A Augusto Maurer e Ricardo Branco
A obra literária que mais me satisfez até hoje foi Doutor Fausto, de Thomas Mann. Não o defenderia como “o maior romance de todos os tempos”, é apenas o meu maior. Ele tem o formato e as qualidades dos romances do século XIX, mas é o conteúdo é moderno; ele começa como uma serena farsa, mas acaba sendo uma amostra do que se veria num inimigo intransitivo de Thomas Mann: Thomas Bernhard.
Esses dois autores têm em comum o interesse extremo pela música e, mesmo que Bernhard diga que sente desprezo por seu xará, creio que eu e vários leitores apaixonados pela música podem fazer o terceiro vértice entre eles. São estupidamente numerosos os grandes escritores que tinham — e têm — profundo amor à música erudita (bom assunto, Milton, bom assunto, anote aí), porém poucos conseguiram fazer dela personagem ou uma obsessão tão arrebatadora que as lembranças de seus livros chegam ao ponto de “ter som”. Doutor Fausto e O Náufrago. Herbert Caro, em nossos saudosos encontros informais de sábado pela manhã na King`s Discos, entusiasmava-se demais com Auto-de-Fé e Doutor Fausto, parecia conformado com sua elogiada tradução de A Montanha Mágica, e voltava a falar de Fausto e Canetti. E de música. Imagino sem medo de errar que o tradutor preferia Doutor Fausto a qualquer outra obra de Mann.
Leio Doutor Fausto como quem lê uma novela curta. Não noto nada ali que não contribua para compor a narrativa, nada me parece estéril, da primeira a última linha. As interpretações são livres, ou nem tanto. Tenho convicção de que o nazismo é um viés à narrativa. Seu assunto, e Caro falava nisso, é sobre aquilo que Mann chamava de “a crise da arte ocidental”, tanto que quem irritou-se com o livro foi a Segunda Escola de Viena, na pessoa de Arnold Schoenberg, pois o serialismo torna-se coisa do diabo… (Adrian Leverkühn NÃO se orgulharia, pois sua obra inexistente foi maior que a de Schoenberg). Lembram da nota que Thomas Mann teve que acrescentar ao final do livro, atribundo as teorias dodecafônicas ao Harmonielehre de Schoenberg, e dizendo que associou tais teorias apenas a seu personagem fictício em contexto ideacional, etc.?
Leio o livro como algo muito direto e até visceral… É um Mann raivoso e nunca repetido, nem antes, nem depois. Mann, um homem que gostaria de ter sido um compositor como Cesar Frank — palavras suas —, investe contra aquilo que estava sendo criado por sua geração. O romance é um canto de cisne bastante distorcido de toda uma música e literatura (foi mesmo?) que estava sendo abandonada e que serve ao admiravelmente ao narrador Serenus Zeitblom.
Meu respeito e, quem sabe, compreensão do livro de Thomas Mann faz com que eu releia sempre e saiba quase de cor toda a explicação do professor Kretzschmar para a Sonata Op. 111 de Beethoven, o capítulo VIII do livro. Muito mais conhecido é o diálogo com o Demônio (Cap. XXV), onde Adrian Leverkühn faz “alguns pequenos acertos” com o homem. São páginas arrepiantes e é curioso que, a partir da leitura do livro – lido quando tinha… de que ano é a tradução de Caro? … 1984? Então tinha 27 anos — passei a relacionar o diabo como algo que exala frio e não calor. Ah, as “impressões equivocadas” dos católicos… Não, nada de fogo, nada de diabinho infantil, estamos falando de um diabo real, enregelante, meus amigos!
Doutor Fausto é uma história íntima, pessoal, ontológica e só fala ao sociológico a partir desta perspectiva. Aquelas chatas argumentações que veem o livro como político — seria uma metáfora do Nazismo e da Europa pré e pós-guerra — servem para A Montanha Mágica e o pré-guerra. Acho tão complicado reduzir o Fausto a tal modelo que bocejo só de pensar no esforço que alguns comentaristas fizeram para estreitar um romance cujo assunto principal é a mortalidade a uma alegoria política. Como já disse, Doutor Fausto é profundamente ontológico, nada sociológico e, aos que ainda torcerem o nariz, gostaria de perguntar onde o serialismo tem mais a ver com a política do que com a evolução de uma arte que há anos estava passando por rápidas transformações com Wagner, Mahler, etc. e que parecia ter chegado a um estágio onde só especialistas a poderiam fruir.
Deveria seguir mais um pouco, porém, meus caríssimos sete leitores, já é meio tarde, sabem?
Deveria ter seguido, Milton, deveria ter seguido!
Ótimo post.(Talvez devesse substituir o PHES para o meio da semana e um deste calibre para o sábado, sobrando mais tempo para comentar).
Mann é um de meus cinco ou três autores preferidos. Tudo que foi lançado dele por aqui eu devorei como um devoto. Suas obras que mais me arrebataram: Doutor Fausto, Os Brodenbrocks, Montanha Mágica e os dois primeiros volumes da tetralogia de José e Seus Irmãos. Não sabia que houvera antipatia entre Mann e Bernhard; apesar das maravilhas do autor de Naufrago, para mim Mann é superior e um autor muito mais completo.
Agora sobre Schoenberg, no livro do Alex Ross, O Resto é Ruído, o jornalista diz ter havido uma parceria harmoniosa entre Mann e o criador do método dodecafônico, tendo sido longas as sessões de aprendizado com o músico.
Acho que DF tem sim um forte significado como alegoria da Alemanha nazista, e não se pode ignorar isto, tanto pelo que há de visível na obra como por um atestado de maturidade política de Mann que, num curto momento do passado, chegara a defender o facismo. DF é por demais suntuoso para ser apenas um compêndio para fanáticos por música erudita, assim como dizer que O Perseguidor, o conto semi-biográfico sobre Charlie Parker, é um mero tributo do gosto de Cortázar pelo jazz. Neles há um inerente e incontornável estudo sobre a CONDIÇÃO HUMANA. Desde que li uma resposta sua a um comentário sobre Ulisses, acho que você caiu na armadilha natural de não resistir ao fardo destas expressões manjadíssimas como condição humana e modernidade. Mas o fato é que toda grande obra literária não foge a isto, e tanto é maior por nos oferecer a CONDIÇÃO HUMANA fresquinha, como se fosse a primeira análise do protótipo. DF é um entremeio de séculos de conhecimento humano, com uma roupagem proposital de reação à MODERNIDADE apresentada pelo estilo narrativo de Mann, que sempre foi condenado pelos críticos acadêmicos por ter fortes resquícios de oitocentismo, por ser barroco e pouco INOVADOR. E esses críticos, na mesma proporção em que eram calibrados na mais focal especialização, tendiam a ser obtusos como leitores, pois Mann era um autor independente, contrario a modismos e avesso ao mundo moderno. Adrian Leverkün, numa das passagens memoráveis da obra, grita que iria reinventar a nona sinfonia de Beethoven: abaixo a nona sinfonia. E ele acaba como um gênio fracassado, destruído por sua incapacidade em se manter afastado e imune à sociedade. Os asilados de Montanha Mágica são o símbolo mais óbvio deste pensamento manniano de afastamento e insolvência. O professor Settembrine, um dos alteregos de Mann, era a ponte entre o passado que ainda reservava uma esperança de evolução moral para o homem, e o presságio gritante de que as próximas décadas da história seriam a extinção completa de que essa evolução algum dia poderia vir; em seus brilhantes monólogos com Hans Castorp, a premonição de que todos aqueles confinados caminhavam para um lamentável estágio de obsolecência diante um mundo que trocara o humanismo pela técnica desenfreada. Toda a obra de Mann, numa radicalização total, é premonitória e reacionária. Quando esperavam que produziria, do alto de sua posição confortável de clássico vivo, uma obra que refletisse sobre a Alemanha pós-hitler, ele, em outro atestado de independência, escreve a magnífica tetralogia sobre… José, refugiando-se numa história bíblica, “a mais bela história que Deus inventou”; e mesmo nesse infinito quadro sobre um dos patriarcas judeus, vemos a alegoria sutil, a contestação, o empunhar da escrita como uma arma contra a mesquinhezação e a mediocridade, contra o avanço do poder sobre os homens e seus cenários. Como disse Phlip Roth em relação a si mesmo, desde jovem optou por se refugiar nos cantos do discurso. Por isto DF não é mais uma história da música que a história da decadência humana, do grande engodo do homem por ter optado pela senda avessa e mais larga.
Te invejo muito por suas conversas com Caro. Canetti é outro dos meus preferidos. A obra que mais podemos aproximar dele de Mann não é o seu único romance, mas o grandioso ensaio sobre o poder e a dominação intitulado “Massa e Poder”. Também um grande conhecedor de música, o último capítulo desta obra é tão arrebatador quanto a nona sinfonia_ sem exageros. Outra arma para poucos que irão ler num mundo onde cada vez mais números e alienação e menos homens.
Toda o romance alemão a partir de Mann demonstra um saudosimo pessimista diante a destruição para a qual a sociedade segue. Num romance ,a seu modo particular bastante interessante, de Gunter Grass, o “A Ratazana”, também uma alegoria radical (e psicodélica) o homem na cápsula espacial que fala com a ratazana, tentado contornar de toda maneira o anúncio que o roedor faz de que toda a Terra que ele vê lá de cima está desprovida de um único ser humano e tomada pelos ratos, devido a uma hecatombe nuclear, o homem da cápsula nuclear diz:
_ mas e se nós pudéssemos voltar atrás e refazermos tudo da maneira certa, compreendendo melhor, sendo mais caridosos e procurando dirigir a técnica à nosso benefício e não contra nós; e se nos fosse dado uma outra chance com base nesse compromisso.
Ao que a ratazana responde:
_ Ah, que belo sonho.
Belo comentário, Charlles. Achoq que a alegoria nazista pode até estar lá, mas o cerne do romance é a arte do século XX e, principalmente, a música.
Ter conhecido Caro foi realmente um privilégio. Assisti um curso sobre Vermeer no Instituto Goethe e depois tive coragem de dirigir-lhe a palavra na loja de discos que nós frequentávamos. Ele era muito alemão… Quando a gente não conhecia uma música que ele achava absurdo ignorar, ele procurava o disco na loja e nos dava, dizendo que a gravação era uma porcaria, que a gente não desse bola. Ele adorava aquelas conversas com jovens, mas jamais admitiria. Gostava muito dele.
Charlles,
o seu comentário é um daqueles que, depois de lido, apreciado e amado, dá uma vontade de dizer: “Puxa, é bom estar vivo!”
Pô Ramiro! Nem sei o que dizer…obrigado!
Penso que textos de ambição ontológica que não de desdobrem em questões ônticas se condenam a voos curtos. Não me lembro quando a tradução do Caro saiu, mas li o livro tão logo apareceu nas livrarias. Devia ser jovem. Como os demais romances de Mann, é ambicioso demais, mas talvez tenha confundido as digressões fanáticas d’A Montanha Mágica com Doutor Fausto e feito uma salada só na minha memória. Lembro-me da primeira obra executada de Leverkühn, Fosforências do Mar, a qual ele mesmo se refere depreciativamente, pois considerava encerrado o capítulo da música descritiva, partindo daí para aquelas chatices de Schoenberg (uma das coisas que achei insuportável no romance, pelo que me lembro: a descrição em pormenor de determinada peça com suas inovações técnicas, andamentos e coisa e tal, se não me traio mais uma vez). Associei mentalmente a música ao Debussy, pois tinha um disco dele com duas ou três suítes (ou concertos?), e uma era La Mer. No final das contas, minha lembrança é de um romance de tons excessivamente apocalípticos, que poderia, sim, ser relacionado com o nazismo ou qualquer regime de corte totalitário, ao qual estaríamos condenados em razão da destruição da cultura (se não me engano, um dos personagem – não seria o próprio Zeitblom – teria traços de Theodor Adorno, cujo mau-humor com toda cultura contemporãnea era notório e expresso em suas obras, principalmente, se é que me lembro também, em Dialética do Esclarecimento).
Para os leitores do Milton, um recado: não se intimidem. Doutor Fausto não é “A Bíblia” do homem culto. Pode-se dizer não a ela, como a qualquer coisa. Ou novamente: nada é sagrado. Assim, não sendo especialista no assunto, qualquer tipinho desavisado, como eu, pode fazer suas reticências. Mas convém não exagerar, senão o Milton dispara raios contra vocês. Afinal, cada leitor é um deus para seus livros (não o criador mas, embora não os tenha criados, os livros só ganham vida se exoste o leitor para lê-los e oferecer algum significado e sentido para eles, com tão humanas fisionomias).
Finalizando: obra menor, apesar do tamanho, José e seus irmãos era, ao menos, mais divertido, com todos aqueles truques de folhetim da Bíblia hebraica temperados pela ironia jocosa de um Thomas estranhamente disposto a uma narrativa mais “natural”, sem firulas, fricotes, fixação em estilo e estabelecimento de um padrão. Perdão, Milton!
Para o Charlles: esse romance do Grass é aquele que começa na pré-história, ou ao menos com a ratazana contando, desde do fim do mundo, a história do homem sob seu aconselhamento contínuo (e sempre se dando muito mal mcom as mulheres, sempre mais espertas que eles), e aí deu no que deu, o tal fim de mundo onde restou-nos não mais que um sonho?
Veja como o mundo é: não consegui terminar José e seus Irmãos…
Não me recordo a parte das mulheres que vc menciona. Mas, entre tantas loucuras que A Ratazana contém, (como uma revisão das fábulas infantis teutônicas e uma expedição marítima de mulheres pelo mundo à coleta de líquens), o anão Oskar Matzerath, já velho, reaparece. Um livro que Grass aparentemente compôs sobre efeito de LSD, mas perfeitamente coerente e lúcido.
q comentário.
milton, deveria seguir (e escrever com menos sono heehe, tem alguns tropeço ali)
Tropeços? Pô, me aponta, então! Gosto que me corrijam, não há revisores de blog!
:¬)))
disse tropeços pq são exatamente isso, qdo pensamos uma coisa e escrevemos outra ou qdo nos repetimos.
“de que não é a tradução de Caro”: de q ano?
“um romance sobre que é sobre a mortalidade”
abraço e belo post.
Corrigi. Obrigado!
q belo comentário, quis dizer, referindo-me ao primeiro, do charlles.
nem li esse do marcos nunes TODAVÍA
Milton,
coincidência nossa conversa de ontem (msn).
A dedicatória tem alguma coisa a ver com o diabo?
Não gosto de citar “o melhor”, pois creio que o leitor faz o melhor ou os melhores (claro, não com todos – LW que o diga).
Mas TM é um autor que escreveu alguns livros em que tive um sentimento que não consigo descrever ao encerrá-lo. Daqueles que encontras em algumas obras de FD, AT, Guimarães Rosa (vai haver discussão), Roth (não o técnico) e quem mais? Ou em algumas composições do Bach (sempre terminadas em fuga).
Acho o DF uma obra multifacetada, ela pode ser interpretada, segundo o hermeneuta, em apectos políticos, musicais, artisticos, mas a condição humana…. Vejo-a, acho que é principalmente este acordo humano com o diabo para atingir a transcedência e o preço que pagamos por perder a inocência. A morte da sobrinha, para mim, é uma das maiores passagens. E o que enfrentamos….
Há reação por parte do Mann, um burguês, mas também esta contradição entre beleza e decadência, serenidade e força, novo e antigo.
A vitalidade de uma obra como esta é que , ao lermos de novo, ela se nos apresenta diferente. Isto é ser grande.
Abraço
Branco
PS.: e nos permite belos posts como o que tu escreveste
É verdade. Eu nunca a reli de cabo a rabo, mas sei que quando o fizer, será totalmente diferente. O livro é o livro e mais seu leitor… (Cópia de… Sartre?)
Não sei se é de Sartre, não me parece.
Pensei mais em Husserl
Branco
ah, Milton, vc me deixou ainda mais com vontade de ler esse livro, que não consigo encontrar aqui nesta cidade com tão poucas opções de livrarias..
Eu vou te mandar um amanhã. Será de sebo, claro, mas qual é o pobrema?
Vendo Vendo cópia Xerox.
R$ 1000,00
Branco
tá,
Sartre vem de Husserl
Branco
7 mil leitores?
cogent situation!