Uma fotografia amarelada que não vi

Sim, amarelada e ao fundo, atrás da mesa de trabalho do detetive Jaime Ramos, na sede da polícia da cidade do Porto, em Portugal, havia uma fotografia antiga. Qualquer torcedor do Porto reconheceria o sorriso do maior jogador de futebol nascido no Peru em todos os tempos e herói do clube português: Teófilo Cubillas. Enquanto leio Longe de Manaus, lembro da melhor escalação peruana: Rubiños; Campos, Fernández, Chumpitáz e Fuentes; Roberto Challe, “El Cabezón” Mifflin e Teófilo “Nene” Cubillas; Baylón (“Cholo” Sotil), Perico León e Gallardo.

Eu era uma criança e tal escalação era algo que ouvia como se fosse um poema. Não tinha muito contato com a língua espanhola e adorava a sonoridade de nomes como Chumpitáz, Roberto Challe, Mifflin, Hugo Sotil e do musical ataque de Baylón, Perico León e Gallardo. Porém, …

Falemos sério, o Peru não existe há décadas no mapa do futebol. Um grande time peruano nos parece mais inacreditável quanto um Uruguai candidato a algo grandioso, mas quando os anos 60 viravam em direção aos 70, a sonora seleção peruana era temida. Tinha grandes jogadores. Se Mifflin jogou no grande Santos de Pelé e Gallardo no Palmeiras campeão de 1967, houve dois supercraques que ganharam o mundo: Cubillas e “Cholo” Sotil. Sotil não interessa a esta crônica, mas mesmo assim vamos dar-lhe a chance de mostrar-se no Impedimento através de seu gol no espetacular Real Madrid 0 x 5 Barcelona na temporada de 73-74. O jogo ficou famosíssimo na época, o treinador da Barça era Rinus Michels, o maestro era Cruyff, o cruzamento é do próprio Johan e o narrador é catalão…

Teófilo Cubillas era uma espécie de sósia de Muhammad Ali e é lembrado por muitos como o maior jogador que já vestiu a “camisola” do FC Porto, do Alianza e da seleção peruana. Jogava na posição dos craques, fazendo a ligação entre o meio de campo e o ataque. Costumava driblar sempre para a frente e tinha um chute potentíssimo e certeiro. Fazia muitos gols. É o oitavo maior goleador em Copas do Mundo e, tendo jogado 905 partidas em sua carreira, marcou 526 gols, fazendo uma média de 0,58 gols por jogo (0,61 em seus tempos de Porto ou 72 gols em 118 jogos e ainda, pasmem, 0,77 gols por jogo em Copa do Mundo, o que o torna o maior goleador não-atacante das Copas). Não é, portanto, jogador para ser esquecido por torcida nenhuma.

Por isso é que o detetive Jaime Ramos, do excelente romance Longe de Manaus, de autoria do português Francisco José Viegas, tem uma foto amarelada dele em seu escritório, um antigo e insistente recorte de jornal mostrando os dentes brancos do sorriso de Teófilo Cubillas. Os fóruns de “adeptos” do FC Porto lastimam que não haja NENHUM GOL feito por Cubillas para o Porto no YouTube. E não há mesmo! Os que estão disponíveis com boa imagem são os seguintes.

Na Copa de 70 contra o Brasil:

A virada contra a Bulgária na Copa de 70 (Cubillas marca o 3 a 2):

Novamente contra o Brasil na Copa América de 1975, vencida pelo Peru:

Dois gols geniais no mesmo ângulo, contra a Escócia na Copa de 78:

O câncer no futebol peruano parece ter sido instalado naquele dia 21 de junho de 1978, quando a Argentina fez-lhes 6 x 0 num jogo pra lá de esquisito. Houve suborno? Estou certo que sim. O time peruano, de futebol vistoso e ofensivo, podia tomar 6 a 0 dos argentinos, mas nunca com aquela postura de Clemer cagado na Bombonera. Cubillas estava em campo. Ele e seus companheiros pareciam ter sido acometidos pela Síndrome de Bartleby: a bola vinha para o Peru e eles faziam como o personagem de Melville: I would prefer not to. O país ainda foi à Copa de 1982. Lá fez um fiasco e nunca mais. Tanto que hoje é o último colocado nas eliminatórias.

Longe de Manaus, de Francisco José Viegas

A religião devia ser praticada em silêncio. Devia ser tão silenciosa como o vento nas florestas, apenas um rumor a chegar à atmosfera, uma fogueira crepitando lá, muito longe. É assim. Menos Deus, delegado, menos Deus. Para sermos melhores, precisamos de menos Deus, de menos crime, de menos assassinos, de menos mandamentos, de menos obrigações. E de mais cerveja barata, sem dúvida.

Delegado Osmar Santos, em Longe de Manaus

Faltam 12 páginas para eu acabar a leitura, mas, apesar do autor qualificá-lo como um “romance policial”, acho que posso ler depois as 12 faltantes das 462 páginas do livro. Porém, Longe de Manaus começa assim:

Um romance policial, como se sabe,
tem suas regras.
Este não tem.

Hum… Melhor ler as 12 páginas antes de continuar.

Voltei. Foi complicado conseguir Longe de Manaus. Num dia de 2005, a dona de uma livraria de Aveiro, O Navio de Espelhos, entrou em contato comigo a fim de obter permissão para entregar a seus clientes um mimo: meu pequeno conto O teclado onde pomos nossas mãos, que seria impresso pela livraria de forma artesanal. Em troca, pedi apenas duas coisas a Sónia Sequeira: que me enviasse uma versão do mimo e o romance Longe de Manaus, naquela época recém publicado. Esperei um ano e, antes de enviar um e-mail furibundo para Aveiro, terra de meus avós, fiz rápida pesquisa e descobri que a livraria tinha falido, provavelmente por culpa de meu conto. Esqueci a história e o livro. Depois, soube que Longe de Manaus fora lançado no Brasil pela Record, mas demorei a comprá-lo. Comprei-o há pouco e, em época de tantos arrependimentos, não me arrependo de tê-lo feito. O livro é bom pacas e deve ter merecido os prêmios (ou o prêmio) que ganhou em Portugal.

Tratar Longe de Manaus como um livro policial é uma redução. Guardadas as proporções, podemos resumir Os Irmãos Karamazov a um whodunit: “Quem matou o velho Fiódor?” Ou seja, ambos são policiais, mas também não são. Ou, escrevendo melhor, somos levados pelo que o romance tem de policial, mas o foco de interesse dos autores também é outro. Depois de um conflito bastante complexo e muito bem posto, Viegas e seu detetive Jaime Ramos vão nos apresentando pachorrentamente uma série de personagens construídos minuciosamente que têm em comum a distância geográfica, a língua e a solidão. Talvez a única exceção sejam Daniela e Helena, mas esta acaba assassinada e aquela só não parece mais solitária pela escancarada paixão com que o autor a trata.

Francisco José Viegas faz variações sobre o gênero estabelecido dos romances policiais. A primeira surpresa é que lemos um romance intimista onde as informações que fazem a trama ir à frente são largadas de forma casual — muitas vezes em digressões interessantes, mas que não parecem dizer respeito ao enredo –, formando um todo rarefeito. É curioso. Também seu detetive está fora da rotina: é um pequeno-burguês meio de saco cheio, louco para voltar para casa, abrir uma cerveja, dependendo desta acender um charuto, e ter uma conversa autista com Rosa. Mas não pensem que nas variações há vanguarda ou elaborado trabalho de linguagem. Não. É um romance clássico cheio de inventividade e charme. Também não pensem que ele está na categoria dos livros que parecem terem sido escritos para o passado. Sua amoralidade não deixa dúvidas que pertence ao tempo presente, assim como o fato de Viegas utilizar o “português brasileiro” e o “português português”, num livro que se passa em Angola, em Portugal e no Brasil.

Sim, apesar das diferenças ideológicas que mantenho com Viegas — que incluem sua trágica e ridícula preferência pelo FC do Porto, além de ele ter se equivocado sobre a qualidade do futebol de Rentería — indico fortemente a leitura deste vinho do Porto. Sem tônica, argh, por favor. (Piada misteriosa, só compreendida por quem leu o livro).

Obs.: De alguma maneira, esta resenha terá algum seguimento durante a semana no Impedimento. Motivo: a foto amarelada de Teófilo Cubillas no escritório de Jaime Ramos.