Uma Noite do Palácio da Razão, de James R. Gaines

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Comprei Uma Noite no Palácio da Razão, de James R. Gaines (Record, 334 páginas) por dois motivos: (1) minha desconfiança sobre a história — a meu ver estranha — contada e recontada a respeito da visita de Bach a Frederico, o Grande, e (2) minha curiosidade sobre o enigma Johann Sebastian Bach. Leio quase tudo o que se publica sobre o homem.

O livro de Gaines não apenas satisfaz o que buscava como é muito mais. É um grande livro de história e um documento humano da melhor qualidade. Uma Noite conta a vida de Frederico e de Bach antes e depois de seu único encontro de uma noite. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, uma evidente sacanagem, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração incontida dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio oara os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.

Se fosse apenas isso, Gaines poderia ter escrito uma narrativa curta. Mas, como escrevi, o autor faz um longo, documentado e por vezes cômico relato da vida de seus dois personagens.

A vida de Frederico é interessantíssima e dramática. Seu pai, no século XVIII, pensava igual ao deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) e procurou impedir o homossexualismo do filho aplicando-lhe intermináveis séries de surras. Elas eram tantas e tão frequentes que vários amigos de Frederico lhe propuseram a eliminação de seu pai — ação à qual Frederico não cedeu — , assim como seu pai pensou várias vezes em matar o filho. A maldade era o tom do relacionamento. Frederico aprendeu a tocar flauta e tinha apreciável habilidade ao instrumento? Tirem-lhe a flauta. Frederico gosta de vestir-se de um modo um tanto gay para tocar? Queime-se a roupa. Frederico arranjou um namoradinho? Primeiro prenda-se Frederico e depois enforca-se o namorado bem na frente da janela de sua cela. Era assim.

Ignora-se como não se mataram, ainda mais que Frederico frequentemente aparecia machucado nas recepções palacianas. Nunca revidou um ataque paterno, nunca. Quando o pai morreu, Frederico não apenas sentiu-se aliviado como passou a colecionar casos no exército. De quebra, mostrou-se um talentoso administrador e um belicoso guerreiro, tendo conquistado outros principados para a Prússia a fim de merecer “o Grande”, com o qual costumamos ornamentar seu nome. Frederico, o Grande, era um iluminista amigo de Voltaire que defendia a tolerância religiosa e até certa democracia, que se preocupava com a fome e com a economia do país durante as muitas guerras. Era tão original e bom para o povo — a seu modo — que sempre foi dito que uma Revolução Francesa seria impossível na Prússia. Mas trocava de ministros a toda hora, fazia fofocas e enganava todo mundo, fazendo amigos e inimigos brigarem entre si, inclusive Voltaire. Era o Rei da cizânia. Além disso, bastante culto, só falava francês e, para terminar nosso breve retrato, digo o mais importante para o livro: não gostava da música do passado, como a representada por …

Bach era totalmente diferente. Pai de 20 filhos, era um chefe de família exemplar. Foi empregado a vida inteira e pelo mesmo tempo passou em lutas burocráticas com seus chefes por melhores condições e salários. Mesmo informadíssimo e curioso a respeito de toda a cena musical europeia, preferia ignorar os modismos — ou antes retirava-lhe o que achava que tinham de melhor — e aplicava-lhe a sua própria e pessoalíssima arte, advinda dos mestres que conhecera na juventude. Bach fazia uma música antiga para sua época, fato que atrasou por quase cem anos seu reconhecimento como maior compositor de todos os tempos e base para todos os que viriam depois de Beethoven.

Um era moderno, o outro era passadista. Um era jovem, o outro era velho (Bach). Um tinha conquistado a Saxônia e a Turíngia, o outro era turíngio e vivia na Saxônia. E, para piorar, Bach era pai de Carl Philipp, músico da corte de Frederico. Isto é, o brigão Johann Sebastian, se fosse ofendido, teria de ficar quieto para manter o emprego do filho. Foi o que fez quando notou que Frederico o encarava como um gênero de espetáculo circense.

Opfer significa oferta e oferenda, mas também sacrifício e vítima, cumpre lembrar.

O maravilhoso do livro de Gaines é que ele nos dá todo o contexto desta luta entre Bach e Frederico. E depois vai mais adiante, esclarecendo sobre o destino de ambos logo após a famosa noite. O compositor cego e o Rei alquebrado e deprimido. Para quem gosta de música ou história, uma obra imperdível. Recomendo fortemente.

P.S.- É óbvio que se trata da obra de um jornalista e crítico de arte. Nem imagino o que a Nikelen Witter e o Luís Augusto Farinatti, professores de história, achariam do livro do qual gostei tanto.

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28 comments / Add your comment below

  1. Bá, gosto de ler esse gênero de romance, que nem romance é, tampouco literatura, mas jornalismo ficcional, que brinca com muita liberdade com personagens histíricos. Até Coetzee fez um, O Mestre de São Petersburgo, sobre uma passagem da vida de Dostoiévski, e claro. Recomendo “Conspiradores”, de Michael André Bernstein.

    É claro que esses livros são pouco mais que um divertimento, navegando por pausibilidades e verossimilhanças com as tintas de uma fantasia de manual, tangenciando o folhetim. Mas leitores mergulhados em densa literatura também merecem espairecer com esse tipo de investigação graciosa, que não os desconectam das suas preocupações usuais mas conseguem mergulhá-los em algo que seria associado às novelas de tevê, se essas últimas fossem tão divertidas.

    Só um perigo: tomar a ficção por fato e sair dizendo por aí absurdos sobre o período histórico em questão porque o autor se disse embasado em sérias pesquisas; não duvido, mas a aridez documental analisada com argúcia não produz divertimento, mas o entendimento possível, e esse gênero – romance histórico – dá o entendimento como bônus: sua marca é a busca por um entretenimento engajado, quer dizer, com um verniz de cultura. Afinal, intelectuais precisam de álibus refinados para percorrer páginas e páginas de fofocas históricas, porém nada além do que isso, fofocas, embora, para Freud e qualquer um, fofocas não são pouca coisa – são o matraquear que nos define como seres dotados de cognição e expressão do riso.

    1. A parte bachiana pode ter sido bastante romanceada, mas a de Frederico, talvez não.

      O autor diz que a documentação sobre Frederico é surpreendentemente completa. Não apenas eles eram prussianos organizadíssimos — haveria registros de tudo — , como Fredi escrevia cartas copiosamente. Suas “Cartas” perfazem sei lá quantos volumes.

      Mas não pense que vou por minha mão no fogo por Gaines.

        1. Acredito que no livro tenha uns relatos mais picantes, tipo detalhes físicos, posiçõe, suores, cheiros, etc., essas coisas eróticas das quais depende a sobrevivência da literatura, mas nada tem a ver com relatórios imperiais.

        2. Nada. O livro é jocoso em algumas partes, mas não apela e nem tem diálogos, etc. Não é, decididamente, um romance nem uma biografia romanceada.

  2. Falando sério? Eu gosto realmente deste tipo de livro. E você atiçou minha curiosidade quanto à esse. Talvez, eu até prefira quando o autor romanceia – aliás, isso tem virado modo entre alguns historiadores também, vide O Príncipe Maldito, da Mary del Priore. Digo que prefiro, porque em alguns (não todos, por favor) aqueles que escrevem divulgação histórica parecem desfazer da inteligência de seus leitores e são excessivamente simplistas.
    Nem de longe me parece ser o caso do livro que você indica e resenha de forma convidativa.
    Confesso que as informações da Corte de frederico, o Grande, me soaram fantásticas. Fiquei imaginando como este rei oprimido e deprimido sentiu-se diminuído diante do talento genial de alguém que representava tanta coisa que ele desprezava. Talvez, Bach não tenha perdido o jogo, afinal.

    1. Ele se sentiu derrotado. Era um sujeito muito orgulhoso, ao que tudo indica. Era o erudito desconhecido, orgulhoso de seu conhecimento.

      O tempo deu-lhe a vitória, claro.

      1. Será que foi só o tempo, Milton? É possível que Bach nunca tenha percebido. Mas, pelo que você contou do livro: minha impressão é que a vitória foi naquele mesmo dia. Frederico soube, no mesmo instante. Claro, ele jamais admitiria.
        Ele foi mais um pego na maldição dos nobres de toda a modernidade: a de conhecer e conviver com homens que eles consideravam de menor qualidade, mas cujo talento os tornava imortais. A busca pela imortalidade é uma das grandes lutas do homem moderno e os nobres a perderam amiúde para homens vindos das camadas inferiores da sociedade.
        Eu acredito que, mesmo sentindo-se superior em muitas coisas, Frederico sabia estar diante de um talento imortal, assim como outros reis souberam. François II da França, enterrou Da Vinci em um de seus palácios e ele sabia que, no futuro, era por isso que o palácio e ele seriam lembrados, mais que por qualquer outra coisa.

      2. “O tempo deu-lhe a vitória” é uma concepção muito humana, naquilo que Espinosa dizia ser uma característica humana ver as coisas sob um certo aspecto de eternidade, mas a efemeridade é que dá mesmo o nosso tom; Bach morreu pobre e, como não há consciência após a morte para gozar nenhum êxito, a vitória só para nós valeu; mesmo essa, no entanto, numa perspectiva mais avançada, de nada servirá, pois tudo será esquecido com a extinção da humanidade, que tarde mas não falha. Resta-nos a satisfação de ouvir Bach hoje e fazer da audição nossa tênue sensação de eternidade.

        Putz, brega de novo!

        1. Humm, acho que estamos vendo por perspectivas diferentes. Você olha do ponto de vista do Fach, e eu do Frederico. Como eu disse, em termos de talento e eternidade (na própria época em que viveram), um, provavelmente, tinha a consciência e o outro não.
          Isso porque Frederico tinha diante de seus olhos e ouvidos, o extraordinário (a prova disso, me parece, é o desafio das improvisações). Bach, ao contrário, olhava-o com a sensação de estar em baixo e isso lhe tirava um pouco a perspectiva. Por mais que ele entendesse a extensão do próprio talento, na época, é possível que ele acreditasse que somente com o reconhecimento dos “grandes” de seu tempo, ele atingiria a imortalidade.

          Mas, ora, eu estou sendo metida e falando sobre um livro que não li, apenas com minhas leituras sobre a época, logo, posso estar completamente equivocada. O que seria bem normal.

      3. Nikelen.

        Bach era um sujeito de outro tempo. Sua ânsia de imortalidade parecia estar mais associada à religião e aos filhos. Era outro mundo. O cara não tinha noção de obra nem de escrever para o futuro, como Beethoven dizia que fazia.

        Sobre Frederico: quem sabe, né? Na época, o estilo galante tomava conta de tudo e o barroco era considerado um estilo difícil, fechado, só para eruditos mesmo. A ordem era a facilidade, a melodia pura, sem as difilculdades de cânones e contrapontos. Talvez Fredy tivesse a certeza de estar perante um mestre de uma arte morta. Quem sabe?

        1. Bosta, acho melhor deixar claro que a eternidade é um dos pilares da ética espinosiana; se o cara não vê adiante milhares de anos de responsabilidade civil (não algum deus, mas apenas a responsabilidadede seus atos pelas gerações seguintes e, de acordo com seus medos e suas relações, coma reencarnação ou um juízo final) por seus atos, tudo lhe seria permitido, como aventava Dostoiévski.

          O barato é esse.

        2. Bem, Milton. A Modernidade é uma época estranha, ninguém abandonou Deus, mas o homens querem ser “grandes” para além de suas próprias histórias. Buscam essa certeza em suas obras e isso nada tem a ver com saber disso lá do Paraíso.
          Bach podia querer o Céu, acima de qualquer coisa, porém, se ele assinava com o próprio nome suas obras, provavelmente, ele também queria mais. Dai a aprovação de Frederico, a quem, obviamente (e erroneamente), ele julgava seu superior.

  3. 1) O livro é muito bom mesmo. Vale a pena.

    2) Marcos Nunes: NUNCA duvide do espírito arquivístico germânico! 😀

    3) Milton, permita-me uma pequena correção: Bach serviu de base já para Beethoven, e base importante. Embora Beethoven, possivelmente, admirasse Händel um pouquinho mais, o miserável, segundo Lockwood, já era capaz de tocar TODO o Cravo Bem Temperado aos 12 anos (MALDITO SEJAAAA!!!). Assim, para usar uma expressão do próprio Lockwood, as últimas obras do Ludwig não foram uma “volta no tempo”, e sim uma “volta para casa”. Pelo menos para mim, o contraponto de seus quartetos me soa muito mais A Arte da Fuga do que Händel.
    No mais, excelente resenha!

    4) Eu não sei se o Gaines já adianta isto, mas há fortes hipóteses de que quem compôs o miserável “thema reguim” foi o próprio CPE Bach. A relação desses dois era beeeeem complicada.

    5) Curiosidade: o tal tema era tão difícil de fazer fuga por ser cromático. Grosso modo, significa que, quase necessariamente, uma fuga com aquela coisa seria uma série interminável de dissonâncias pesadas.

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