Dr. Milton + Heine sobre o Quixote + Heine

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Escrito e não publicado em 17 de feveireiro de 2010. O resto é de hoje.

Datas são datas e é inevitável que as repitamos a cada 365 dias. Basta viver um ano e lá estou eu até o pescoço com um novo 17 de fevereiro, aniversário de meu pai, que hoje faria 83 anos. O Dr. Milton Cardoso Ribeiro morreu em 1993 e, desde 1994, o dia 17 é um mau dia. Ir ao cemitério? Não faz diferença ir ou não, já é ruim o bastante saber que não vou vê-lo e que não haverá festa hoje. O fato é que me faz mal ir ao cemitério. O que há atrás do mármore — ossos escuros dentro de uma pequena caixa de madeira, pois, pelas regras da instituição, o caixão é retirado após determinado prazo para haver espaço para as novas mortes da família — tem muito pouco a ver com minhas lembranças. Trata-se apenas de um mármore com seu nome e foto colados. Se lembro de meu pai com voz, tato e música, então para que manter contato com uma representação fria e insuficiente dele, uma redução com flores na frente? Não vou lá, mesmo que digam que herdei seu humor, ironia e amor a muitas coisas. Devo ter herdado também alguma coisa de sua iconoclastia…

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Uma tradução alemã do Quixote, editada em 1837, vinha acompanhada de um prefácio escrito por Heine. Encontrei parte do mesmo dentro de um pequeno ensaio de Otto Maria Carpeaux. Anotei uma interessante observação do poeta alemão:

A obra de Cervantes é o primeiro verdadeiro romance da literatura universal, o mais antigo romance que continua lido até hoje. É uma obra em prosa, e esse fato é da maior importância. Antes da data fatídica de 1605, todos os grandes poetas escreveram suas obras em versos; ora, o mais prestigioso gênero literário em versos, sempre fora considerada a epopéia. Cervantes, porém, é o primeiro grande escritor da literatura universal que preferiu a epopéia em prosa: o romance. Desses fatos tirou Heine a conclusão de que o verdadeiro tema do Dom Quixote é a derrota da poesia pela prosa. Dom Quixote é o último ou um último representante da poesia de tempos idos. Mas é derrotado pela implacável prosa da realidade. A poesia, com todas as suas imaginações fantásticas, é derrubada assim como Dom Quixote, O cavaleiro da Triste Figura, caiu do seu cavalo Roncinante, caricatura do cavalo alado Pégaso. O caso nos faz rir, mas não sem deixar, atrás de si, uma melancolia nostálgica. E essa harmonia do ridículo e do melancólico é o humor cervantino.

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E agora, para finalizar, a prova de que, além de super-humorista, super-poeta, super-dramaturgo e super-novelista Heinrich Heine era um amor de pessoa:

Eu tenho uma mentalidade pacífica. Meus desejos são: uma cabana modesta, telhado de palha, uma boa cama, boa comida, leite e manteiga; em frente à janela, flores; em frente à porta, algumas belas árvores. E, se o bom Deus quiser me fazer completamente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos nelas pendurados. De coração comovido eu haverei, antes de suas mortes, de perdoar todas as iniquidades que em vida me infligiram – sim, temos de perdoar nossos inimigos, jamais antes, porém, de eles serem enforcados.

(Tradução de Marcelo Backes.)

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6 comments / Add your comment below

  1. Algumas coincidências de ontem e hoje tão me deixando embasbacado!

    Conheces um disco dos anos 70, com o suíço René Bardet falando Heine como parte de uma realização musical, a única combinação não-brega de poesia & música que já conheci, e não apenas não brega mas (pra mim) genial?

    Tinha num cassette ganho em 1990, hoje inaudível. ONTEM, 3 de maio, bateu um vento peremptório: eu teeeenho que encontrar aquele Heine!! E encontrei… Em http://rapidshare.com/files/134305932/Poesie_und_Musik_-_Heinrich_Heine.zip , se lhe interessar.

    Aí vim aqui porque finalmente me rendi ao Twitter – precisamente deposi dos seus comentários de ontem. Vim só me inscrever para seguir. E aí quem encontro?

    O Heine, que pelo que entendi tava esperando desde fevereiro e resolveu baixar justo hoje!

  2. Um dia te cutuquei para produzires mais, e eis que acesso o blog hoje e vejo uns cinco post que não li, e que agora a falta de tempo é minha. (A dupla paternidade me suga.)

    Tenho uma imaginação hiperatrofiada, o tipo de benefício dúbio que me interte em longas filas de banco ou na sombra de um dia morto. Grande parte dela, creio eu, veio dos poucos momentos que tive com meu pai, nos encontros cheio de culpa que minha mãe divorciada nos cedia com o preço de atulhar a atmosfera de presságios e proibições. Um certo dia, meu pai me sequestrou. Entrei no seu chevete novo, naquele ano mais inocente em que a gagueira provocada pela separação dos dois ainda me afigurava o pior dos infernos, e passamos um mês inteiro confinados numa fazenda que ainda hoje estou por descobrir de quem era. Passadas as horas de puro terror em que vi confirmadas as suspeitas de minha mãe de que aquele homem era capaz de tudo para separar-me dela, esse mês foi o melhor da minha vida. Todo mundo estava lá, como num crime premeditado, minhas tias, meus tios. Quando li vinhas da ira, refiz aquele calor familiar, aquele humor despojado e espiritual que tive por trinta dias. Mas findo aquele período, meu avõ materno apareceu, conciliador, conversou com ele quinze minutos, e meu pai foi até mim, sorrindo: “Naninho, chegou a hora de ir embora”

    Meu pai contava mentiras grandiosas para mim. Carregava-me no bolso da camisa, quando eu era bebê. Em certas épocas eu voava por sobre os postes de luz e me sentava nos fios elétricos, deixando todos desesperados a me procurarem, até que ele percebia termos passado dos limites e me sinalizava com a cara compungida para que eu descesse.

    Em 1990 eu abandonei a faculdade, meio que fugi de casa e fui até o meio da Amazônia atrás dele, a metade do caminho de carona. Haviam dito que ele sofrera um acidente, uma tora de madeira teria caído em cima dele. A forte impressão de sua imunidade me confortava em não acreditar naquilo, o que confirmei ao vê-lo aparecer de barba, com um semblante de Aureliano Buendia, pela soleira da porta de sua nova casa, com sua nova família, num povoado esquecido chamado São Miguel. Sua nova esposa tinha minha idade, os olhos verdes, e a lucidez da bondade que só um espírito muito antigo podia ter. Estava feliz, com saúde. Andando pela floresta, ele fez um movimento de abranger a mata com o braço e disse: “Deus também esta aqui!”

    Há dois anos ele foi devastado por um câncer. Vê-lo, então, foi terrivelmente doloroso. Herdei dele, também, o amor exacerbado pelos animais, principalmente cães. Um semana depois de que foi enterrado, meu cão latia de madrugada. Um cãozinho miúdo, magro até os ossos, como sabendo que em minha casa poderia ter sua última guarida, estava deitado de frente ao portão. Até então eu não tinha cedido à crueza absoluta daqueles dias; peguei o animalzinho com um pano, trouxe para os fundos de casa, coloquei-o no quarto de despensa e passei a noite lá, corroído por uma piedade ilógica, junto dele.

    O filtro contra a realidade da existência havia falhado, como ás vezes acontece. E a visão de um túmulo em nada corrobora para que o filtro volte a funcionar.

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