Tenho ido ver frequentemente minha mãe na clínica onde ela se encontra. Como seu cérebro está inteiramente tomado pelo Alzheimer, ela fala em raríssimas ocasiões e acabo indo lá apenas para olhar para ela e dizer algumas palavras que lhe sirvam de alguma forma. A psicóloga da clínica disse que vozes familiares podem servir de consolo ou de lastro aos portadores da doença. Então, próximo a seu ouvido, digo coisas. Pergunto se está tudo bem, falo no passado e dou notícias de nosso time. Depois, passo alguns minutos perguntando para as enfermeiras como foi sua noite e mais nada. Estar em sua presença é estar 100% ali, tal é sua situação. Não há vida interior que me leve para fora. Sou filho, sou mamífero. Ela alimenta-se através de uma sonda e recebe oxigênio, ou seja, sua vida é destituída de sinapses e prazeres, está viva por estar, é doloroso mesmo.
Ela pouco reage a minhas iniciativas, apenas solta uns gemidos. Durante os minutos que fico na clínica, acabo falando muito, mas o contraponto de meu tagarelar são os pensamentos sobre o que foi minha vida com minha mãe. Há muita coisa positiva, uma montanha delas, mas é óbvio que um admirador de Kafka e Bergman vê também o lado negativo. Minha mãe era o esteio de nossa pequena família. Enquanto meu pai dilapidava o que ganhava em seu trabalho como dentista no turfe, minha mãe cuidava de tudo. O que um destruía, era reconstruído do outro lado. Ela também era dentista e ambos deviam ganhar bastante bem. Também tinham outra característica: brigavam pouco. A mãe dizia com ar conformado que o pai era um bom homem com um defeito sério. Como todo mundo, pareciam insatisfeitos; como poucos, pareciam viver bem.
Então, minha mãe não apenas me dava carinho, mas também era o banco da casa. Sempre que precisava de dinheiro, o ideal era falar com ela. Minhas demandas eram muito simples — sempre fui um sujeito financeiramente contido — e não lembro de algo que me fosse negado. Livros, cinema, um pouco de dinheiro para sair, tênis, alguma roupa, quase nenhuma viagem, sua carteira sempre estava aberta para coisas pouco dispendiosas. E minha educação foi toda na escola e universidade públicas. Também foi quem insistiu comigo para que eu lesse muito. Porém, não lembro de ver minha mãe com um livro aberto — e eu a conheço há 54 anos. Ela simplesmente não lia, mas sabia vender bem o que quisesse ver realizado. Como esta, havia uma série de incoerências que eu apenas passei a ver depois de anos.
Domingo passado, quando vi Persona, observando aquele menino sob o imenso fundo da imagem da mãe, pensei no tamanho que ela tinha para mim durante minha infância e adolescência e no que era necessário fazer a fim de agradá-la. Pois havia uma conta a pagar. Por exemplo, quando estava no segundo ano do segundo grau, apaixonei-me pela literatura e decidi que ia fazer Letras. A repercussão de minha descoberta foi a pior possível. Em duas conversas curtas, ela me disse que era um absurdo, que eu tinha que fazer a faculdade em algo da área científica e que era impossível viver de “Humanas”. Estávamos em plena ditadura militar e os cursos universitários não científicos eram coisas a serem quase combatidas. Sua preocupação era financeira. Como eu detestava Biologia, acabei fazendo vestibular para Engenharia Elétrica — o mesmo curso que fez um primo irmão meu e que eu sabia que estava dentre as profissões aceitáveis. Na verdade, eu mal sabia do que se tratava. Passei facilmente — poderia ter entrado em qualquer curso — , e fiquei perdendo tempo na Engenharia. Lia os clássicos, na verdade. Nunca terminei o curso. Dois anos depois, fiz Comunicação Social, mas aquilo foi rapidamente contestado e eu larguei o curso na metade. Então, entrei na área de Informática, voltei a ser aprovado por ela, me formei, coisa e tal. A culpa é dela e minha. Ela por ser autoritária e eu por ser o babaca que desejava vê-la feliz.
Minha mãe podia ter As Melhores Intenções (outro roteiro de Bergman), mas era uma equivocada. E eu permitia que ela o fosse. Nem tudo eram rosas com a Dra. Maria Luiza e às vezes tenho ganas de começar a reclamar do uso que ela fez da avassaladora influência que tinha sobre mim. Estranhamente, não lembro de reclamações de meu pai. Ele era divertido, talvez indiferente às preocupações da mãe e eu sempre o preferi. Ou será que eu simplesmente limpei tudo de ruim pelo fato de ele ter morrido em 1993?
Será que eu reclamasse dela agora mudaria o tom de seus gemidos? Não creio. Afinal, quando eu lhe disse que o Grêmio ganhara o último Gre-Nal ela não fez cara nem de ódio nem de decepção.
Milton, reclamar sempre, não acredito em pessoas que não reclamem. Ler seus textos sempre é uma descoberta, uma pausa para melhorar o dia. Minha querida avó materna teve a doença e cuidei dela. E foi um momento de aprendizado para mim, essa falta de reação, é o que mais incomoda.
Que nó na garganta me deu…
nós, ramiro
É quase impossível ler com neutralidade um discurso sobre a Mãe. As identificações, lembranças, medos e afetos reverberam dentro do leitor. Obrigado, Milton, por compartilhar.
O terrível defeito das mães de serem enormes. A minha é. Eu sou. É assustador. É inevitável. Será que é possível as coisas serem de outra forma? Eu não vejo como. Um texto capaz de preencher o ar a nossa volta. Obrigada, Milton.
Grande peso tem esse seu belo texto em mim, nessa sexta. Há duas semanas minha sogra se perdeu a três quarteirões de sua casa, sendo levada por uma desconhecida de carro, e desde então expressou vários sintomas de esquecimentos que nos fez pensar no Alzheimer. O médico disse que, por ser ainda jovem para a manifestação da doença (tem 50 anos), as causas deveriam ser um stress acentuado.
Há um blog que eu sigo em que seu autor se propõe a ler e reler uma porção de bons e grandes livros para dar mais trabalho ao Alzheimer. Cada livro que lê, esse faz uma intimista e fantástica resenha. Já leu mais de 600 livros até agora, e não para. Sempre me emociona esse tipo de luta arraigada contra algo que, hoje, parece ser um mal irrefreável. Mas também me lembro do quanto me impressionou a leitura de Nêmesis, o recente romance de Roth, no qual demonstra o quanto a humanidade, há pouco mais de 50 anos apenas, tinha a poliomielite como uma doença cruel e incurável.
Que bom texto hein? que triste!
e, temos a mesma idade entre outras coincidências…
Você sabe, não é, Milton. Mãe no Brasil é uma unanimidade nacional. Então, desnecessário dizer que chorei contigo essa visita e a amei tanto quanto pude a partir de tuas linhas. Essas mães nossas daqueles tempos, elas eram assim, meio insubstituíveis. Ainda tenho a minha, com a graça de Deus (do meu Deus – eheheh). Milton, essa tua pessoalidade permitida torna a gente mais teu e tu mais nosso.
Um beijinho na ponta do nariz para ti.
Sabe, a palavra é um mal, mas também é um bem. E escrever sobre algo que nos maltrata, o dizer nos amplia, não nos tira o problema, mas permite que a gente encare a fera da vida. Mais, o falar sobre o que nos mexe, toca também no que nos fala. E sob certo ponto de vista, não muda a dor, mas muda o modo com a vemos. Amigo, Milton – posso chamá-lo assim? – vai aqui a minha solidariedade.
Enéas.