Meio século de pretensão

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Meus parabéns! E então chegas aos cinquenta anos e é apenas mais uma data. A Idade da Razão já está instalada há tantos anos que fica difícil encontrar coisas a comemorar que não sejam o novo cargo, o novo carro, a nova e sonhada situação adquirida sem refletir em los muertos de tu felicidad. Sempre buscaste o conforto e agora o tens sob várias formas, não obstante a antipatia dos circunstantes, dos filhos e o silêncio dos velhos amigos. Nunca demonstraste grande vontade de te sacrificares por alguém — mesmo tua participação política dava-se em bares, era anteação, talvez anteteórica –, mas a súbita adoção de um amor extremado pela privacidade, pela autoproteção, pela furiosa e agressiva resolução de teus problemas pessoais, surpreendeu a muitíssima gente. Sim, todos nós temos de nos adaptar aos fatos da vida mesmo sendo eles desagradáveis e avessos a nossos ideais, porém a coerência gera limites, principalmente para alguém que costumava expressar-se tanto.

Tua Idade da Razão é o medo do desconhecido e o sintoma mais aparente é teu desconforto por teres eliminado de tua vida uma das mais gloriosas e dignas necessidades humanas: a aventura da amizade. Sim, à exceção de velhos amigos, não aparece mais ninguém interessante, não acontece nada de novo. É curioso como conseguiste te encalacrar. Qual foi a última vez que alguém, digamos, na faixa dos 30 anos, te convidou para uma conversa? Quando ocorreu de um jovem repentinamente chegar à conclusão de que tinha absolutamente de conversar contigo e fez um convite para um café mais ou menos urgente? As viagens te dão autêntica satisfação, mas mesmo isso é um subproduto que roubas de teu trabalho. E os novos amigos que encontras nos congressos devem ser decepcionantes e iguais, pois quem não pode mais aquilo, fica com quem pode o mesmo isso. Achas hoje que a nova geração é feita de idiotas, que não vale a pena dar-lhes atenção, que tens perfeito bom senso e tratas de evitar os desvios daqueles que se encontram em tua zona de influência à base de berros e pressões, pois não podes conversar muito, há que ter tempo para coisas mais importantes, tais como cuidar das articulações políticas de teu trabalho, dos novos tratamentos de rejuvenescimento, da hora do médico e ainda ir ao shopping, único local que consideras seguro. Dia desses, ficaste feliz ao ver que os seguranças pediam educada e repetidamente a um senhor que, por favor, fizesse o obséquio de não correr nos corredores — um pediu aqui, outro mais adiante (este chegou a ir ao meio do corredor para cruzar com o homem, que respondeu “Estou atrasado para o cinema”, mas que obedeceu passando à marcha atlética porque temia ser detido por uma advertência mais longa. E tu pensaste “É verdade, quem corre é vagabundo, neste shopping pode-se vir”).

E, enfim, teu isolamento acabou te trazendo de volta a ti. E, olha, tu não és pessoa a ser deixada a sós sem maiores dores, coisas passam a acontecer, paranóias se criam de quase nada e melhor não pensar muito. Inventas enfermidades, te examinas com o olhar crítico de quem deveria viver para todo o sempre, ficas com receio das atitudes amalucadas dos filhos e, como não tens tempo para eles e trata-os isonomicamente, isto é, também aos gritos, eles aprenderam a te enganar com mentiras. “Vou aqui”, mas vão lá; “Estou fazendo isso”, quando na verdade farão aquilo. É a escola diária da mentira; eles sabem que, se forem francos, darão de cabeça na tua absoluta falta de negociação, na tua completa alienação de como eles vivem. Então para ti é mais fácil proibir. Pois gostas desta palavra: há coisas que devem ser proibidas e é uma sorte que teu novo amor fale tão pouco. Teus filhos não falam contigo nem quando encontram uma vestimenta íntima perdida na sala… É uma piada que fazem fora de casa. Não queres brigar com a vida que te dá conforto material, deste modo, preferes ouvir fatos concretos – mesmo que falsos. De invenção bastam as paranóias e as doenças, essas inevitabilidades.

50 anos. 50 anos e tu simplesmente te desarticulaste. Sim, não te faltam as qualidades de alguém centrado, autocentrado, em faixa própria, de ética, tolerância e solidariedade adaptáveis, que não pula de galho em galho, pois tens galho próprio e privativo, dissociado do ser fumante e usuário de drogas leves que foste, que apenas lembra de sua existência nos anos 70 e 80 quando Caetano cantava e que hoje vê sua posição pretensamente intelectual atacada quando o ser silencioso te constrange. A criatura pichadora e comunista hoje só quer vestir coisas chiques e muiiiito caras, prenhes de grifes, com o caimento que só uma grife dá. Ainda ouves Van der Graaf, aquele horror? Quanta pretensão. Parece que esta apenas faz crescer. Esse meio século de pretensão comprovam a terceira acepção da palavra: afã, ambição, anelo, apetite, aspiração, avidez, sofreguidão.

Hoje tua fala é afirmar que não estás do lado da classe dominante, mas “que nem todos à direita estão errados”; é asseverar que é preciso “ouvir as pessoas”, mas não que não se deve cair, em hipótese alguma, na liberalidade perigosa; é garantir que não és moralista, mas que julgas; é jurar que não escondes nada, mas que algumas intromissões e perguntas passam dos limites… Piadas. Por falar em piadas, vamos a uma.

Politicamente funcionas como um homem branco, machista, neoliberal, de retórica potente, autoritária e invasiva, que arranjou alguém que comporta-se como uma mulherzinha burra para te acompanhar. Tua grande Olenka (*) particular funciona adequadamente? Já sabe de todas as tuas preocupações? Angustia-se junto? Parabéns, Kukin-Pustovalov-Smirnin! E quando tua companhia leu aquele e-mail que comprovava irrefutavelmente o fato do homem não ter ido à Lua? Tu e Pustovalov não perderam tempo para fazer-lhe mudar rapidamente de idéia, não? “Nunca mais repita uma bobagem dessas!!!”. Engraçado, rimos muito.

Mas preciso finalizar, é tarde. Tua existência surpreende, repentinamente deixaste de pensar nas igualdades do mundo, deixando-as apenas para os discursos, tão considerados quanto os de José Dirceu. Se dizem que perder uma ilusão torna-nos mais sábios, o que dizer de alguém que perdeu todas? O desconcertante é que tal fato não te trouxe a serenidade que dizem ser uma das qualidades da sabedoria. Pobre de ti. Deixar tudo, arrepender-se não implicaria necessariamente nas ações de ímpeto e má consciência — que te comprazes em fazer — típicas de quem foi enganado e precisa vingar-se. Ou talvez faças isso para externar a felicidade de, finalmente, poderes agir autenticamente: sem te dares àquele trabalhão de teus anos jovens de ter de dissociar tudo o que pensavas do que dizias. Finalmente o autêntico está bem perto de ti, é só eliminar o que vem antes do mas. O resto é tu.

(*) Personagem de um conto de Anton Tchékhov que pode ser lido no link acima.

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13 comments / Add your comment below

  1. Texto genial, Milton. Apesar da minha pouca idade, eu me senti realmente tocado. Minha figura paterna, que sempre me lembra o Comendatore mozartiano, me veio à mente. Se você soubesse de cada história que eu já tive de encobrir…

    1. De certa forma, Gilberto, este texto é para ser lido por jovens ou por pessoas de meia idade que esqueceram totalmente como é ser jovem.

      Amadurecer é bom, esquecer é péssimo e gera intolerância.

      Abraço.

      P.S.- Vou lá praguejar um pouco.

      1. Eu achei o texto realmente ótimo, Milton. Senti algo como quando li o Estrangeiro, do Camus. Ambas histórias são tristes e lástimáveis, apesar de me identificar com diversos aspectos dos personagens e, o pior de tudo, me sinto impotente para fazer qualquer coisa contra isto. Este é um dos grandes problemas contemporâneos, penso: somos demais esclarecidos, e por isto não conseguimos nos agarrar a nada. Condenamos a religião, mas desejamos uma segurança existencial, ao mesmo tempo que condenamos a racionalidade – mas não nos permitimos sermos demais emotivos; nos apegamos à arte, mas sabemos que mesmo a defesa mais hábil desta está baseada em vicissitudes; podemos convenser muita gente, mas não nos convencemos mais… não acreditamos que nossos trabalhos sejam os mais importantes nem que nossas vidas foram trilhadas pelo único caminho correto. Único caminho? Somos relativistas, somos ‘livres’. E, na minha opnião, o preço da liberdade é muito alto. Eu já não tenho forças para condenar a existência de tipos como este, como meu pai, e não por falta de paciência para discutir, mas por não conseguir acreditar que vivo de uma maneira mais legítima do que eles.

        Mudando drasticamente de assunto, obrigado por Praguejar! Estou contente com o feedback do primeiro post, muita gente andou por lá já!

        Grande abraço!

        1. Excetuando aquela tola citação a “O Estrangeiro”, deveria deletar todo o restante do teu comentário, Gilberto.

          Motivo: é mais inteligente e sensível que o post. Eu deveria impedir vcs de serem melhores do que eu!

          :¬)))

          Tu desfiaste tantos fatos contraditórios que quase fiquei zonzo. Eu, cada vez que me interesso por alguma coisa, logo penso em como criar ficção em cima. Nossa!, cada um dos teus “mas” (há um “e por isto”) correspondem a ouro puro. Não adianta apenas condenar e apontar a decadência, há que se refletir sobre seus motivos e acho que tuas observações são um belo ponto de partida.

          Abraço e obrigado.

  2. TAI O ÓDIO VISCERAL CONTRA O GREMIO, O MAIS ODIADO DO PAÍS, EHEHE, POR QUASE TODA A VIDA , MAIS DE VINTE E OITO ANOS SOFREU COMO UM CACHORRO DE RUA NAS MÃOES DO TRICOLOR, VIU VIZINHOS, PROFESSORES, AMIGOS, PARENTES DEITAREM E ROLAREM POR DÉCADAS A FIO COM OS MAIORES TÍTULOS QUE UM TIME PODE TER…E NÃO SÓ UM TÍTULO MAS DOIS…BILIBERTADORES..OS ONCECALDIANOS SÃO UNS POBREZINHOS…DIA 18-07-2009..CEM ANOS DE GRENAL..E SABE QTO FOI O SEGUNDO GRENAL? DEZ A UM…E O TERCEIRO…9 A ZERO E POR AÍ FOI …DAÍ TAMBÉM O ÓDIO QUE SE FORJOU NO NASCIMENTO DO COIRMÃO …EHEHE O TIME DA PIADA PRONTA

  3. O tempo vai acomodando camadas geológicas, e nós vivemos como se ele fosse capaz de fazer a mesma coisa conosco. Construímos teorias que sustentam visões etapistas da vida e da história, conformamo-nos diante das contingências cujas teias não fazem de um sujeito nada além de um nó que, afinal, sustenta o tecido urdido para conservar, embora a cada dia se esgarce, e em cada rompimento apareça alguém disposto a cerzi-lo com a mesma linha já desgastada – e isso conforta, embora continue a pingar.

    Essa tua visão panorâmica com binóculos retrata, certamente, não uma geração, mas uma vertente que percorre a história com a promessa da sovrevivência de uma mediocridade celebrada como genialidade, o que me traz à lembrança, ao olhar para o espelho e encontrar, nele, traços do mundo inteiro em meus olhos, o quanto é injustificável, nesses termos, a paisagem humana tendente a esgotar a si mesma, falida por ausente o impulso à criação verdadeira, que é aquela que agrega mais que destrói, ou nunca o faz, ao menos sem a certeza de que a destruição só é devida àquilo que já se encontra definitivamente morto, pois, tantas vezes, os meio-vivos ou zumbis voltam, e voltam em nós mesmos.

    1. Sim, Marcos, acho que este é um fenômeno geral que pode ser mais ou menos acelerado.

      É estranho como boa parte dos seres humanos tendem não preservar sua inteligência. Seria de esperar que à inteligência viesse agregar-se a experiência, mas às vezes parece haver uma substituição…

      1. O maior problema é que a experiência nos ensina que a inteligência não nos valerá de muita coisa: 1) diante daqueles que tem um QI (Quem Indicou) mais relevante; 2) diante do que a inteligência tem, por experiência, ciência das limitações de ambas no bojo de um processo repleto de interdependências incogniscíveis.

  4. Hoje eu sou a “titia”, mas durante muito tempo convivi apenas com pessoas pelo menos 10 anos mais velhas do que eu. Às vezes era muito chato, porque algumas pessoas desprezavam abertamente tudo o que eu ou qualquer pessoa da minha geração tinha para dizer – de viagens a questões técnicas, opiniões ou trocas de experiência.

    Agora, como “tia”, eu percebo que a gente tem mesmo a tendência a olhar para trás e achar que já viveu tudo e já sabe de tudo. Ao mesmo tempo, isso gera tédio muito grande. Nos tornamos pesados, como alguém que morreu e só falta deitar. A juventude, nesse sentido, me parece uma capacidade de olhar para a vida com olhos virgens do que não ter vivido nada.

  5. Milton, e depois de ler o texto da NOVA coluna no POS, não aguentei e fiz outra postagem no Varal! Ele é muito bom, e a coluna vai ser o máximo!
    Mais uma vez obrigado! Esta TOTALMENTE desculpado pelo dia 15…!!!srsr

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