Quando o discípulo revela o mestre

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A meu amigo Luiz Blasi, que adora David Oistrakh

Otto Maria Carpeaux foi um intelectual muito importante na vida cultural brasileira do século passado. Foi respeitadíssimo e com merecimento. Não apenas foi o autor de uma imensa História da Literatura Ocidental em 8 volumes, como foi importante crítico literário. Escreveu também livros de crônicas, foi colunista em revistas, enfim, teve a popularidade possível a quem de dedica seriamente à cultura; ou seja, quase nenhuma. Carpeaux tinha algo de incomum: uma infalível sensibilidade para identificar já na estreia quem se tornaria destaque literário em nosso país. Mas tantos méritos lhe davam crédito para cometer erros imensos e raros em outros lugares, principalmente na tal História da Literatura. A forma como descartou alguns escritores — como, por exemplo, Laurence Sterne — certamente lhe causa problemas póstumos.

Lá pelo final dos anos 50, Carpeaux escreveu uma Nova História da Música. É um livro utilíssimo para quem está começando a gostar de música erudita, pois traz um vasto painel cronológico da evolução da música desde a época medieval, mas é curioso como as pessoas que avançam no conhecimento do assunto, passam a rejeitar o livro como se fosse um mero Eu e a Música. E com razão. Em sua história da música, ele foi bastante agressivo com alguns compositores que detestava e muito indulgente com quem adorava. (Neste minuto, penso que minha devoção à Bach e Bartók deve-se em boa parte a ele). Sua avaliação de Tchaikovski é simples. Em mais ou menos duas páginas, Carpeaux detona o famoso russo. Tchaikovski era mau orquestrador, desrespeitava algumas convenções, “jogava fora” temas de uma forma meio incompreensível — por que Tchai não retoma o motivo das quatro notas iniciais de seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra?, aquilo é um achado!

E nos anos 70 eu era um adolescente e lia Carpeaux. Por inexperiência, assumia todos os seus gostos. Como Carpeaux escrevia maravilhosamente e era inteligente, sedutor, radical na medida certa e sofisticado para a época, a leitura da Nova História parecia uma forma de criar uma ponte sobre minha vasta insegurança. Obviamente, assumi seu desprezo por Tchaikovski.

Muitas águas passaram e, anos depois, me apaixonei pela música de Shostakovich. Quem acompanha meu blog talvez lembre da série que escrevi em 2006, ano do centenário de Shosta. (A propósito, um dia juntei tudo aquilo, deu 36 folhas A4…).  Bem, mas digo isso apenas para deixar claro que eu tenho suficiente vivência com a obra de Shosta para reouvir com atenção algumas obras de Tchaikovski e cair do cavalo.

Pois hoje sei que o compositor Dmitri Shostakovich, tal como o conhecemos, não existiria sem Piotr Tchaikovski. Pois as ideias que aparecem prontas em Shosta nasceram em Tchai. Pois Shosta só pode ser tão, mas tão emocional, colorido e maluco porque Tchai fez quase o mesmo antes. Pois Tchai era o aval para Shosta ser tão expressivo e exagerado, principalmente nas Sinfonias.

Relendo muitas entrevistas de Shostakovich, li o que antes pensara ser mera manifestação de ufanismo: ele conhecia minuciosamente a obra de Tchaikovski. Grande parte daquilo que Shosta desenvolveu em suas sinfonias estão em Tchai, nas sinfonias e Abertura de Romeu e Julieta. Há ali todo um Shostakovich a ser amadurecido, ali está a alma russa e as melodias russas segundo Shostakovich. Resultado: não falo mais mal de Tchaikovski. Passou a ser, da noite para o dia, um compositor fundamental… Confiram! Ouçam a Abertura Romeu e Julieta e digam-me se não há nela um Shosta mais meloso, mais delicado. Hein? Hein? Nunca o amor de Shosta por Tchai foi tão tangível para mim antes de ouvir a citada Abertura. É um tapa na cara, é estupefaciente.

Abaixo, mostro um dos melhores vídeos de todo o YouTube. Trata-se de uma gravação do Concerto Nº 1 para Violino e Orquestra de Shostakovich. O violinista é David Oistrakh, a quem o concerto é dedicado. Há várias versões no YouTube. A que escolhi está completa, mas o que me interessa mostrar começa aos 4 minutos do vídeo abaixo (o 3º de cinco). É o terceiro movimento do concerto e seu segundo movimento lento. Começa altamente dramático e, aos seis minutos, torna-se perfeitamente tchaikovskiano,

e abaixo (1min50) começará a longa cadenza do mesmo movimento, notem a inversão em relação ao habitual: o movimento que começa arrebatado termina tristíssimo. Puro Shostakovich em continuidade a Tchai.

E aqui começa o típico finale de Shostakovich. Espetacular e emocionado como aquele Capricho Italiano.

Este concerto, como já disse, foi dedicado a David Oistrakh, o violinista desta gravação que vocês viram, se viram. Existe o registro do telefonema que Oistrakh fez para Shosta logo após a estreia. O tom da conversa é de amizade formal, respeitosa. O compositor diz que o concerto foi melhorado. David começa a se desculpar por ter acelerado aqui e ali, faz algumas perguntas, nota-se que está constrangido, que entendeu a resposta de Shostakovich como uma ironia e que aceitará a reprimenda. Ouve Shosta dizer:

— O concerto é teu, estava tudo certo, cada andamento. Eu não sabia que era tão bom, sabe? Você iluminou a partitura, ouvi coisas que não imaginara.
— Mas não incluí nada, Dmitri…
— Claro que não, David. Eu fiquei muito feliz, você entendeu a música melhor do que eu.

E deve ser verdade. Shostakovich foi um tremendo compositor, mas sabemos que o um grande executante pode fazer por uma música. Quem ouviu o vídeo pode comprovar.

(A gravação desta conversa — que transcrevi de memória sujeita a chuvas e trovoadas — é o último som que se ouve no filme de Alesandr Sokurov, dedicado a Shostakovich, Sonata para Viola).

Então, o título do post se manteve: Shosta revelou Tchai para mim e talvez para outros e Oistrakh revelou o Concerto para Violino e Orquestra a Shostakovich. Não, eu não revelei nada de Carpeaux.

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34 comments / Add your comment below

  1. O que eu não gosto mesmo é quando voc~e escreve Shosta. Dá um calafrio…

    Mudando de assunto por via lateral, você já deve saber da tutela antecipada que a Juliana Paes teve deferida contra o José Simão, da Folha. Péssimo precedente para ti. O engraçado é que, no mesmo dia em que li essa concessão a favor da Globo, o jornal deles publicou na sua coluninha de humor mais umas gracinhas espúrias, chamando o presidente de Mula. Imagine se a Globo recebe citação de liminar deferida “censurando-a” contra o uso da corruptela… logo colocariam na primeira página a agressão e a censura, etc. O judiciário brasileiro não é uniforme em suas decisões e as súmulas vinculantes só protegem o abuso de poder, nunca a opinião pública, para não dizer dos direitos daqueles que, por “natureza” econômica, não tem direitos…

    Acautele-se, portanto, contra s cautelares polonesas!

        1. Pessoal,
          Um juiz também processou a Ana Maria Braga e a Globo por criticarem uma decisão sua. Não conheço a crítica, mas que eu saiba, a nossa obrigação é acatar uma decisão judicial, mas proíbir comenta-la é um choque no estado de direito.

          Quanto aos políticos, eles enfrentam bem melhor as brincadeiras: Mula, Molusco, Lulla (este há pouco tempo atrás seria ofensivo, agora é sinal de amizade), Serralho, Yoda, Martaxa e tantos outros. Esse defeito talvez seja o único que não podemos imputa-los.

          Milton, tudo bem, mas que o Shosta é bem melhor que o seu mestre não há dúvida. Também fui influenciado por aquele livro, aliás presente teu, e hoje tenho discordâncias, como tu, claro, mas ainda acho o Tchai chato, ou dispersivo. Dificilmente presto atenção a música inteira, mas não radicalizo.

          Abraço

          Branco

    1. Eu não sou viado (ou homossexual), mas estou pensando seriamente em deletar os ataques homofóbicos em meu blog.

      O Jacó está fazendo isso pela terceira ou quarta vez. Não me importo com quem me chama de imbecil, mas não concordo com esses ataques gratuitos a outrem. Quem vem aqui vai pensar que eu tolero bem, que concordo, que acho engraçada essa baixaria, etc. Não é nada disso. Tô fora MESMO!

      Além do mais, desconheço quem, no Brasil, goste de Shostakovich e não o chame de Shosta. O pessoal do PQP Bach (2500 visitas diárias) faz.

      1. Deixar Claro,
        Tchai era ….
        foi uma ironia ao Jaco.
        Abomino falta de educação e agressividade (a não ser contra o Guinazu, claro).

        Quem não gosta do jeito que escrevesm, basta não ler.

        Augusto, prefiro achar que seja intimidade sim, e isto é um dos prazeres da vida. Grandes artistas nos fazem sentirmo-nos maiores e muitos deles parecem que são nossos amigos: Truffaut, Richter, Bergmann, Mann, Borges, Montaigne (Pierrot, Karl, Ing, Tony, Zé, e Michel). Não é assim ao final do Donna Nobis Pacem da Missa?

        Pergunta : não há personalidades que ao morrer não nos sentimos como se tivessemos privado com eles? Não perdemos interlocutores? Ou terei virado psicótico?

        Branco

  2. A superioridade da música de Shosta sobre a de Tchai não é uma questão de gosto e sim de qualidade musical, tendo a ver com amplitude formal, ambição harmônica e grau de aderência ao principle of developing variation, inventado por Brahms e presente nos maiores sinfonistas desde então (como Bruckner, Mahler, Shosta e Nielsen – e, ao mesmo tempo, notavelmente ausente em Wagner, Debussy e Stravinsky), conforme formulado por Walther Frisch (http://music.columbia.edu/people/bios/user/wfrisch).

    Tem a ver com certa burocracia na construção do discurso musical, da mesma ordem da que diferencia improvisadores mais inventivos dos mais previsíveis.

    1. Obrigado, Augusto.

      Quando li o que o Branco escreveu me deu uma reboldosa na cabeça (…). Sabia vagamente o que responder, mas levaria horas para formular uma resposta inferior, ainda que na mesma linha, da que escreveste.

      Abraço.

      1. Concordo contigo Milton,
        não me permito concordar com o Augusto devido à minha ignorância (e inveja dele) no assunto.
        A gente percebe “coisas” faltando ou não suficeientes evoluídas, ou dispersas, sei lá. Não é um motivo feio, de mau gosto, mas este desenvolvimento. E isto é que deixa-me relapso ao ouvi-lo. Mas í, no meio caso, falta-me meios para saber o porque.
        Obrigado pelo link
        Branco

        1. Essa lacuna que percebes, como idéias insuficientemente desenvolvidas, é precisamente o que diferencia Brahms e seguidores do restante: uma textura que se realiza pela permanente reelaboração motívico-temática, tão bem formulada por Frisch, editor do Journal of 19th Century Music, em sua obra seminal Brahms and the principle of developing variation.

          Já o fato de perceberes a presença ou ausência desta qualidade numa música só reforça a tese de que leigos tem sim, ao contrário do que alguns “eruditos” pretendem, o direito e o acesso a uma justa apreciação da qualidade musical – tanto mais legítima por que inteiramente intuitiva, independe de quaisquer conhecimentos técnicos. E o argumento mais contundente em favor disto é que o gênero sinfônico – e, de resto, em maior ou menor grau, toda música composta no período, denominado de prática comum, compreendido entre o barroco e o romantismo (até, portanto, imediatamente antes das dissoluções da tonalidade clássica no início do século 20) – pretendia ser assimilada pelo público leigo de sua época – cuja competência auditiva era geralmente, é preciso reconhecer, bem mais evoluída do que agora.

  3. Caro Branco,

    Quando o Judiciário é criticado, não deixa barato, mas a decisão contra o José Simão denota poder da Globo contra seus adversários e críticos ou simplesmente zombadores, e a decisão pode muito bem não ser acatada por simples ação de desobediência civil ou movimentação social, uma vez que as sentenção judiciais são proferidas por homens com interesses, e não por deuses magnânimos. Na questão Globo x Zé Simão, era o caso de propagar as graçolas a partir de milhares de emitentes, até a Globo pedir arrego e esquecer seus achaques, e não acatar decisão que constitui censura pura e simples.

    1. Marcos,
      sim. O problema destas “interdições” é que começa a imperar a lei do quem pode mais. Eu não sei, mas foi a Globo ou ela que pediu o mandato? No caso daquela chatinha (ops! será que vai haver processo?) da Carolina Dieckmann contra o Pânico, foi pessoal.

      Querendo ser literal. A tua idéia é muito boa, o único proibido foi o Zé Simão, logo todos nós podemos falar daquela….. (ops!), talvez assim estes atos de censura acabariam. Isto não seria desobediência civil, ao qual discordo. Afinal, tem muita gente que não paga imposto por se dizer contra.

      Branco

    1. Ora, meu amigo. Foste tu quem me chamou a atenção para Oistrakh. Eu o achava um dos grandes, mas não o destacava dos demais.

      Eu é que agradeço.

  4. Milton, Milton: não é impressionante como cada vez mais se entende menos a *função* do crítico?
    Iso se é que ele tem uma função. Ou não foi a toa que Sófloces fez o que fez e condenou a todos?

    Meg

    Engraçado que a primeira coisa que eu iria falar antes de comentar o conteúdo do post (uma das partes do conteúdo, pois o texto é variado antes do assunto de fundo) era justamente o *SHOSTA*, mas sendo assim…:-(
    M.

  5. Gostem ou não de Tchaikovsky, falem mal ou não de Tchaikovsky, isso pouco importa, visto que o seu lugar na História da música está mais do que assegurado, e, questões subjetivas à parte, num patamar acima do de Shostakovich. Isso tudo sem se reforçar a ideia apresentada no texto de que, sem a influência de seu antecessor, S. não seria grande como foi. Ademais, o natural (e usual) é o caminho inverso do exposto: através de T. é que costuma-se vir a apreciar S.
    A constante e “pseudo-intelectualizada” desvalorização de T. teve início no Ocidente, especialmente na poderosa e suprema influente Alemanha, que por razões musicais e posteriormente políticas (não há de se desprezar isso), temia uma eventual tomada de seu posto de maior formadora de grandes compositores, sinfonistas e orquestradores, notadamente Bach, Beethoven, Brahms, Bruckner, Wagner, R.Strauss, Mahler etc. Isso, claro, excluindo Mozart, um germânico “lato sensu”. 😉

    1. Pode até ser, Rodrigo, que através de T. se venha a apreciar S.. Só não percebo nenhuma influência da música do primeiro sobre a do segundo. Intelectualizada ou não, ocidental ou universal, já a desvalorização relativa de sua música ante paradigmas musicais mais elevados pouco tem a ver com germanofilia, eslavofobia ou qualquer tipo de nacionalismo – em última análise o grande vilão nos mais flagrantes casos de supervalorização estética. Querer que a música de de Tchai se equipare à dos epígonos do eixo de compositores austro-germânicos do século dezenove é o mesmo que elevar a importância da música de, digamos, Villa ou Ginastera a de epígonos do século 20 tais como Bártok, Debussy ou Stravinsky.

      Tchai e Villa são, sem dúvida, estrelas de primeira grandeza de suas músicas nacionais; já no âmbito da música universal, não é bem assim. Mas não sejamos, afinal, tão severos – já que não há nação sem heróis.

      Como bem foi lembrado num comentário abaixo deste, a chave para a apreciação musical está no exercício da “audição comparada”.

      1. Complementando: a maior popularidade desfrutada pela música de T. sobre a de S. se deve, fundamentalmente, à relativa simplicidade, quase esquemática, da primeira ante a complexidade harmônica e formal da segunda.

  6. desculpe chegar tão atrasado, milton.
    mas esse texto é o tipo de aula que falta nos nossos cursos de música, principalmente nos superiores.
    é como assistir a uma inexistente disciplina que chamasse “música comparada”.
    conhecer a obra de alguém assim nos dá direito a certas intimidades mesmo. lembro de um amigo, andré gonçalves, que escreve stevie em seus posts sobre stevei wonder.

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