À medida que nossa história avança, chegam-me notícias cada vez mais surpreendentes de Portugal. Em meu post anterior, dizia-lhes que António Barbeiro nunca existira. Não é verdade. Rogério Simões transcreveu nos comentários de meu post anterior um texto de seu pai, hoje com de 82 anos: trata-se de uma nota biográfica de um certo amigo seu chamado João Barbeiro. Este é, sem tirar nem pôr, António Barbeiro. Isto fez com que este humilde escriba pensasse nas vantagens e desvantagens de dividir esta história em capítulos. O lado positivo é a participação dos leitores corrigindo fatos e sugerindo episódios para a trama; o lado negativo é que, quando me apontam os erros, estes já foram publicados e lidos por meus 7 fiéis leitores. Antes de voltar à história, faço uma referência ao que escreveu Ery Roberto: concordo que o episódio com o vô João Cunha parece coisa saída de Dias Gomes – parece mesmo! -, só que este João Cunha é meu avô materno (meu nome completo é Milton Luiz Cunha Ribeiro) e o fato realmente aconteceu entre 1966 e 1969, ano de sua morte.
(continuação do post anterior)
O Dr. João Cunha não era dado a grandes expansões, era da espécie dos homens de poucas palavras, daqueles que preferem demonstrar sua amizade e solidariedade mais por atos concretos do que verbalmente. Não era tosco ou indiferente, era apenas silencioso. Tinha noção de que a presença de António em Cruz Alta era mais do que estranha, mas não comentaria com ninguém suas suspeitas, nem procuraria confirmá-las com o português. E suas suspeitas não eram graves: na sua opinião, António Barbeiro fugira de Portugal por motivos políticos e, naquela época, podia-se ser preso por pertencer ao proscrito Partido Comunista, por falar mal de algum potentado da cidade ou até por salpicar tchekoviana e involuntariamente um general com um espirro. Havia que obedecer e ponto final. E João Cunha intuía que António não era homem de simplesmente obedecer.
O episódio com o vô João Cunha havia aberto a porta da política nas relações entre os dois amigos. Passaram a conversar sobre os problemas de Brasil e Portugal e, pouco a pouco, António foi contando sobre sua ativa participação na vida de Pampilhosa da Serra. Era o responsável pelo Posto dos Correios da aldeia, era um dos poucos homens sabia ler na cidade, possuía livros de medicina onde estavam escritas as composições dos medicamentos que receitava (!) e tornara-se o principal “médico” de Pampilhosa e das povoações das redondezas. Depois contou que participara da Comissão de Melhoramentos, que conseguira implementar o Lavadouro Público, assim como a abertura da mina na fonte velha. Administrara a canalização para a fonte nova e aí já estávamos no âmbito da burocracia, dos escritórios, das solicitações e da política, no âmbito da necessária adulação e dos pagamentos aos homens responsáveis pelos recursos e para isto não servia António Barbeiro.
Então, uma noite, recebeu uma visita de um colega dos correios. Este lhe anunciou atropeladamente que alguns homens em Lisboa haviam feito perguntas sobre o tal Barbeiro que pontificava na aldeia e que, segundo eles, era um enviado de Moscou que desejava “libertar o povo” e implantar o voto feminino. António, que também não era tosco, sabia que havia chegado o momento de partir.
João ouviu muito pouco surpreso o relato; é certo que não conhecia as circunstâncias, mas já imaginava seu cerne. O que não esperava era o pedido de António:
— João, necessito de teu auxílio, preciso de uma nova identidade para voltar à Portugal.
Ora, o corretíssimo João Cunha jamais imaginara fazer algum ato ilícito em sua vida e era uma espécie de campeão do anticomunismo na cidade, então as obrigações da amizade com António faria-lhe passar várias noites em claro. Sua honestidade era indiscutível, era uma espécie de reserva moral de sua família e da cidade. Esta característica não costumava gerar-lhe vantagens, antes gerava convites para que participasse do Conselho de clubes de futebol ou sociais de Cruz Alta, tarefas que sempre recusava educadamente. Ao mesmo tempo, seu caráter estava sendo desafiado pela imperiosa necessidade de ajudar um amigo, o melhor deles, aquele com quem conversava até altas horas da noite, seu parceiro no rádio-amador e o amigo da família preferido de suas crianças, especialmente da mais nova, Lilinha.
Um dia, João Cunha foi a Porto Alegre com a filha Iara que prestaria exame vestibular na Universidade Federal. Como do seu feitio, não disse nada a António, mas em Porto Alegre tinha planos de conversar com um político cruzaltense situacionista sobre um passaporte e uma carteira de identidade autênticos — isto é, emitidos pela Secretaria de Segurança Pública — e perfeitamente falsos.
(continua)
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