Longe de Manaus, de Francisco José Viegas

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A religião devia ser praticada em silêncio. Devia ser tão silenciosa como o vento nas florestas, apenas um rumor a chegar à atmosfera, uma fogueira crepitando lá, muito longe. É assim. Menos Deus, delegado, menos Deus. Para sermos melhores, precisamos de menos Deus, de menos crime, de menos assassinos, de menos mandamentos, de menos obrigações. E de mais cerveja barata, sem dúvida.

Delegado Osmar Santos, em Longe de Manaus

Faltam 12 páginas para eu acabar a leitura, mas, apesar do autor qualificá-lo como um “romance policial”, acho que posso ler depois as 12 faltantes das 462 páginas do livro. Porém, Longe de Manaus começa assim:

Um romance policial, como se sabe,
tem suas regras.
Este não tem.

Hum… Melhor ler as 12 páginas antes de continuar.

Voltei. Foi complicado conseguir Longe de Manaus. Num dia de 2005, a dona de uma livraria de Aveiro, O Navio de Espelhos, entrou em contato comigo a fim de obter permissão para entregar a seus clientes um mimo: meu pequeno conto O teclado onde pomos nossas mãos, que seria impresso pela livraria de forma artesanal. Em troca, pedi apenas duas coisas a Sónia Sequeira: que me enviasse uma versão do mimo e o romance Longe de Manaus, naquela época recém publicado. Esperei um ano e, antes de enviar um e-mail furibundo para Aveiro, terra de meus avós, fiz rápida pesquisa e descobri que a livraria tinha falido, provavelmente por culpa de meu conto. Esqueci a história e o livro. Depois, soube que Longe de Manaus fora lançado no Brasil pela Record, mas demorei a comprá-lo. Comprei-o há pouco e, em época de tantos arrependimentos, não me arrependo de tê-lo feito. O livro é bom pacas e deve ter merecido os prêmios (ou o prêmio) que ganhou em Portugal.

Tratar Longe de Manaus como um livro policial é uma redução. Guardadas as proporções, podemos resumir Os Irmãos Karamazov a um whodunit: “Quem matou o velho Fiódor?” Ou seja, ambos são policiais, mas também não são. Ou, escrevendo melhor, somos levados pelo que o romance tem de policial, mas o foco de interesse dos autores também é outro. Depois de um conflito bastante complexo e muito bem posto, Viegas e seu detetive Jaime Ramos vão nos apresentando pachorrentamente uma série de personagens construídos minuciosamente que têm em comum a distância geográfica, a língua e a solidão. Talvez a única exceção sejam Daniela e Helena, mas esta acaba assassinada e aquela só não parece mais solitária pela escancarada paixão com que o autor a trata.

Francisco José Viegas faz variações sobre o gênero estabelecido dos romances policiais. A primeira surpresa é que lemos um romance intimista onde as informações que fazem a trama ir à frente são largadas de forma casual — muitas vezes em digressões interessantes, mas que não parecem dizer respeito ao enredo –, formando um todo rarefeito. É curioso. Também seu detetive está fora da rotina: é um pequeno-burguês meio de saco cheio, louco para voltar para casa, abrir uma cerveja, dependendo desta acender um charuto, e ter uma conversa autista com Rosa. Mas não pensem que nas variações há vanguarda ou elaborado trabalho de linguagem. Não. É um romance clássico cheio de inventividade e charme. Também não pensem que ele está na categoria dos livros que parecem terem sido escritos para o passado. Sua amoralidade não deixa dúvidas que pertence ao tempo presente, assim como o fato de Viegas utilizar o “português brasileiro” e o “português português”, num livro que se passa em Angola, em Portugal e no Brasil.

Sim, apesar das diferenças ideológicas que mantenho com Viegas — que incluem sua trágica e ridícula preferência pelo FC do Porto, além de ele ter se equivocado sobre a qualidade do futebol de Rentería — indico fortemente a leitura deste vinho do Porto. Sem tônica, argh, por favor. (Piada misteriosa, só compreendida por quem leu o livro).

Obs.: De alguma maneira, esta resenha terá algum seguimento durante a semana no Impedimento. Motivo: a foto amarelada de Teófilo Cubillas no escritório de Jaime Ramos.

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5 comments / Add your comment below

  1. Gostei muito da primeira citação, muito mesmo. Eu, como já disse várias vezes por aqui, não condeno a religião, religião sendo entendida como qualquer crença para explicar o mundo, mas condeno a religião gritada, a religião que cheire à poeira, à antiguidade, à petrificação, e nesta categoria se encontram além dos cristãos típicos muitos ateus, jovens comunistas e humanistas em geral. Uma religião silenciosa! – disto sim é que precisamos, uma certeza (ou melhor, um consolo) que seja suficiente para nos dar forças mas que, ao mesmo tempo, não nos impeça de nos comunicar-mos e sermos compreensivos. Este tipo de religião pode ser atingida, ao meu ver, tanto pela mente cristã quanto ouvindo Beethoven, ou bebendo cerveja barata, e basta uma mente clara e aberta, além de grande força de vontade, para desenvolver tal visão.

  2. Gilberto, a religião é algo inerradicável, sem dúvida. As pessoas precisam dela. O problema é que tal necessidade íntima torna-se primeiro reunião social, logo após empresa com fins lucrativos, meio de vida e depois competição entre facções.

    O mundo é complexo… Mas o sonho de uma religião silenciosa permanece. Seria um ideal. É (seria) uma resposta íntima a uma necessidade interna.

    Abraço.

  3. Olá, certamente seu mimo não fora o responsável pela perda da Livraria Navio de Espelhos! Rsrsrs. Também sinto-me obrigado a concordar com o Delegado Osmar Santos, quanto ao seu primeiro parágrafo pelo menos: a religião devia ser praticada em silêncio. Pois sabe-se que os falsos profetas costumam berrar a sua fé aos quatro ventos!

    Parabéns pelo seu belo trabalho e seu artigo! E o romance Longe de Manaus, me fez lembrar algo promocional que escrevi sobre a cidade! Abs.

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