Nunca tinha lido nada de J. M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Nobel de 2003. Desonra é de 1999. Ficou pronto, portanto, nove anos após o fim do apartheit e cinco depois das primeiras eleições livres da África do Sul. Tal cronologia é importante, pois Desonra é um relato seco e brutal onde o racismo, a “necessidade” do cumprimento do politicamente correto e a luta pela terra estão presentes.
David Lurie é um professor universitário que leciona poesia numa Universidade da Cidade do Cabo. Tem uma vida desinteressante (até para o próprio) e bem organizada, a qual inclui uma prostituta às quintas-feiras. Depois de um encontro casual num supermercado com esta mulher — outro encontro casual num supermercado ocorrerá nas páginas finais do romance com outro gênero de prostituta –, Lurie começará a ver seu mundo desmoronar. Primeiro, tem um caso com uma aluna. O julgamento da Universidade é absolutamente inacreditável, mas digamos que Lurie não a auxilia em nada. Como um Michael Kohlhaas moderno, o professor resolve entrar no mundo da desgraça de forma reta e vencedora… Depois da exoneração, Lurie vai passar um tempo com sua filha Lucy numa fazenda do interior. Lá, mais eventos ocorrem: pai e filha são atacados por uma gangue de três negros e Lucy é sexualmente agredida num estupro múltiplo que resulta em gravidez. Por um lado, a filha do professor parece aceitar a ocorrência. Seria uma espécie de revanche dos negros, ultrapassaria as meras dimensões individuais. Durante o ataque, Coetzee, que se limita a narrar os fatos concisamente, “larga” — o verbo melhor talvez seja mesmo este — uma frase-tese inteiramente estranha à linguagem utilizada pelo romance: Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil… Obviamente, Coetzee não é trouxa. A frase não está ali por acaso. Com ela, ele pretende demonstrar ela a inadaptação da velha moral e da velha cultura aos novos tempos violentos.
A prosa seca de Coetzee não é das mais agradáveis, mas é eficiente para contar uma história onde o engenho está em significar muito: há a inutilidade cultural daquilo que Lurie faz e diz — o que dizer da ópera que nunca será ouvida e que parece ter sido composta para um cão que será sacrificado? –, há as desonras — a da aluna, a do professor acusado por assédio, a da filha, a do pai, a dos agressores, a dos que tomam a terra, a dos que aceitam como verdade o politicamente correto… enfim, a desonra completa da sociedade — e há o principal: a falta de vontade de comunicação. Quando terminei de ler o romance, a impressão que tive foi a de ter lido uma série de diálogos e pensamentos de personagens que não encontram ouvintes ou repercussões em outros. Não há nenhum empenho de compreensão, nem residual.
Talvez nós, brasileiros, estejamos acostumados a isto e não nos choquemos tanto com este tipo de histórias e mesmo em histórias de cunho menos social, a incompreensão já foi diversas vezes palmilhada: a incomunicabilidade de Antonioni, a de Pamuk, McEwan ou Rushdie, para dar exemplos próximo de mim, mas nunca a tinha visto toldada de tal desilusão e impotência. O livro é bom? Sim, é ótimo. Tem de ser lido? Sem dúvida! Mas lhe falta alguma coisa.
A sucessão de tragédias é tão rápida e espetacular, os acontecimentos se precipitam de forma tão contundente, o romance é tão curto, que a estrutura da história fica por demais aparente. A partir da metade do livro, ficamos aguardando o que mais de ruim Coetzee nos trará. Eu não peço uma redenção final, nem maior suavidade, apenas acho que a máquina de geração de desgraças de Coetzee funcionou com tamanha rapidez que deu ao romance um excesso de situações limite em curto espaço de tempo. Ora, isto não apenas lhe retira verossimilhança como lhe dá um aspecto esquemático. Como disse acima, sigo gostando e indicando Desonra, mas acho que Coetzee criou material e situações para algo ainda melhor.
Dos Coetzee que li, Desonra é o que menos me agrada. É o mais “certinho” em termos de “romance realista” dos que li. Gosto da prosa dele, não a considero “seca”, mas sim “límpida”. Há uma simplicidade não-simplória que fica bem evidente em Juventude. Gosto muito das preocupações ético-morais do JMC. Quando ele dá atenção excessiva para elas, o resultado é uma fusão de romance com ensaio, fusão que aprovo efusivamente (com o perdão do trocadilho).
Não li os outros. Então fiquei com a impressão certinha e realista. Alguma sugestão?
Recomendo intensamente o “Diário de um ano ruim”, meu favorito, com sua página dividida em três: a parte de cima são ensaios, a do meio é o diário do escritor dos ensaios, e a de baixo a de uma secretária filipina com belo par de nádegas. Em vez de escrever só um “livro de ensaios” o Coetzee acabou criando uma boa reflexão de “para que serve a discussão intelectual” e “qual o lugar do intelectual” quando coloca os ensaios da parte de cima a repercutirem na secretária.
Além disso, a página “tripartida” obriga o leitor a criar uma estratégia de leitura.
Puxa vida. E não é que aqui temos uma sugestão? Página tripartida como se fosse um filme de Godard? Sim, faz-se necessária uma estratégia de leitura, sem dúvida.
Seu texto (ótimo!),ecoa a opinião de Rushdie sobre esse romance, num ensaio em Cruze Esta Linha. Rushdie também salienta a excelência do romance, mas acusa a falta de algo capital, que talvez seja, no final das contas, uma moral, uma proposta de solução ou uma luz.
Realmente Desonra destroi qualquer ilusão, mas talvez, em detrimento de ser acusado de ter forçado uma outra compreensão do livro, essa limpidez tanto de estilo quanto em ajuntar uma soma exagerada de fatos em um menor número de páginas tenha um propósito consciente por parte de Coetzee.
Como um naturalista tardio, o autor não faz nada além de descrever personagens “danados”, Lurie, sua filha, a adolescente seduzida, o namorado dela disposto à violência. A cena em que Lurie se ajoelha perante os pais da adolescente mostra a tentativa de se purgar dos pecados, tendo lucidez sobre eles, mas logo em seguida Lurie cai no círculo de se saciar com uma prostituta; o que afinal é a culpa e o arrependimento?
Como em A Marca Humana, surgido na mesma época, Coetzee propõe que o saneamento da culpa não passa pela exortação dela em praça pública; dispensa, em sua atitude genuína, os holofotes da polêmica. Assim, tanto Lurie quanto o professor da história de Roth não se curvam à acusação oficial, ambos escolhem o absurdo e fatal recurso de não pedirem desculpa ao tribunal acadêmico_ o que resolveria o problema_, negando-se a submeterem ao desejo hipócrita do academicismo em verem-nos humilhados.
Esse romance trata, a meu ver, da culpa: a culpa pessoal, a culpa formal e a culpa histórica. Todas estas fracassam; todas estas estão além da capacidade da sociedade, do indivíduo e das instituições em pagarem pelos erros que levam na alma. Quando Lurie corta o teatro esperado de martírio pela banca julgadora da universidade, decretando-se culpado, os professores o expremem ao máximo, inconformados; com base em que Lurie os privava do prazer do massacre? Assim também Lurie falha em pedir desculpa aos pais da adolescente, motivado pelo asco de ter a filha estuprada.
Também a filha de Lurie falha em “perdoar” seus estupradores, aceitando o casamento arranjado, tendo uma falsa compreensão de estar pagando pelo sofrimento histórico que os negros tiveram: com esse gesto, ela não só promuga a violência sob novas vestes, como põe mais uma pá de cal em toda a loucura da incompreensão humana. Desonra é o meu preferido_ acho mesmo que poucas obras modernas possuem a força deste livro; mas temos Vida e Época de Michael K, Elizabeth Costello, Á Espera dos Bárbaros, que revelam um Coetzee mais diretamente humanista e compreensível.
Abraços (disposto a, agora, cumprir a promessa)
Charlles, leste um livro chamado “Michael Kohlhaas”, de von Kleist? o “primeiro Lurie” é Michael.
A tua interpretação sobre o “perdão” da filha de Lurie é o mesma minha. Aquilo é a senha para a continuidade da violência.
“Disgrace” é um dos melhore livros que já li, junto com outros do Coetzee. Em relação ao que diz o Charlles aí irriba, sobre o livro não trazer “uma moral, uma proposta de solução ou uma luz”, creio que a ideia é essa mesmo, de beco sem saída. Quem já leu os ensaios do Coetzee sabe que ele não tem uma ideia salvacionista da literatura. É pessimismo mesmo, puro e concentrado, e aí reside sua força.
Abs.
Pois é. Eu nada tenho contra os pessimistas, mas confesso que a sucessão ininterrupta de desgraças me fez pensar (desculpa, Daniel) num daqueles livros em que o autor larga este lugar comum: os acontecimentos se precipitam…
Desonra é um baita livro. Nele tudo se curva à força inexorável do grande vazio da vida, a um estado de submissão dilacerante, de desistência: é se conformar e viver o resto da vida. Como bem relata Cristóvão Tezza, Coetzee explora ao máximo aquela faixa estreita que restou à linguagem do romance como o espaço por excelência da relação entre ética e estética na interpretação ficcional do mundo, um espaço que talvez não possa ser preenchido com a mesma força por nenhuma outra linguagem.
Coetzee é um pessimista visceral; sua investigação sobre a
miséria, a dor e a solidão humanas resvala nos limites da dignidade humana. Com uma prosa seca, límpida, direta e cortante, sem
espaço para arcaísmos, Desonra é uma obra de arte que justifica o Nobel de Literatura ganho por Coetzee, conquanto isso tenha valido muito pouco nos últimos anos.
Caro Milton, muito interessante seu blog. tão interessante que não resisti a dar minha modesta interpretação de “Desonra”. Lá vai: não vejo a aceitação, por Lucy, do filho fruto do estupro e da proteção de Petrus como um sinal de que a violência continuaria. Para mim, é uma alegoria da situação da África do Sul pós-apartheid: a futura sociedade (o filho) nasceria sob a tutela do poder político negro (simbolizado por Petrus). Não seria um parto fácil e nem isento de conflitos, mas se daria sob uma autoridade considerada legítima. O livro aborda, assim, o choque de civilizações que acontece na África do Sul e sua possível solução à luz do equilíbrio de forças existente no país.
Então, acho que há, sim, uma proposta de solução, uma luz no fim do túnel.
Quanto a David, acho que há um amadurecimento do personagem e um aprendizado moral: a aceitação dessa realidade futura e do seu envelhecimento. Ele não consegue pedir perdão de forma convincente à família da garota, mas descobre que sua paixão pela aluna tem a ver com a fixação de ser contrário á passagem do tempo, ao seu envelhecimento e á renovação do mundo. Acho que o sacrifício do cachorro no final do livro significa justamente o sacrifício de sua antiga personalidade, condição para a adaptação á nova realidade.
É uma alegoria muito bonita do destino do seu país. Realmente, merecedora de um prêmio Nobel.
Um abraço,
Adriano
não li este livro , não gosto de autores da moda ou afins mas ganhei o livro caçador de pipas , fiquei impressionado o livro é plagio, um grande esqueleto de, o cio da terra de coetzee, um grande esqueleto de sua obra com uma fina pele por cima.labios leporinos é demais … a epopéia de um , a viagem , não sei como não existe até agora alguem que não tenha falado algo…