Noite de autógrafos e mais

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Sexta-feira, Marcos Nunes deixou este conto nos comentários deste blog. Eu não estou dizendo que aqui os comentários são habitualmente melhores do que o post?

Noite de autógrafos

Olhava para todos que entravam na livraria, ele ali, sentado numa cadeira estofada velha, posto atrás de uma mesa, tendo à sua direita dezenas de exemplares de seu último livro, cujo lançamento se dava naquela noite, mas parece que não, ou pela divulgação ruim, ou pelo desinteresse dos leitores pelo volume, ou ainda pelo próprio e quase anônimo autor.

Pagara pela edição, pequena, enviara algumas cartas, convencera alguns amigos a comparecer, contava com algumas presenças, mas as poucas que vieram foram rapidamente embora, sob um constrangimento às vezes desalmado, ora piedoso, mas o comentário mais regular era “Será que ele não desistirá nunca?”

Seu segundo romance, depois de um primeiro volume de poemas e outro de contos. Alguns elogios, principalmente aos contos, alguns do volume, não todos. O primeiro romance não teve êxito, ele mesmo reconheceu. Mas apostava tudo nesse segundo, escrito com vagar, revisto dezenas de vezes, corrigido, reduzido ao mínimo, escrita seca, com um mínimo indispensável de adjetivos, trama complexa, densa. Um amigo escreve um prefácio super elogioso, e o investimento desta vez valeria a pena.

Assim pensava antes dessa noite. Depois de algumas vendas, mais ninguém. Pudera, não servia-se nem cafezinho neste lançamento! Pela livraria circulam pouquíssimas pessoas. Entre elas, percebe um sujeito pequeno, pele um pouco morena, cabelos encaracolados vastos, castanhos com fios brancos, óculos redondos sobre sobrancelhas grossas entre um nariz algo grande e caído sobre os lábios murchos. Parecia um estudante daqueles eternos, que freqüentam os bancos escolares à fuga das responsabilidades da vida adulta. Teria vindo para o lançamento e encontrava-se perdido, sem entender que o escritor era ele, tão óbvio, sentado atrás de uma mesa antiquada, repleta de volumes novos, ainda cheirando a tinta?

Um tipo esquisito. Fuçava um livro e outro, lendo, lendo… Sorriu e pronunciou alto o nome “Carver!” quando se deparou com o volume recém-lançado. Malditos norte-americanos! Escrevem qualquer coisinha e vendem aos milhares, milhões! E o que são afinal Fritzgerald, Hemingway, Faulkner? Bah, evocadores da barbárie! Voltou a olhar o cara, mas ele não estava no mesmo lugar. Reencontrou-o, mas sem qualquer livro na mão. Prestou atenção: sob as vestes largas, havia coisa ali. Tomara que seja pego, o salafrário. Ladrãozinho de meia tigela, e ainda por cima com um péssimo gosto.

Cansou de esperar. Pegou um volume dos seus, sobre a mesa, e o pôs entre as páginas do jornal do dia, que carregava consigo por conter um aviso do lançamento. Uma pequena nota. Foi andando devagar, tentando representar o papel de um freqüentador qualquer da livraria. Terá o ordinário notado na sua presença anterior à mesa? Sabe-se lá. Mas chegou perto dele, sorrindo com simpatia mas mantendo um ar de conspirador. O outro também sorriu para ele, mas com um ríctus de dor. Sofrerá alguma doença? Estará de ressaca? Será que ele não comeu hoje? Chama-o com um olhar, e o outro se aproxima com naturalidade, enquanto ele age da forma mais suspeita possível. Quando estão bem juntos, o escritor passa para o outro o jornal e, dentro dele, um exemplar de seu livro.

— Vai, leva. É novo. Lançado hoje. Coisa boa.

Com a maior pachorra do mundo, o outro saca o livro do meio do jornal, folheia, lê o prefácio em poucos segundos, fazendo uma vista d’olhos, devolve o volume para o escritor e guarda consigo o exemplar do diário.

— Me gusta robar libros, fala com extrema simpatia o leitor, certamente lotado de exemplares surrupiados sob suas roupas (deve ter livro até na bunda, pensou o escritor).

– Me encanta se alguien se arriesgar a robar un libro mio, respondeu o escritor.

Mais uma vez o outro sorriu, e se foi. Cara esquisito, nem brasileiro é. Desgraçado. Prefere o idiota do Carver, o idiota do…, o idiota do…, inventivava, ficando possesso, quando notou que não estava mais com o próprio livro na mão. Grandessíssimo filho de uma puta, pensou consigo mesmo, mas se deu conta que não, falara a frase, e bem alto. Continuou então no mesmo tom, sorrindo às escâncaras. Grandessíssimo filho de uma puta, grande cara! Que ao menos o desgraçado leia o que me roubou – foi com essa frase que terminou sua explicação ao dono da livraria sobre a razão daquele sonoro escândalo. Lágrimas nos olhos de tanto rir, não sei.

Aos amigos, tudo.

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No dia anterior, Cassionei Petry publicara aqui trecho de uma entrevista de Roberto Bolaño:

R. Me gusta robar libros. Aunque ya no puedo robar, sería bastante vergonzoso ser atrapado, pero cuando era inédito, robé muchísimos. Pero muchos, muchos… Una vez con un amigo –que también era un buen robador de libros- hicimos una apuesta en la Avenida Corrientes, cuando había muchas librerías (creo que todavía hay bastantes): fuimos a Corrientes y Callao y nos pusimos uno de cada lado de Corrientes, y la idea era llegar hasta Cerrito habiéndonos robado por orden los siete tomos del En busca del tiempo perdido de Marcel Proust en librerías sucesivas.

P. ¿Lo lograron?

R. Sí, yo lo logré. Él no. Él creo que robó cuatro, tres, no llegó. […] De todas maneras, me doy cuenta de que perdí el don. Lo más extraño de cuando robaba libros es que yo sentía, físicamente, una especie de aura que me hacía invisible, y que efectivamente era así, porque he salido de librerías con libros de este porte (indica con sus brazos un tamaño enorme), así, al hombro, y no me veían. Era una cosa que tal vez, la gente me miraba y decía “no, no puede ser que se lo esté llevando de una manera tan evidente”… Pero ahora ya no lo siento más. […] Uno de los momentos más gratificantes fue ver a una persona robándose un libro mío cuando yo estaba en una Feria del Libro y que viniese a que yo se lo firmase. Cuando se lo firmé le dije “te agradezco mucho que te hayas robado este libro”, pero también le dije “está todo bien, genial”. Me encantó. Me encantó que alguien se arriesgara a robar un libro mío.

(entrevista de Bolaño a Rodrigo Fresán)

Arturo Belano, seu alter-ego, no romance “Los detectives salvajes” também rouba livros. Se bem me lembro um outro escritor ensina a Belano esta arte.

Mais Bolaño, citado pelo mesmo Cassionei logo após o dia do aparecimento do conto de Marcos Nunes:

Los libros que más recuerdo son los que robé en México DF, entre los dieciséis y los diecinueve años. […] En México había una librería extraordinaria. Se llamaba Librería de Cristal y estaba en la Alameda. Sus paredes, incluso el techo, eran de vidrio. Vidrio y vigas de hierro. Examinada desde fuera, parecía imposible poder robar un libro allí. Sin embargo, la tentación de hacer la prueba pudo más que la prudencia y al cabo de un tiempo lo intenté. El primer libro que cayó en mis manos fue un pequeño tomo de Pierre Louis… […] Pero fue una novela la que me sacó y me volvió a meter en el infierno. Esta novela es La caída, de Camus […] Después de Camus todo cambió. Recuerdo el ejemplar: era un libro de letras muy grandes, como un primer abecedario, de pocas páginas, de tapas duras, con un dibujo horrendo en la portada, un libro difícil de sustraer y que no supe si ocultar bajo la axila o en la espalda, pues no se amoldaba a mi americana de estudiante cimarrero, y que al final saqué a vista y paciencia de todos los empleados de la Librería de Cristal, que es una de las mejores formas de robar y que había aprendido en un cuento de Edgar Allan Poe.”

P. ¿Ha robado algún libro que luego no le gustó?

R. Nunca. Lo bueno de robar libros (y no cajas fuertes) es que uno puede examinar con detenimiento su contenido antes de perpetrar el delito.

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8 comments / Add your comment below

  1. Pô, legal que tenham gostado da historinha, uma brincadeira que inventei depois de ler a postagem e comentários a ela no dia da posterior, que não houve em razão da primeira e comentários…

    Circunstâncias seguintes: tava com um a ressaca tão braba no dia do texto sobre roubar livros que nem comecei a ler direito, passei uma vista d’olhos e percebi que não dava, tava no oriente do oriente do oriente, o melhor seria fechar os olhos.

    No dia seguinte, recuperado, voltei e dei de cara com uma enxurrada de comentários, achei tudo muito divertido e decidi, na hora, inventar uma historinha inserindo nela o Bolaño e mais um pobre escritor brasileiro. Ficou legalzinho.

    Hoje vi os comentários dalguns leitores (nem sei porque puseste o conto de novo, ele foi publicado ontem, sem ordenação de parágrafos, por compressão da caixa de mensagens), e vale avisar ao Charlles que eu não escrevi o continho sob estados alterados de consciência, nunca fiz nada que prestasse minimamente sob efeito de quaisquer substâncias, legais ou não, e Bukowski está aí para provar que quem o faz só escreve bosta, mas, como dizia, escrevi um dia depois, distraído vencedor, que é a melhor forma de juntar cacos e sair com uma parede de azulejos caótica mas bonitinha. E só. Mas deu para arrancar sorrisos dos leitores, o que é boa paga, apesar da superestimação de sempre – bá, não foi assim tão trilegal, no máximo bi, mas sem trocadilhos, por favor.

    A seguir, Milton, as últimas linhas com umas correções, coisa besta, mas só pra fechar o caixão:

    – Me gusta robar libros, fala com extrema simpatia o leitor, certamente lotado de exemplares surrupiados sob suas roupas (deve ter livro até na bunda, pensou o escritor).
    – Me encanta se alguien se arriesgar a robar un libro mio, respondeu o escritor.
    Mais uma vez o outro sorriu, e se foi. Cara esquisito, nem brasileiro é. Desgraçado. Prefere o idiota do Carver, o idiota do…, o idiota do…, inventivava, ficando possesso, quando notou que não estava mais com o próprio livro na mão. Grandessíssimo filho de uma puta, pensou consigo mesmo, mas se deu conta que não, falara a frase, e bem alto. Continuou então no mesmo tom, sorrindo às escâncaras. Grandessíssimo filho de uma puta, grande cara! Que ao menos o desgraçado leia o que me roubou – foi com essa frase que terminou sua explicação ao dono da livraria sobre a razão daquele sonoro escândalo. Lágrimas nos olhos de tanto rir, não sei.
    Aos amigos, tudo.

  2. Caro Nunes, claro que sei que escrevestes o conto de cara limpa, foi só uma referência pessoal ao Harry and Sally, a famigerada cena do orgasmo no restaurante.

    1. Argh, que referência! Da próxima vez minta; siga que citaste seminal página de nº 171, do Finnegan’s Wake, de Joyce, em que o personagem Strawliebchergstein diz: “Drinker jüls os trokervter mye soull in frehy son porsbeerteer!”

      1. Pô, Marcos! Queres acabar comigo? Eu menciono uma errata do subconsciente e tu me mandas o Finnegans`s Wake?

        Mas revido com a página 27 de Under Vulcano, cuja tradução livre seria: “Talvez toda a trama da minha vida seja estar aqui nesta cidade milenar encravada na base de um vulcão adormecido, ao fim dessa lenta descida em que já não tenho direito de alimentar a mais distante lembrança de esposa, lar, calor, sorriso, briga, escárnio cotidiano, abraço ou sobriedade; só para que meu destino se configure nesta cena em que estou bêbado, olhando a absurda situação de uma mulher dando de comer a um urubu de estimação em cima de uma mesa de bar.”

        1. Não sei se a sua citação do Lowry corresponde à realidade, mas a minha é 171, totalmente inventada, zombaria pura.

          Mas é claro que em nossa cultura de massas a tal cena do tal filme são marcantes. Volta e meia antologias se referem a ela. Mas eu prefiro lembrar da risada de Claudia Cardinale depois do gracejo sexista de Alain Delon na mesa de jantar em O Leopardo, de Visconti. Afinal, para que serve a bosta do refinamento que obtive depois de décadas dando polimento em meu bolinho de merda?*

          * serve pra ser exatamente o merda que sou hoje.

  3. Fico feliz que tenha gostado. Quando vi esse assunto, mais o post sobre o Bolaño, além de outro leitor mencionar algo nos comentários, dei uma pesquisada nos meus arquivos do PC para encontrar essas citações, que havia copiado de outros sites, só não me lembrei de anotar os links. Tenho muita coisa do Bolaño, desde que conheci sua obra, antes ainda de ele falecer.
    Aliás, os livros do Fernando Monteiro lembram muito os do escritor chileno. Deve ter sido uma de suas influências.
    Abraço.

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