José e Pilar e os outros

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Foi um belo fim-de-semana. Começou lá na sexta-feira com o jantar com a dupla Nikelen Witter e Luís Augusto Farinatti e terminou com o esplêndido documentário José e Pilar. Os dois casais foram entremeados por um filme notável: Código Desconhecido, de Michael Haneke, que, se não é o maior diretor de cinema vivo, merece figurar em qualquer lista que utilize a contundência como critério. Este Código e A Fita Branca são filmes de qualidade indiscutível, penso.

Mas voltemos à sexta-feira. Eu estava exausto de um dia de ar condicionado estragado no Sul21, porém a conversa inteligente, o vinho e a gentileza novamente viraram o jogo a favor de todos. Foi tudo muito agradável e civilizado. Minha filha Bárbara fez o resumo da noite dizendo que achava muito bom ouvir pessoas cultas conversarem. OK, só que acho que a sedução que exercemos sobre ela (já me incluí no “exercemos”, né?) é a de que falamos sobre política e temos posições que já são as dela. De certa forma, nós — apesar de não sermos nada grandiosos — mais ou menos justificamos aquilo uma forma de pensar o mundo. Fico me sentindo culpado por não ter feito referência nenhuma à visita do Ramiro Conceição lá no início do ano, mas aquela era uma fase triste de minha história recente…

José e Pilar não é um filme que fale muito da obra de Saramago, fala mais da repercussão dela, da rotina de um Nobel famoso e de seu relacionamento com a mulher amada, Pilar del Río. Olha, é um documentário estupendo como cinema. Resultado de quatro anos de filmagens — entre 2006 e 2009 — tem como pano de fundo a criação da romance A Viagem do Elefante e a doença do escritor. Saramago, absolutamente inteligente e erudito em suas palestras e livros, mostra uma face mais relaxada e íntima no excelente filme de Miguel Gonçalves Mendes. O filme me foi 100% satisfatório, mas tenho a impressão de que o diretor considerou que o público tivesse conhecimento prévio da vida do autor. Fica inexplicada a forma peculiar que tomaram com Saramago as eternas restrições portuguesas e brasileiras àqueles que se distinguem, fica inexplicado o justificado ódio com que Pilar del Río trata um jornalista português — merecia muito mais — , assim como a natureza de certo silêncio que o “Portugal oficial” tratou de cercar Saramago.

A mim isto não fez falta nenhuma, mas talvez um observador inexperiente ou marciano não entenda bem o gênero da estupidez envolvida. O fato é que “minhas mulheres” resumem muito bem tudo. Na saída do cinema, a Claudia, encantada com o filme, disse: “Como é bom a gente ouvir alguém brilhante que pensa parecido com a gente!”.

Finalizando: por falar em estupidez, o cinema nacional agora trata de investir na religião. Os trailers pré-José e Pilar foram todos dedicados a espécimes do novo cinema religioso nacional. Comparados aos argentinos, estamos cada vez mais fodidos — saímos da chanchada para a religião. Nada mais próximo. O contraste dos trailers com os 125 minutos seguintes de Saramago foi absolutamente desconcertante. Para sofrer este choque estético, vá ao Arteplex 2 de Porto Alegre antes que mudem.

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21 comments / Add your comment below

  1. Cara, é bom logo na segunda feira me deparar com um texto como esse. Nota-se que a influência das companhias e do bom cinema ainda estão em você. Sempre o mistério quanto às fases ruins de sua vida, mas cada um sabe até que grau pode chegar na exposição da intimidade. Do Saramago ainda teremos muitas alegrias e inspiração.

  2. Muito boa a crônica. “…por falar em estupidez, o cinema nacional agora trata de investir na religião. Os trailers pré-José e Pilar foram todos dedicados a espécimes do novo cinema religioso nacional. Comparados aos argentinos, estamos cada vez mais fodidos — saímos da chanchada para a religião”. Ontem à tarde (domingo) fui ao cinema e vi o novo filme de George Clooney (“Um homem misterioso”), obra cheia de hiatos e silêncios sacais. A única coisa boa que vi foram as paisagens italianas e a atriz que faz o papel de prostituta (Violante Placido), boa para sair no “Só porque hoje é sábado”. http://www.wallpaperweb.org/wallpaper/babes/violante-placido_1920x1200_31155.htm. Milton, a mulher é um escândalo de linda. Mas deixemos o filme, que está mais para uma película setentista à la Antonioni, do que o cinema que é feito hoje. Não entenda que estou criticando os filmes de Michelangelo. Meu Deus, preciso comer muita fava! Como não sou muito versado em cinema, deixo para você que entende do tema muito melhor que eu.

    Mas, antes do filme do Clonney, vi um trailer do filme sobre a Aparecida. O Brasil é um país de religiosos. Nossa moral é religiosa. Nossa ética é religioso. Nossos julgamentos políticos são religiosos. Deve ser por isso que estamos metidos num atoleiro. Como você disse, saímos da chanchada para a religião; antes, reitero, passamos pela violência que nos acomete cotidianamente e agora caímos na religião. Estamos numa temporada medieval. Observe que os filmes têm temáticas católicas. Vi o trailer e ri incrédulo. Atores cacetes (globais), a encenarem temas cacetes.

    Abraços e parabéns pelo texto com saudosismo de fim de festa agradável.

    1. Carlinus, saindo to contexto do post do Milton (desculpa, tchê!), eu ainda não conhecia o seu blog “O Ser Carlino”, e eu estou muitíssimo impressionado com os seus textos! Vou ver se arranjo um tempo livre para poder ler o que você escreve com mais calma. Um grande abraço!

      1. Ô, Gilberto, não é modéstia fingida de minha parte, mas os textos de lá são garutujas insossas. Não são muita coisa. Como dizia Graciliano Ramos: “são meia dúzia de farrapos de ideias mal cozidas”.

        Escrever é um exercício de constante aperfeiçoamento. Por isso, ainda estou muito longe de ser aquilo que pretendo ser.

        Grande abraço!

        P.S. Você está em Praga, República Tcheca? Que privilégio, rapaz! O país é lindo!

        1. Carlinus, eu te respondi por email (no endereço carlinus.13) para não ficar enchendo o saco do Milton com o nosso bate-papo. Grande abraço!

  3. Haneke fez um adaptação cinematográfica d’O Castelo de Kafka. Me pareceu uma boa transposição (na medida do que é possível) da obra para a tela, inclusive em seu final inconcluso.

    Ainda está na minha programação ver José e Pilar , em Santa Tereza. A princípio não me interessam documentários sobre a vida de escritores; no máximo ficções “biográficas”, ou seja, aqueles apanhados de pontas de iceberg das vidas misturadas à fantasiosa visão do autor conforme as impressões que dele pode ter o cineasta a partir de seus livros, não de sua vida.

    95% do cinema mundial é lixo comercial. Enxovalhar o cinema brasileiro por isso é um tanto de má vontade. Harry Potter acaba de estrear em centanas de salas no Brasil; coisa que não é cinema, mas videogame. Câmeras voadoras, explosões, voos frenéticos, trilha sonora tonitruante, personagens que não existem em meio a uma trama basbaque. Isso é o cinema mainstream. Um filme modesto, de truncada abordagem machadiana, brasileiro, denominado Reflexões de um Liquidificador, estreou em um sala de 30 lugares aqui no Rio. Sim, o filme não é bom. Diria que é nota 5,5. Mas é singular em um panorama dominado pelo cinema comercial (a abordagem é divertida, as questões que levanta, curiosas), inclusive o brasileiro, que, geralmente, é de matriz global (Globo Filmes, atores de novelas, jeitão de “caso especial”, etc.). Vejo sempre filmes nacionais de linhagem diversificada, e a maioria merece no mínimo 7. Os da Globo Filmes equivalem às baboseiras hollywoodianas; mesmo assim, eventualmente, são melhores que os “originais”.

    Quanto aos filmes religiosos… Jesus de Nazaré, do Zeffirelli, era bom? Ou aquele filme sangue e tripas do Mel Gibson sobre o mesmo personagem, também? O único povo “religioso” é o brasileiro? É o único que compra livros e vê filmes de cunho religioso? Evidentemente o filme sobre Aparecida do Norte é uma estupidez mistificadora. Não é exclusividade brasileira usar religião para fazer dinheiro. Com toda sinceridade, acho que há um tanto de espírito de vira-lata nisso aí.

  4. Na parte em que me referes, digo o mesmo. Adoramos a noite.
    Porém, esqueceste de comentar outro ponto alto da noite: o ótimo jantar proporcionado pela Cláudia!

    Abraços a todos.

  5. Milton: é mesmo difícil considerar o Haneke o melhor diretor vivo, já que Coppola, De Palma, Monicelli e Herzog, entre outros, ainda não se foram. Mas é fácil dizer que Haneke é o diretor dos melhores filmes da atualidade. Vivo escrevendo sobre ele no meu blog (por exemplo, aqui: http://www.reporterdiario.com.br/blogs/ocorvo/?p=416). E eu diria que Código Desconhecido é simplesmente o mais completo registro sobre esta década: McLuhan estava certo ao prever que existiria uma Aldeia Global, mas estava redondamente enganado em seus resultados.

    Abraço

  6. Léo, tu te refere a um filme, Heróica, não achei nada assim no imdb, deste século. qual seria?

    O Corte, do Costa-Gravas, é um dos bons da década, não?

  7. “Fico me sentindo culpado por não ter feito referência nenhuma à visita do Ramiro Conceição lá no início do ano, mas aquela era uma fase triste de minha história recente…”

    Deixe estar, Milton. Percebi que estavas com problemas… A vida é assim mesmo…

    Tivemos uma bela noite com as nossas cervejas… E fui testemunha de um fato digno de nota: enquanto conversávamos no boteco – lembra, Milton, que uma fã de seu blog veio cumprimentá-lo na mesa, porque o reconhecerá de passagem, no interior de seu automóvel, e fez questão de chegar à nossa mesa e dizer que era sua leitora assídua? (Pois bem, indiretamente também fui cumprimentado, pois sou comentarista antigo dessa casa…).

    Tu foste extremamente delicado comigo… Guardo no coração uma frase tua: “Porto Alegre dá as costas para mar”. Belo verso, querido Milton!
    Também me deste uma bela sugestão de passeio com o meu filhinho: o Parque da Redenção (não sei se essa é a nomenclatura correta, mas não importa: vivi uma manhã ensolarada, inesquecível, junto à Ângela e junto ao meu Isaac, que começara a caminhar por aqueles dias. Nunca mais esquecerei…

    Obrigado, Amigo meu.

    1. HUMANA PROFECIA
      by Ramiro Conceição

      Em tempos terríveis,
      quando a herança é o medo,
      é bom acender uma fogueira
      para que todos se aqueçam;
      assim , talvez,
      poucos bêbados alumiem-se
      com palavras de entusiasmo – e êxtase!

      Porque a Vida pr’alguma coisa celestina
      se destina.

      Viemos d’estrelas, para lá retornaremos.
      Eis a humana profecia: do pó – à Poesia!

  8. Arbo: Heroica, na verdade, é o chamado telefilme, feito pela BBC. É somente a história do primeiro ensaio da Terceira de Beethoven, que ele dedicara a Napoleão e depois se arrependera. É também um lindo filme. Chamo-o de Heroica para valorizar o vernáculo: o seu nome original é o apelido original da sinfonia, “Eroica”. O IMDB registra-o em http://www.imdb.com/title/tt0369400/. O filme é de 2003. Ian Hart, de Terra e Liberdade, faz o papel de Beethoven. O shakespeareano Frank Finlay, que tem uma longa folha de serviços para o cinema e principalmente para o teatro ingleses, é Josef Haydn. É impossível encontrar o filme para alugar no Brasil: que eu saiba, ele só passou na Mostra Internacional de Cinema da TV Cultura. Mas dá para baixar ele com certa facilidade; viva a internet! Abração

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