Cinzas do Norte, de Milton Hatoum

Cinzas do Norte foi o vencedor do Prêmio Jabuti como o melhor romance de 2005. Não discordarei do prêmio e nem poderia, pois não conheço nem um quinto da produção brasileira do ano passado. Mas é óbvio que o Jabuti agora se agarra ao livro como uma grife, dizendo a todos: é coisa boa.

E, no começo, não me decepcionei. A leitura fluiu rápida, levada por um autor de entonação clássica e tranqüila. Nos intervalos da leitura, pensava sobre como a devoção de Hatoum à Guimarães Rosa – confessada num curso que ele ministrou em Parati durante a Flip 2004 – não possui nenhuma repercussão em sua literatura. Sem problemas, quase todos os autores gostam de Kafka. o que não significa que seus projetos literários tenham algo a ver com o tcheco. Porém, mesmo assim, é surpreendente que Hatoum seja tão “clássico”. Cinzas do Norte tem uma estrutura em tudo semelhante a de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, com os capítulos numerados da história sendo interrompidos contrapontiscamente por outros não numerados, escritos em itálico e que contam uma história complementar.

O romance é ambicioso: narra a amizade entre Raimundo (Mundo) e Olavo (Lavo); aquele, filho de um poderoso e provinciano empresário de Manaus, este – que é também o narrador do romance -, um órfão criado pela tia costureira e pelo tio, digamos, aproveitador e sedutor. Mundo tem personalidade de artista, mas seu pai (Jano) é ostensivamente hostil a seus desenhos, quadros e idéias. Há ecos da extraordinária novela de Thomas Mann Tonio Kroeger na formação de Mundo como pintor. Jano prefere Lavo que, apesar da amizade com Mundo, está destinado a uma vida tranqüila como advogado em Manaus. Mundo – seu apelido é significativo – é o personagem que quebra a precária estrutura familiar, como o Bazarov de Pais e Filhos. O mérito de Hatoum está no contar uma boa história ligando elementos díspares como a truculência de Jano e da Revolução de 1964 massacrando um artista nascente, a tensão entre estabilidade (Lavo, Jano, Ramira, Arana) e instabilidade (Mundo, Alícia, o tio Ranulfo), entre amar ou deixar o país e, principalmente, entre espera ou evasão, entre rebeldia e conformismo. Os personagens são construídos lentamente, vão tomando corpo em meio a um tema nada fácil e Hatoum nos leva com grande segurança até quase o final – li o livro absolutamente apaixonado -, quando, num momento de desatino, dá um inexplicável tiro no pé!

Ignoro o que levou Hatoum a mexicanizar o final do romance. Como se estivesse possuído por um escritor inglês do século XVIII – não me refiro a Sterne, é claro -, ele resolve, em 30 páginas, amarrar todos os laços soltos da história. Faz questão de explicar e dar destino a tudo e a todos. Eu preferiria não saber sobre a paternidade de Mundo; aquela incerteza apenas sugerida era elegante, convinha à história como conveio a Machado não dizer quem era o pai do Ezequiel de Capitu. Porém, meu xará tem um ataque parecido com os que tinham alguns autores de TV e, analogamente aos montes de casamentos que ocorriam nos finais das novelas antigas, apresenta-nos um caminhão de novidades que não acrescentam nada ao romance e que quase o estragam. Como já disse, as explicações sobre a paternidade são desnecessárias e o é mais ainda a exposição do sofrimento de Alícia, com direito a copiosas lágrimas e a cenas melodramáticas como a destruição dos quadros do filho.

Melhor ficar com o resto do livro e é isto que estou fazendo. Como o personagem de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, vou apagar o final de meu cérebro e pensar que Cinzas do Norte é – e é mesmo! – um belo romance sobre a amizade, a rebeldia, a destruição e a truculência. Nem lembro mais do tiro no pé.

9 comments / Add your comment below

  1. “A devoção de Hatoum à Guimarães Rosa não possui nenhuma repercussão em sua literatura”. Isso já é bastante bom. Quanto às fórmulas mexicanizadas, recaída ao duvidoso gosto do melodrama, bem, às vezes a literatura fica devendo às absurdidades melodramáticas do cotidiano e, como, penso eu, a literatura não existe para conferir bom gosto àquilo que de mau gosto é, e nada avesso às fórmulas estereotipadas condutoras das imaginações e sensibilidades humanas, acho que dá para perdoar e até cogitar se não é um outro tipo de concessão ao gosto do público, este culto, ou seja, o uso do padrão forçado como metalinguagem e antecrítica à solução final do romance.

    Ah, brincadeirinha!

  2. “O último capítulo parece um daqueles epílogos onde o destino de todos é explicado”. Ih, tá, o meu também é assim! Concessão indispensável ao leitor comum! Vixe, li este livro um tempinho atrás (foi lançado quando mesmo?), e atentei mais para as qualidades, e vou te dizer: por que acontece isso? Ora, porque livros publicados pela Companhia das Letras são respeitáveis! Livros publicados às expensas de seus autores são lixo, coisas que jogam na sua mão e você é obrigado a comprar, mas quase nunca lê! E, oh, céus, tantas interjeições!

    Liga não. Me deu um ataque de riso depois que uma guria convidou meu irmão para ver uma coisa que, acho, intitula-se “Ela não gosta mais de você” (ou coisa assim) e o babaca terá que turar mais uma comédia romântica made in Hollywood só porque quer levar a guria pra cama… Mais ou menos o que fazemos para bajular um leitor!

    1. Bem, eu terei de levar minha filha no mesmo filme e não receberei nenhum ganho secundário. E nem quero, bem entendido!

      Não gosto de finais assim, ainda mais quando são lacrimosos.

  3. Aos frequentadores deste espaço de lucidez cultural, lanço um pitaco, meio fora de hora: qual a opinião sobre “O amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos… pra mim, um romance e tanto.

  4. Querido Milton!

    Vamos colocar a história no seu lugar: o movimento militar de 64 não foi revolução, foi um golpe e covarde de origem…e que impediu desencadear um processo de mudança no BRasil.

    Abraço Fraterno

    Raoul José Pinto

  5. Sua crítica ao livro não foi de toda ruim; o único ponto que sua crítica enfrquece, é quando você interpreta o livro pelas palavras dele em si, ou seja, julga que o que está escrito é a única verdade.

    Milton Hatoum é certamente um dos grandes escritores vivos por que seus livros sempre tem o ar da dúvida. Eu lhe pergunto: aquela carta final era de quem? Arana? Por que acreditar apenas em Alícia?

    E falar no final do livro como algo “mexcanizado”, seria uma grande disconsideração em relação a todas as questões de ambiguidade da obra.

  6. Ps: Outro ponto: Você citou Verissímo, Mann e Bazarov. Sinto lhe informar, mas existem milhões de histórias com muitos pontos em comum. Porém, se procurarmos interpretar o texto, veremos pontos de originalidade em todas elas.

    Sua leitura ainda é muito superficial, para um livro com uma gama de possibilidades tão grande.

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