O Milton de 2005 reúne-se aos de 2001 e 2003 (IV)

O Milton de 2005 junta-se a seu duplo e triplo mais jovens. Ficam conversando na calçada.

2003: (Hesitante) Vieste nos ver… Vamos saber tudo?
2005: Tudo? Não, não tudo. Tenho só dois anos a mais que tu… Se a vida de um brasileiro médio dura 70 anos, só vivi uns 3% a mais que tu e 6% mais do que o 2001. Vivi 69% do total. Restam 31% que não conheço. Mas sei o que te espera nos próximos dois anos. Não te preocupa, foram bons anos.
2001: Não trouxeste nenhum resultado da Megasena para nós?
2005: (Dá um tapa na cabeça.) Como sou burro! Mas, pensando melhor, se tu ganhasses a Megasena antes de chegar a quem sou hoje… que efeito teria isto sobre mim?
2003: Talvez estivesses com uma aparência menos cansada.
2001: É.
2005: (Rindo) É surpreendente a deselegância a que nossos duplos podem chegar. Estão me achando velho, acabado?
2003: Velho, não; sem dúvida cansado, usadinho.
2005: Podemos entrar ali no shopping depois? Quero ver minha cara num espelho. Estamos trabalhando muito, com planos de construir uma casa. E, quando chegamos em casa, há a Claudia, que é ótima, mas tem uma energia inesgotável. (Os duplos primeiro fazem cara de pasmo, depois sorriem.)
2001: Ela está acabando contigo? Que azar…
2003: Nos sugando a energia?
(Risadas)
2005: Não, não é por aí… É que chego em casa e quero ler, ouvir música como sempre fiz. Mas ela quer fazer planos, têm dúzias de idéias, enquanto que eu não tenho nenhuma… São horas de trabalho que continuam em casa!
2003: O bom da festa é quando chegamos em casa e tiramos os sapatos.
2001: Bêbados, de preferência.
2005: Como se bebêssemos muito… A casa será num terreno do pai da Claudia. O plano é construirmos um pequeno edifício com o irmão dela.
2001: Conte mais!
2005: O Grêmio caiu para a segunda divisão no ano passado.
(Todos riem, felizes)
2003: Que belo futuro nos espera! Mais, mais novidades!
2005: Vamos para a Libertadores no ano que vem. Quase ganhamos o Campeonato deste ano, mas o Corinthians o comprou antes. Ah, e publicamos 1/12 de livro: uma antologiazinha com outros.
2001: 1/12 de livro… Isto torna alguém publicado?
2003: Não.
2005: Claro que não. Mas também não temos a menor vontade de procurar editora. Contam cada história a respeito. Só o fato de ser estigmatizado como “estreante velho” já nos dará engulhos. Mas temos duas novelinhas e um livro de contos dentro do micro.
2001: Faça back-up, viu?
2003: É coisa boa?
2005: Não estou seguro. É bem escrito, mas talvez seja excessivamente cronístico.
2001: Como somos exigentes.
2003: Para que publicar qualquer merda? Já basta o que há.
2003: E nossa mãe?
2005: Alzheimer.
(Silêncio por algum tempo.)


René Magritte – O Duplo Secreto (1927)

2003: E os outros da família? E os amigos?
2005: Os outros estão inteiros.
2003: Mais alguma surpresa?
2005: A Bárbara quer morar conosco.
2003: Poxa, que legal! Que bom. Mas… há problemas entre ela e a mãe?
2005: Ela fala pouco a respeito; evita o leva-e-traz de informações.
2001: Boa menina.
2003: E como ficará isto?
2005: Não tenho a menor idéia, falei sobre as desvantagens que eu tenho a oferecer: casa pequena — atualmente — , expliquei que não vou ficar o tempo todo em casa, que ela ficará sem pátio, que passará as tardes sozinha, mas ela não quer saber, quer vir.
2003: É que há vantagens.
2005: O que tu sabes a respeito disso?
2003: Ora, eu conheço o funcionamento da família da Claudia, principalmente das figuras femininas. Há mulheres de personalidade, inteligentes. Vaidosas, também. São modelos muito sedutores para uma pré-adolescente. Há a Bianca, a Lia, a Claudia, claro, e até a “vódrasta”. Sabe como é.
2001: Discordo. Uma criança de 11 anos como ela em 2005 só quer carinho e atenção. É isso o que damos e daremos a ela e é isso o que ela quer e precisa. Não acredito nesta coisa de “modelos femininos”. Depois, quando ela for maior, talvez a grana que está do outro lado a atraia. Hoje, ela está se lixando.
2003: Que é isso? Por que este ataque a minha filha, digo, nossa filha. Que coisa absurda.
2005: Ele não está nada bem, 2001. Além disso, sabe que a grana em parte ficará lá porque ele botou nossa assinatura boba num monte de papéis que nos apresentaram.
2001: …
2005: Isso tem que mudar, né?
2003: Escute 2005, vamos negociar, da próxima vez que vieres, não dá para trazer uns números da Megasena?
2005: Porra, tu fazes as cagadas, mas só pensa em dinheiro. Até entendo tua loucura por dinheiro depois de sair de uma sessão com a Adriana Vergerus! (*)
(Risadas)
2003: Como vai ela? – pergunta ele rindo a 2001.
2005: (Ainda rindo) Com a diferença de que esta Vergerus não está num filme de Bergman, está na tua frente, te torturando.
2001: Psicológica e financeiramente.
2005: Tirando todo e qualquer advogado do caminho para fazer os acordos.
2003: Mas acaba logo, 2001, haverá muito sofrimento mas acaba. E bem, agora preciso trabalhar para sustentar o 2005 aí.
2001: Digam-me uma coisa: eu poderia ir para o futuro visitar algum de vocês ou só vocês podem vir para 2001?
2003: Só imagino o quanto ficarias confuso, mas acho que não há nada que te impeça. Adoraria te apresentar a Claudia. Vais gostar dela.
2001: Espero que sim.
(Sorrisos)
2005: Talvez fosse melhor não vires, ficarias ansioso por nossas mancadas, que são inevitáveis.
2001: (Alegre) Vou pensar a respeito. E tu, 2005, cuida bem de nós.
2005: Pode deixar.
2003: Quando vamos nos rever?
2005: Qualquer hora destas.

(*) Adriana Vergerus é um nome fictício. Os personagens perversos, assim como os que atraem ou prognosticam o mal nos filmes de Ingmar Bergman têm muitas vezes este sobrenome. Ao longo da obra do maior de todos os cineastas, há mais muitos Vergerus, todos monstruosos, quase todos médicos ou clérigos.

Maiores detalhes sobre os Vergerus e também sobre os Vogler neste post.

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