Numa semana meio maluca de reformas em casa e necessidade de trabalhar fortemente fora do trabalho habitual para reforço financeiro, fui hoje a um café acompanhado do fantasma de Borges dentro de uma edição argentina de Ficciones. Ele, logo de cara, no conto La Lotería en Babilonia, envia um recado a quem lerá a narrativa.
…nadie había ensayado hasta entonces una teoría general de los juegos. El babilonio no es especulativo. Acata los dictámenes del azar, les entrega su vida, su esperanza, su terror pánico, pero no se le ocurre investigar sus leyes laberínticas, ni las esferas giratorias que lo revelam.
Em seguida, outra curiosidade: a “interpolación del azar” é semelhante à teoria do Barão de Itararé citada por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere? Passemos a palavra a Graciliano, que chamava o Barão pela junção de seu nome, Apporelly (Aparício Torelli):
Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.
Mas, falemos um quase nada sobre minha leitura: é claro que a parábola proposta por Borges extrapola sua função de ser uma realidade menor que representa uma maior. A loteria É a própria realidade da Babilônia. Ou seja, é a própria vida. A loteria e seus acasos é análoga à vida e vice-versa, regulada por suas regras, condições e infinitas contingências.
A relação mais óbvia que me ocorreu nesta rápida leitura enquanto tomava café é aquela entre a Compañía e a Igreja com suas “ventas de suertes”, o funcionamento silêncioso de Deus, “seu carácter antiguamente plebeyo” e com o total desprezo a quem não participa de sua… loteria.
Porém, o que interessa mesmo a mim é o conto extremamente irônico e divertido, que mostrou-me que posso fazer uma leitura fluida de Borges em sua língua e que isto é um enorme privilégio para quem vem de uma língua materna que produziu literatura bastante inferior…
Estou relendo “O Castelo”, de kafka, enquanto essa greve dos correios torna imprevisível qualquer data de chegada dos dois livros que encomendei pela Livraria Cultura (tão idônea, como sempre, que não deu nenhum afago de esperança, anunciando em palavras claras a indeterminação provocada pela greve.) Os livros são: As Aventuras de Augie March, que espero a vida inteira; e, como não deixaria de ser, o 2666, embora em relação a este é mais a influência do amigo do que o tesão da leitura. “O Castelo” me mostra o que sempre achei em relação ao Kafka, e que um dia pretendo escrever um ensaio sobre isso: de que o tcheco foi um escritor de humor fino e apurado_ um comediante que, ainda, (ou principalmente) criou uma inédita visão do absurdo.
Quanto ao Borges, o sacripanta do Paulo Francis, aquela impostura bêbada de intelectual, disse que não passava de uma imitação desproteinizada de Kafka. Bem merece ele que seu único seguidor seja o Mainard (que praga maior poderia ter do que esta?). Borges também foi um escritor com uma requintada veia cômica, um erudito conhecedor de todos os livros que, para uma pessoa comum, teria anulado qualquer possibilidade de aventurar-se a escrever, pois tudo já havia sido escrito. Para contornar essa impossibilidade de produzir algo novo, ele decidiu ser uma espécie de catalogador extremamente inventivo de tudo que mais lhe interessava do que tinha lido_ e para isso, haveria de usar uma quantidade infinita de ironia. Se não tivesse se criado na Argentina, essa província bastarda da Inglaterra, não teria o humor britânico de seu lado, e teria sido um anônimo qualquer. Por isso a cinzelada concisão e essa frieza cerebral, como se fosse o mais equilibrado e auto-suficiente personagem criado pelo Beckett_ um cérebro independente centrado no espaço, seguindo em frente indiferente a tudo que fosse ligado aos hormônios efêmeros do corpo. Até um conto que parte de uma falsa premissa passional, como é o maravilhoso “O Aleph”, utiliza a amada morta do narrador como uma chave de precisa excisão lírica para as reflexões filosóficas sobre infinitude e aleatoriedade cósmica. O que esse cérebro flutuante tinha de mais próximo ao calor de uma lembrança infantil era seu deslumbramento por espelhos, tigres e labirintos. Se Hemingway sonhava escrever igual Cézane pintava, Borges era a transcodificação na escrita da música atonal das pinturas de Georgio de Chirico e Max Ernst.
Borges é indispensável a qualquer pretendente a escritor. Eu o leio desde sempre, embora minha aproximação maior aos escritores norte-americanos e russos me tenha poupado de ter me contaminado com os caçoetes borgeanos. Eu estava envolvido demais em destrinchar a técnica de faulkner e Bellow, e meu desvio bipolar não precisava de mais um gênio. O que foi uma sorte, pois creio ser difícil aprender a escrever a partir da imitação cautelosa de Borges, um escritor com um estilo tão consolidado que não foram poucas as vezes em que, provando sua insuspeita humanidade, se viu preso nele como em um de seus preciosos labirintos. De tanto ler Borges, acaba-se aprendendo a não ter mais medo dele, e se descobre que tudo que poderia escrever sobre a personalidade apreendida pode cair por água abaixo (como o acima), pois há poemas dele cheios da mais subliminar fragilidade e lirismo, e há um conto dele, o monumental “Emma Zunz”, que bota toda literatura panfletária sobre direitos humanos no chinelo.
E o Borges humano e trivial aparece no delicioso (e indispensável): “Diálogos: Borges e Sábato”, lançado aqui pela editora Globo. Enquanto Sábato vai bebericando whisky, Borges tem seu copo com água por sobre a mesa de um bar, um dos cenários de seus diálogos. Numa certa altura, Borges confessa: ao ouvir uma canção pelo rádio, se enterneceu tanto a ponto de chorar. Perguntando a uma de suas sobrinhas quem estava cantando, a menina responde: “Os Beatles, tio!”
A questão, para mim, é que, enquanto Borges articula seus contos movido por uma espécie de metafísica da sorte, e obtém como resultado uma sutil defesa da lógica sistêmica que melhor se adapta às fantasias do acaso, isto é, o capitalismo, o Barão de Itararé aplica a ironia ao absurdo e demonstra, assim, que o labirinto não é a vida em si, mas a vida sob uma determinada lógica que é conveniente, por exemplo, à ditadura Vargas, como a loteria de Babilônia convém a Borges e sua sofisticada demonstração de que, se estamos sempre a produzir, de qualquer maneira, mais intricados vão de nossos labirintos, qualquer utopia só demonstra seu inverso, isto é, só assentará mais alguns tijolos que levarão a mais desvios sem fim ou com o fim previamente estabelecido, a morte, fim de toda narrativa. Uma das principais razões do culto por Borges é seu conservadorismo aristocrático à Argentina, algo fora do tempo e do espaço, e por isso mesmo afim a todo moto borgeano, e que pode ser acalentado como interdição a qualquer demanda que demonstre a incompreensão da movida humana em seu conflito contra as entidades a-históricas do “destino”. Como o Borges, pessoa, era uma criatura acomodada, cujos cadarços do sapato foram sempre amarrados pela mãe, enquanto ele viveu, qualquer grito que interrompesse o singelo ato de bocejar era visto por ele, como também por Nelson Rodrigues, como expressão da ignorância da humanidade diante da inexorabilidade de seu destino, revolta inútil e historicamente datada, até por se querer histórica, e não eterno retorno indiferente às nossas pobres angústias humanas, forjadas por consciências cuja máxima arte é a de construir labirintos, e tomar a narrativa por sentido. Enfim, um trágico cujo viver no século XX lhe causava tanta espécie que ele preferia ler poetas medievais, o que fez durante toda sua vida, e romances policiais, a oferecer sob a mesma receita a tranqüila demonstração da torpeza humana que atravessa os tempos e só se detém diante da verdade inútil que fecha o volume. Enfim, grande Aparício, para quem viver a vida é vivê-la agora; outros que ficassem com suas urdiduras dos destinos expressos nas torres das catedrais e suas escadas em espiral, o que lhe interessava era rir diante dos processos que nos engendra depois de engendrados por nós, pronome que significa eles, enquanto eles não somos de fato nós para desfazer todo esse novelo.
(Acho que tem alguma coisa errada com a merda dessa caixa. Então vai tudo de novo)
A questão, para mim, é que, enquanto Borges articula seus contos movido por uma espécie de metafísica da sorte, e obtém como resultado uma sutil defesa da lógica sistêmica que melhor se adapta às fantasias do acaso, isto é, o capitalismo, o Barão de Itararé aplica a ironia ao absurdo e demonstra, assim, que o labirinto não é a vida em si, mas a vida sob uma determinada lógica que é conveniente, por exemplo, à ditadura Vargas, como a loteria de Babilônia convém a Borges e sua sofisticada demonstração de que, se estamos sempre a produzir, de qualquer maneira, mais intricados vão de nossos labirintos, qualquer utopia só demonstra seu inverso, isto é, só assentará mais alguns tijolos que levarão a mais desvios sem fim ou com o fim previamente estabelecido, a morte, fim de toda narrativa. Uma das principais razões do culto por Borges é seu conservadorismo aristocrático à Argentina, algo fora do tempo e do espaço, e por isso mesmo afim a todo moto borgeano, e que pode ser acalentado como interdição a qualquer demanda que demonstre a incompreensão da movida humana em seu conflito contra as entidades a-históricas do “destino”. Como o Borges, pessoa, era uma criatura acomodada, cujos cadarços do sapato foram sempre amarrados pela mãe, enquanto ele viveu, qualquer grito que interrompesse o singelo ato de bocejar era visto por ele, como também por Nelson Rodrigues, como expressão da ignorância da humanidade diante da inexorabilidade de seu destino, revolta inútil e historicamente datada, até por se querer histórica, e não eterno retorno indiferente às nossas pobres angústias humanas, forjadas por consciências cuja máxima arte é a de construir labirintos, e tomar a narrativa por sentido. Enfim, um trágico cujo viver no século XX lhe causava tanta espécie que ele preferia ler poetas medievais, o que fez durante toda sua vida, e romances policiais, a oferecer sob a mesma receita a tranqüila demonstração da torpeza humana que atravessa os tempos e só se detém diante da verdade inútil que fecha o volume. Enfim, grande Aparício, para quem viver a vida é vivê-la agora; outros que ficassem com suas urdiduras dos destinos expressos nas torres das catedrais e suas escadas em espiral, o que lhe interessava era rir diante dos processos que nos engendra depois de engendrados por nós, pronome que significa eles, enquanto eles não somos de fato nós para desfazer todo esse novelo.
Marcos,
é o vibrador! Você ligou no 22O…
Li uns dez livros de Borges… Nâo consigo lembrar de nenhum. Parece que nâo aconteceu. Sei lá porque… Devo estar ficando cego.
Gosto de Borges, gosto pacas de Kafka, curti a citação do Apporelly, achei um barato o comentário do Charlles e to gostando dessa de escrever comentários curtos. Forte abraço.
Por uma grata coincidência, os livros que encomendei da Livraria Cultura chegaram; 4 dias úteis!!
E, Milton, não é de ver que lendo o prefácio de “As Aventuras de Augie March”, me deparo com a informação de que o herói do romance adquiriu todo seu conhecimento literário… roubando livros!!
O Mal viceja.
O Bem tranquiliza, o Mal dá prazer.