A editora Artes e Ofícios acaba de lançar uma excelente coletânea de contos de Guy de Maupassant (1850-1893), autor injustamente esquecido por estas plagas. Autor de romances, peças de teatro e principalmente de cerca de 300 contos, Maupassant foi um imenso escritor. Começou como discípulo de Gustave Flaubert (1821-1880), de quem foi efetivamente um aprendiz. Flaubert teria ensinado o futuro escritor a observar. Fazia-o olhar, por exemplo, para uma determinada árvore até que esta se distinguisse das outras por alguma característica que a fizesse merecer ser descrita literariamente. Porém, se Flaubert ensinou e viveu mais do que Maupassant, o discípulo logo deixou de observar tanto as árvores e escreveu em quantidade muito maior que o mestre. E, se parte da obra de Maupassant é realista, de grande apuro psicológico e extraordinariamente bem escrita como o faria Flaubert, o autor tinha bastante desenvolvida outra faceta cuja maior influência era a do americano Edgar Allan Poe (1809-1849).
Os três contos iniciais desta coletânea — O Horla, A Cabeleira e A Mão — focam este labo B, não flaubertiano, do escritor francês. O Horla é uma bela narrativa sobre o tema do duplo e da loucura aos moldes do William Wilson de Poe. A Cabeleira é escrito num clima peculiar de necrofilia erótica. Este conto, lido na adolescência e relido trinta anos depois, cresce muito pelos significados que apenas ficam a nossa disposição com a idade, infelizmente. Já A Mão é uma daquelas histórias de terror ao estilo das que escreveria anos depois H. P. Lovecraft (1890-1937), mas sem utilizar a adjetivação pesada e exagerada do americano. Um flaubertiano é elegante até, e principalmente, no terror.
Sem trocadilhos, a grande joia deste livro é O Colar. Além de ter criado uma grande história sobre o comportamento e submissão social, Maupassant chega aqui a uma execução perfeita. Um clássico irretocável que as dezenas de tentativas de adaptação para o cinema e a televisão tornaram ainda maior. O drama de Mathilde Loisel, ao dedicar sua vida ao pagamento de uma dívida, possui uma carga de humanidade e emoção que o tornam um dos melhores já escritos, valendo até trocadinhos de mau gosto.
Há duas coletâneas maiores de Maupassant, uma com 125 contos, com aquela capa horrível que distingue lançamento da mesma editora, e outra menor, se não me engano da Record, esta também com o impagável Bola de Sebo e outros mais. Sugiro aos interessados que procurem essas outras coletâneas mais abrangentes, embora esta última talvez seja também interessante para conferir a qualidade da tradução, para quem leu as outras ou conhece os textos em francês.
Escrevi uma variação para O Horla, está em http://asvariacoesliterarias.wordpress.com/2011/04/11/variacao-2/, que faz uma escolha interpretativa menos fantástica e mais política. Quem quiser pode ir lá e ler.
Eu tenho 5 livrões de 500 páginas mais ou menos cada um com a obra completa. Mas não sei qual é a editora. Devo tê-los há uns 25 anos. Há também a tradução dos principais contos que o Quintana fez para a Ed. Globo. Muito bom.
Vou lá ler.
Indiquei as coisas que estão à mão nas livrarias hoje; vale a pena ler Maupassant, embora a tônica dos textos seja mais para depressão do que para a celebração, ou melhor, celebração não vi nenhum conto, só alguns mais contemplativos e de verve humorística, apesar de azeda, como o já citado Bola de Sebo, de observação de costumes sociais e preconceitos de classe inamovíveis.
Quem teve sífilis tão cedo… É complicado celebrar, né?
Antes de morrer talvez celebrasse todos os dias, porque tava doido.
Eu gosto muito de Maupassant, mas é desses autores que não consigo ler muito. A vida começa a ficar tão escura…
Caro Milton, tal qual sempre: nada a ver;
mas tudo havendo (sem nada a receber).
Ainda bem!
GOTA D’ÁGUA
by Ramiro Conceição
A real evolução do pensar-sentir
não é aquela dita dos mais aptos,
mas a concedida, por direito,
aos inaptos da nossa aldeia;
pois não se sabe do Mistério
de trilhões de estrelas findas
a fazer parte duma bem-vida
e única – gota d’água!
errata:
embora muito interessante “bem-vida”, advinda dum erro, mas parece ser “bem-vinda” (porém estou numa puta dúvida…). Aceito sugestões…