temas da sexualidade. Tenho um artigo cujo título é algo como Genero, sexualidade e educação onde defendo isso. Mas ali tb digo, com Caetano veloso, que, ainda hoje, é sempre bom saber o que dizer e o que não dizer na frente das crianças (e adolescentes). Então tome cuidado meu amigo, e vejo que isso te preocupa quando refletes sobre apelidos. O bullying escolar é justamente uma das preocupaçoes dos educadores, que muitas vezes são grandes abusadores, e é uma forma de controlar comportamentos. Pode ser tentador como medida disciplinar, mas pega leve, Milton. Acho que o aluno tem que ter uma crítica ao comportamento inadequado á sala de aula, mas o professor tem que tomar cuidado para nao ser ele a promover o bullying, ou “zoação”.
    Mas eu sei, não é fácil, e a gente vai tentando com o que sabe e conhece…
    bj, f

  5. milton admirável
    por favor, brinda-nos com essas vindouras anedotas

    às vezes os alunos mais “encrenqueiros”, geralmente os mais desinteressados, são colocados na mesma aula por aqueles q têm controle sobre isso.. não sei se é o caso…

  6. Rapaz, que textos, hein? Este, o de cima sobre Júlio Cortázar, belos textos. Afora minha divergência quanto ao Che Guevara e o regime cubano, o de cima é uma das mais belas conversas com filhos que já li. Este daqui mostra mostra que até a injustiça e a má-fé que te colheu em um acidente de trânsito pode dar bons frutos. Os alunos ganharam um baita professor e nós este belo escrito.

    Sempre passo por aqui e não me arrependo. E como certos textos são até bem longos, acabo tendo que correr depois com as outras tarefas e leituras do dia. Mas sempre vale a pena.

    Você está fazendo um grande blog. Um dos melhores da internet, pelo menos entre os muitos que conheço.

  7. Muito obrigado, José. Mesmo!

    Às vezes é complicado manter a frequência. Um comentário desses é um tremendo combustível.

    Muito obrigado.

  8. Milton, deixa eu lhe dizer uma coisa: você tem o primeiro atributo para ser um grande professor. Não é condição suficiente, mas é condição necessária. É a base de tudo: você se interessa pelos seus alunos!
    Foi exatamente por isso que me emocionei lendo seu texto.
    Conheço muitos professores que são bons conhecedores de suas disciplinas, mas que não dão a mínima para seus alunos. É quase inacreditável. Incusive no ensino universitário, onde há alguns (não todos, tenho muitos colegas que não são assim) que são ótimos pesquisadores, mas não percebem a diferença entre uma turma e outra, entre um aluno e outro.
    Sei que você não é um profissional, mas leva jeito.

  9. Pois é. Preocupo-me com eles, sei que tenho alguma veia pedagógica, mas me acho insuficiente. Também, os caras vêm sem saber nada! Como disseste, os professores deles certamente foram indiferentes. Uma merda.

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