Visitantes

Compartilhe este texto:

Sou um detetive particular brasileiro. Aqui, nosso trabalho não é aquele de ficar sentado numa saleta enfumaçada, interrogando elegantemente uma bela mulher sob luz amarelada, adornada por um lento ventilador de teto. Aqui, acostumamo-nos a apenas ouvir ligações dos outros. Só saio de casa para projetar e instalar grampos e olhe lá. No Brasil, nosso trabalho foi rebaixado ao de ouvinte. Trabalhamos para políticos, empresas, esposas e maridos. Violência, na minha vida, é apenas a moral. Colocamos os fones de ouvidos e ouvimos o que nos contam os arquivos sonoros. É chato, mas pagam razoavelmente. Eu sempre trabalho meio bêbado, com um copo de Bailey`s a meu lado. Eu não o tomo como licor, mas à irlandesa: com gelo e em boa quantidade. É o correto. Apesar de gelado, lembra o líquido do seio materno. Aquece.

Quando comecei, há décadas, mantinha uma pequena nota numas páginas amarelas aí — Décio Marques, investigador particular e um número de telefone. Hoje, sou conhecido, não preciso mais de propaganda, tenho muito trabalho. Gravo 30 ou 40 horas por dia de besteiras. É claro que não ouço a metade. Em 15 segundos, decido se a conversa interessa ou não e, se achar que é abobrinha, pulo para a próxima. Mesmo assim, os resultados são bons, os clientes gostam de meu trabalho e de minha discrição.

A maioria daqueles que me descobrem são maridos e esposas. Num final de tarde, recebi uma ligação curiosa. A moça estava muito agitada.

— Acabo de voltar de uma viagem e tem gente aqui em casa.
— Sim. E quem são?
— Eu não vi, mas está tudo bagunçado. Minha casa foi deixada limpa, com tudo em seu lugar.
— De onde a Sra. fala?
— Daqui do apartamento.
— A senhora deveria retirar-se imediatamente e ligar para a Brigada Militar, telefone 190.

Nada de interessante. Depois de uma hora, nova ligação. Era ela.

— Olha, vieram uns PM`s aqui e disseram que o apartamento está vazio, mas quero descobrir quem pode ter invadido.

Tanta foi a insistência que fui. O apartamento era de alta classe média. Muito bonito. Olhei rapidamente para a moça. Tinha marido? Não. Como não ia ficar olhando os móveis, as pinturas, o tamanho da sala, limitei-me a dizer que o prédio me parecia seguro. Ela negou veementemente. Olhei-a nos olhos fazendo questão de demonstrar não estar impressionado com o apartamento que era também organizadíssimo.

Então ela me mostrou a cozinha. A pia parecia uma instalação da Bienal: uma montanha de panelas, copos, pratos e talheres. Tudo sujíssimo e bem recente. Molho de tomate à beça. Nenhuma podridão. Comecei a fazer-lhe perguntas sobre quem tinha suas chaves, mas, por deformação profissional, já planejava silenciosamente alguns grampos. Em meio à conversa, comecei inadvertidamente a lavar a louça. Estava acostumado, não gostava de acumular na pia coisas que se tornavam malcheirosas ao amanhecer. Ela não reclamou nem fez menção de me impedir.

No outro dia, nova ligação. No seguinte, também. E sempre a montanha na pia. Aquilo parecia A Montanha Mágica: enorme, de abordagem cuidadosa e todo dia eu parecia voltar ao mesmo ponto. Tornou-se um hábito tão arraigado que eu já nem esperava ser chamado. Ia direto.

Hoje, ouço lá meus arquivos de áudio. Além dos políticos de sempre, suas amigas (e amigos) são meus clientes. Todos sabem de minha profissão, mas nem sonham que já investiguei alguns deles. Houve um marido que me pagou para acompanhar a esposa; dez dias depois ela me pediu o mesmo em relação ao marido. Que remédio, fiz os dois trabalhos. Perguntei à Daniela o que deveria revelar e se ela achava adequado mantê-los juntos. Acabei produzindo uma peça de ficção cor-de-rosa e mantive o casal junto. Pus algum contorno erótico na mulher, mas garanti-o como coisa irrealizada; no outro relatório, escrevi que o homem era adito de uma secretária no passado, porém ele nunca quisera abandonar a esposa e a família.

A aventura com a “secretina” — como a mulher referia-se à vagabunda –, era o motivo do desinteresse do marido por minha contratante. Por outro lado, ela se contentava, como a Madonna. Meus emolumentos vieram acompanhados de suspiros de alívio, ambos crédulos de suas respectivas espertezas.

Temos 3 filhos: Sarah, Iaron e o Junior. Nunca comprei um lava-louças automático. A pia ainda é minha. Levo uma vida sossegada de reprodutor extinto. Estou enfadado do trabalho, durmo muito ouvindo as gravações de políticos. Um paga, o outro recebe, tudo sempre igual. Meu Bailey´s fica aguado, o que é detestável.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

6 comments / Add your comment below

  1. Fiquei com vontade de ouvir as gravações soporíferas da Yeda, por duas razões: 1) as falcatruas; 2) será que alguém namora com ela?

    O detetive brasileiro sepulta aquele do romance noir, já morto e enterrado há muito, mas muitos não perceberam ainda, então, lá vamos nós, chutar cachorro morto, acabar com o charme de uma profissãozinha bem sórdida.

    Não é apenas o mal que é banal, o banal é banal também – essa é uma das conclusões possíveis ao seu conto.

    No visitante secreto, ecos dum filme de Kim Ki Duk?

    O que o P.S. do Hermeto tem a ver com isso? Complementando o PQP, o melhor espetáculo sonoro dos meus últimos 47 anos foi uma apresentação de Hermeto + banda no Teatro Rival, aqui no Rio. Uma festa, enorme diversão, e sem qualquer solenidade: todo mundo dançando no palco e na platéia, e um cara do meu lado pasmo a ouvir Hermeto “tocar” com a boca um prato com água…

    1. Nada a ver Hermeto x clima noir.

      Minha filha inventou a história. Tem 14 anos e construiu um final feliz a seu modo. Gostei muito daquilo que apontaste: o mal é banal, o banal é banal, o simples e banal.

      Sim, profissão sórdida pra mais de metro, um horror.

      1. Um final feliz para uma redação da escola: o detetive descobriria que a louça é suja por habitantes de rua que invadem a casa, mas não roubam nada; preparam comida e vão embora. A dona da casa, diante disso, convida-os a almoçar todos os dias, desde que eles deixem a louça limpa. Acho que está bom para 14 anos, a não ser que os jovens de hoje sejam mais debochados do que eu com a mesma idade numa época ancestral (lá se vão mais de 40 aninhos).

        1. A Bárbara inventou esta história enquanto jantávamos. Desde o começo, ela estava dando “segundas intenções” à dona do apartamento. Eu a auxiliei com detalhes a respeito do detetive.

  2. Lembrei-me de um antigo filme do Coppola, “A Conversação”. Gene Hackman é um detetive, ou coisa que o valha, bem diferente do estereótipo criado pela literatura noir: é um especialista em áudio e tudo o que ele faz é grampear os menores passos das pessoas cujas vidas deve devassar. É um excelente filme, mas eu o vi há muito tempo. Lembro-me que, diferente do detetive do seu conto, Gene Hackman fica obcecado por um caso específico. E tocava um saxfone.

    Enfim, é um belo blog o seu. Venho com bastante frequência e, se me permite a franqueza, venho sobretudo aos sábados.

    1. Impossível não responder teu comentário com alegria. Em primeiro lugar pelos elogios, mas fundamentalmente por teres citado o grande filme de Copppla, visto por mim mais de dez vezes. Não lembrei dele ontem — lembrei do extraordinário alemão A VIDA DOS OUTROS –, enquanto escrevia esta historinha, mas sou um conhecedor deste filme.

      A cena de Hackmann tocando sax em sua sala destruída ao final do filme é uma das que guardo carinhosamente na memória. É grandiosa. As cenas de rua deste filme tb são estupendas. Por onde anda Coppola?

      Grande abraço.

Deixe um comentário