2666, de Roberto Bolaño (3ª Parte – La parte de Fate)

Na terceira parte de 2666, abandonamos o professor Oscar Amalfitano em sua descida aos infernos da psicose para seguirmos o repórter novaiorquino Oscar Fate. Fate trabalha numa revista voltada para a população negra do Harlem. Sua mãe acaba de falecer e Oscar deve providenciar seu enterro em Detroit, depois ele vai entrevistar um ex-Pantera Negra e, quando pensa em retornar, recebe a missão de ir à Santa Teresa, uma cidade mexicana fictícia na fronteira com os Estados Unidos, a fim de fazer a cobertura de uma luta de boxe, esporte sobre o qual pouco sabe. Lá, fica curioso a respeito de outro assunto: as centenas de mulheres que ão assassinadas e que no mais das vezes aparecem mortas no deserto.

As cenas de Detroit são efetivamente esplêndidas, tanto com o ex-Pantera Negra como com um comunista americano que ainda mantém sua célula ativa. A parte mexicana do capítulo funciona mais como um portal para apresentação da cidade de Santa Teresa, seus crimes e misoginia. Enviado para cobrir uma luta de boxe, Bolaño nos enreda com a cultura local. Há drogas, submundo, alguma bizarria e há o machismo, o machismo, o machismo. Enfim, é o mundo do boxe. Nesta parte, a prosa começa a pender para o noir, com uma galeria de personagens que parecem ser culpadas de algo – mas como saberemos? – , à exceção de Rosa Amalfitano, filha do Oscar da segunda parte, e de Guadalupe Roncal, a amedrontada repórter que foi escalada para investigar e escrever sobre as mortes das mulheres.

É muito estranho como uma certa irrealidade tomou conta de mim durante a leitura. O que fará Fate? Qual é o motivo de seu sobrenome? O que ele faz lá? Por que ele não se decide a nada e deixa ser levado até que as circunstâncias o engulam ou não? Então, acontece que nós é que nos tornamos os detetives de verdade, tentando captar no mar de detalhes que nos é oferecido o atordoamento de Fate e seu, bem, destino. Bobagem sublinhar que nunca há uma resposta clara, pois no jogo de Bolaño, só não nos decepcionamos com o texto. O resto mais parece um quebra-cabeças de milhões de peças no qual uma peça não tem nada a ver com a outra.

Sigo a leitura ainda mais entusiasmado.

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  1. Solta spoiler não, senão mando te capar.

    Acabei de ler o “Amuleto”, não é lá essas coisas. Estou com os contos de “Putas asesinas”, acho que prometem mais. “2666” ainda comprarei. Esses compactos da Anagrama são demais, hem? Adoro.

  2. Tenho o exemplar em espanhol de 2666, mas não me animei a ler. Prazer na leitura é ler em minha própria língua. No site da cia das letras vejo a previsão de lançamento para maio agora, e um outro romance de B.: Monsenhor Pain (se não me engano). As entrevistas do cara são reveladoras; mesmo no fim, conservava as velhas antipatias, os velhos cismas, a velha soberba de veladamente se julgar o melhor. Ressuscitando a teoria da localização orgânica da alma (e os apêndices sensoriais que ela carrega), isso tudo deve ter produzido um certo vapor de um azul boreal antes de desaparecer para sempre quando as máquinas hospitalares decretaram a falência derradeira. Todo escritor admoesta meio mundo quando vivo, e depois diz que quer voltar assim como um colibri minúsculo ou um urubu, para passar despercebido. Bolaño inovou em uma outra opção transmigratória: queria voltar como a mesa de um escritor suíço. Para mim, das milhares de frases produzidas nos zilhões de páginas, essa foi sua frase mais poética.

  3. Engraçado. Havia lido esse post quando desconhecia 2666; agora que o estou lendo, compartilho com tudo que dissestes. A impressão de irrealidade, a deliberada atmosfera noir, da Parte de Fate . 2666 me fez largar, por um tempo, os outros tantos livros que estava lendo, para me ocupar exclusivamente dele.

    Algo que percebi, foi uma semelhança de temática com os irmãos Coen, na forma como os personagens principais fogem ou não cedem à violência. A Norton da primeira parte, que deixa os dois amantes apaixonados para viver com o parceiro aleijado. O professor Oscar Amalfitano, que se embrenha num simulacro de loucura (se bem que possa parecer loucura, o que achei ser apenas uma criação particular de refúgio muito criativo), aceitando uma versão paralela de um idealizado povo araucano, em que se pode comunicar-se telepaticamente ou através de símbolos geométricos (única parte em toda obra de Bolaño que justifica a comparação dele com Pynchon: o americano é cheio de personagens “loucos” que decidem por uma vida alternativa). Fate, que, além de se eximir das projeções do inferno (pois, deve ter percebido: o livro se passa no inferno), resgata Rosa Amalfitano consigo. E há um personagem na Parte dos Crimes que acentua essa minha teoria: um repórter americano deixado pela esposa, leitor voraz de filosofia, que aparece brevíssimamente em Santa Teresa (mas por favor que lhe fazem os colegas de trabalho para derivá-lo da tristeza), e parte da cidade sem deixar rastros.

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