Depois da Cirurgia

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Publicado em 24 de julho de 2007

E quando, ademais, abro o pacote diante de testemunhas, como agora, ao desempacotar estas frases cruas, brutais, muitas vezes sentimentais e banais também, escritas, porém, com mais despreocupação do que quaisquer outras, não sinto nem mesmo a menor vergonha. Se sentisse a mínima vergonha, não conseguiria escrever coisa alguma, apenas o desavergonhado é capaz de escrever, apenas o desavergonhado está capacitado a apanhar as frases, desempacotá-las e simplesmente arremessá-las, só o desavergonhado supremo é autêntico. Mas também isso, como, claro, tudo o mais, é apenas uma falácia.

THOMAS BERNHARD

A citação acima é mais do que necessária. Afinal, esta será uma desavergonhada anotação de pensamentos e de atitudes durante uma situação de crise e medo. Crise e medo injustificáveis, no final. Sinto certo constrangimento por ter sentido tanto medo, tanto receio; agora que tudo deu certo, em vez de ficar feliz, tenho vontade de dizer que sou um cagalhão. Tento inutilmente me convencer de que fiz uma cirurgia que poderia ter deixado feias seqüelas, mas não acredito mais nisso, é como se tudo fosse um embuste. Mas, vá lá. Vou escrever sobre o que aconteceu procurando desligar todos os filtros que me tirem da linha reta. Obviamente, isto é impossível: os fatos ocorrem é já os tornamos história catalogada em belos ou feios volumes encadernados em nossa memória, porém não custa tentar o impossível de anotá-los friamente. Como se não bastasse, toda anotação de uma história pessoal e tensa fica ridícula quando o resultado é alcançado rapidamente e é melhor que nossa mais feliz expectativa. Os registros de histórias que dão certo são um pouco nauseantes, sei lá.

O fato é que fui ao jogo de quarta-feira com a clara finalidade de esquecer a cirurgia do dia seguinte. Deu certo. Saímos eufóricos e arrumei as coisas para ir ao hospital sem pensar no medo que tinha de minha primeira operação na vida adulta. Dormi pouco, pois tinha que chegar ao hospital às 6 horas. Saímos cedo, eu, a Claudia e minha sogra; lá, fiz a internação e – por volta das 7h15 – fui encaminhado para uma salinha onde tirei toda a roupa e pus aquelas roupas engraçadas de doente. O único momento em que fui deixado sozinho com meus pensamentos foi na tal salinha, sentado no sofá, enquanto esperava a chamada. Como uma criança, juntei lado a lado os polegares das mãos e vi como eles refletiam a luz que entrava pela janela. Vi como a superfície das unhas não forma curvas perfeitas e sim diversas faces planas e paralelas, unidas entre si. Girava lentamente os polegares e via o reflexo da luz passar de uma faceta a outra. Olhava as linhas paralelas que vinham da raiz da unha e pensava em como sempre me dei mal nos momentos de crise em que permaneci passivo. Pensava em como escolhia a passividade nos momentos de crise e deixava para outros a resolução de meus problemas. Pensava em quão prejudicial esta “estratégia” havia se mostrado em outras ocasiões, em como tinham me roubado e prejudicado, talvez irremediavelmente, e concluí que tinha que estar, desta vez, ligado. Talvez porque me fosse mais fácil sucumbir do que me revoltar, do que ser contra tudo aquilo, essa era a verdade pura e simples. Muitas vezes nós cedemos, desistimos porque é mais confortável, essa é que é a verdade. (…) Eu tinha escolhido o conforto, a pequenez do adaptar-me e desistir, em vez de me opor, de partir para a luta, independentemente do resultado. Quando acordei, vi talvez três enfermeiros a meu redor discutindo se eu seria bradicárdico ou não. Eles comentavam entre si que eu estava com cinqüenta batimentos por minuto e que talvez o médico devesse ser chamado a fim de acelerar a coisa. Não, não fiz uma revolução, mas saí dizendo com certa veemência que eu costumava correr, estava em boa forma e que aquela era minha freqüência normal. Só havia uma coisa… Eu estava falando e mexendo o rosto normalmente! Fiz testes com minha boca sem sentir dor e entrei numa enorme euforia que me fez passar o resto da quinta-feira falando e defendendo minha alta de tal forma que minha cara acabou por ficar inchadíssima e repuxada para o lado direito. No outro dia, já estava bem novamente e recebi a esperada alta.

Sábado, já livre dos efeitos dos remédios, dormi quatorze horas. Ontem, doze. Nestas condições, e ainda bem cuidado pela Claudia, qualquer cicatrização ocorre rapidamente, creio. Não sinto dor alguma, o Grande Medo simplesmente não se fez presente. Nunca sofri grandes dores físicas, a não ser em dentistas e isto é o suficiente para detestá-los.

Agradeço muitíssimo às manifestações de carinho e interesse através de telefonemas e e-mails. Muitas ligações me encontraram dormindo e eu não as respondi porque sei que falar muito faz com que meu rosto inche, como voltou a acontecer ontem, no almoço.

P.S.- A citação grifada dentro do texto também é de Thomas Bernhard. Aliás, ambas foram copiadas de seus relatos autobiográficos reunidos no volume Origem.

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