O velhinho Dourado

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Autran Dourado

Este texto é de 2009. Ontem, pela manhã, Autran Dourado faleceu. Fica a homenagem meio atravessada.

Ontem, cansadíssimo, liguei a TV na Globo News e dei de cara com um velhinho trêmulo que falava com alguma dificuldade. Reconheci-o imediatamente. Era o mineiro Autran Dourado (1926). Fui seu fiel leitor durante os anos 80. Este homem produziu um grande livro — Uma Vida em Segredo — e outros bastante bons, como Os Sinos da Agonia, O Risco do Bordado, Ópera dos Mortos, etc. Peguei só o final do programa. Uma pena.

Não sei se Autran Dourado ainda escreve, espero que sim. Penso que ele seja um caso único em nossa literatura. Grande estilista, não conseguiu escrever sobre temas dignos de seu talento. Era um cantor sublime cantando músicas de qualidade discutível. Os grandes livros aos quais me refiro são prodígios de escritura, mas talvez só em Uma Vida em Segredo (1964) Autran tenha acertado em tudo. Por que esta dificuldade? Não sei, só posso especular. Assim como Balzac, Autran criou um mundo. Em sua cidade ficcional, fazia seus personagens irem de livro de livro, quem era protagonista de um era periférico em outro. Há muito engenho neste tipo de construção, porém as histórias nunca vão fundo. Muitas vezes por pudor, outras talvez por supervalorizar a importância de seu virtuosismo, Autran deixa de lado a psicologia dos personagens e a descrição da provinciana sociedade do interior mineiro. Teve temas maravilhosos nas mãos, mas atirou-os pela linha de fundo.

Mesmo assim, Autran tem sua obra prima. A história de sua personagem Biela, de Uma Vida em Segredo, é muito parecida com a da criada Felicidade, de Um Coração Simples, de Flaubert. Isto não tira em nada os méritos do livro. Sua escrita estupefaciente torna-se grandiosa ao narrar a vida absolutamente sem graça e sem aspirações da órfã que é herdeira de posses, mas que parece pedir licença para viver. Biela, a moça que desejava apenas a companhia de serviçais e que só sonhava em voltar à infância perdida, é um dos maiores personagens de nossa literatura. Creiam, esta é uma indicação quentíssima.

Esta crônica curta, quase um lembrete, é uma pequena homenagem a um estranho caso de nossa literatura. Estilista genial, mas de poucas boas idéias, Autran Dourado precisaria de um roteirista para transcender suas limitações. Uma outra curiosidade é a seguinte: eu nunca conversei com ninguém sobre Autran, pois nunca mantive contato com alguém que tivesse lido um de seus livros… É inacreditável.

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21 comments / Add your comment below

  1. Milton, tenho um amigo que é leitor e conhecedor da obra do Autran. Já me recomendou algumas dezenas de vezes e vou deixando pra depois. Aqui em Minas, de vez em quando, uma ou outra página ‘cultural’ de jornal faz-lhe uma homenagem (geralmente fraca).
    Sua dica é quentíssima mesmo, será que agora vou correr atrás do prejuízo?
    Um grande abraço, vermelho e centenário.

  2. Autran é um craque da metalinguagem. Esteve no ES, nos anos 80, num debate sobre ficção e metaficção. Deu show. Autografou seu livraço “Uma Poética do Romance: Matéria de Carpintaria”, que reputo como um dos grandes textos teóricos produzidos por brasileiros. Só comete o desacerto de tentar explicar sua obra. Não há necessidade. O leitor que se vire.

  3. Li Uma vida em segredo por obrigação, no segundo grau, pois nossa professorinha (muito bonitinha…) gostava de nos fazer ler e escrever nossas pobres análises (o que poderiam fazer rapazes e moças naqueles distantes e repressivos anos 70?).

    Lembro-me dele. Penso em Biela como demonstração do arcaísmo que percorre nossa imaginação e limitação de país agrário, preso a estruturas primitivas de produção e pensamento, a conviver com as mudanças comun s a qualquer época, no Brasil ainda mais significativas, em razão desse mesmo arcaísmo que, além de resistente, se agrega às mudanças e, assim amalgamado ao novo, o faz velho, prévincado de rugas de um tempo que não viveu, mas na memória seus rudimentos persistem e nos fincam ao passado.

    Acho que li outro livro dele, e não gostei. Pressinto nele um certo reacionarismo, expressado amargamento em licros como Uma vida em segredo. Ou talvez o mesmo velho lamento, um vagido oriundo de um país agrário, condenado à miséria, ao subdesenvolvimento e à saudade do que nunca existiu.

    1. Ele foi secretário de Imprensa do presidente Juscelino Kubitschek em 1956. Um site diz que:

      “Autran Dourado ganhou de maneira extremada a confiança e a intimidade de Juscelino. Muitas vezes despachava com ele à beira da banheira, o majestoso presidente em pleno banho (ele nada tinha de homossexual, assegura)”.

      Bem, se para revolucionário não serve, deve ter se irritado bastante com a ditadura…

    1. Li os dois há muito tempo — mais de 30 anos — e sei que um deles dois é muito bom: Ópera dos Mortos ou Os Sinos da Agonia. Pena eu confundir os dois.

      Deve ser Ópera.

  4. Ópera dos mortos retoma, de certa maneira, o velho ditado de que os mortos governam os vivos – de longe a gente pensa em Antígona… Mas o livro é bonito, recria uma atmosfera sufocante de dentro de uma casa no interior de Minas, duas mulheres vivendo isoladas, até que…
    E Sinos da agonia é Ouro Preto do século XVIII, que aflicao, até hoje é pesado daquele jeito – nada se move sem dor.
    Um abraco daqui de Minas.

      1. Falando em livros mineiros, gostaria muito de ler seus comentários, se você leu, sobre O amanuense Belmiro, um dos meus preferidos desde sempre. Se nao leu, fica a dica; se você anda por caminhos machadianos, ou drummonianos, vai gostar.

        1. ricardo sp
          on Mar 30th, 2009 at 11:32 pm, lancei um pitaco:
          Aos frequentadores deste espaço de lucidez cultural: qual a opinião sobre “O amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos… pra mim, um romance e tanto.

  5. Faltam, aos escritores brasileiros, ambição literária, um senso de desabnegação e sacrifício pela literatura.( Já ouço o riso de mofa do Marcos Nunes!). Outro escritor que desperdiçou seu enorme talento, até que sua capacidade de escrita se reduzisse à redação burocrática do estado, foi Bernardo èlis. Élis tem cinco ou seis contos grandiosos e universais, entre eles A Enxada, que remete aos melhores relatos da Rússia pré revolução. Daí, ele relaxou a linha, escreveu um romance mutilado, O Tronco, que só serve às monografias de final de graduação, e passou, lastimavelmente, a ser ghost-writer com grife, escrevendo loas a administradores goianos. No final da vida, lamentava não ter dinheiro para completar a coleção dos livros do Saramago. O Nöll, que a mim parecia uma grande promessa depois de ler Rastros de Verão, deu no que deu. Todos sofrem de uma autoestima debilitada, e de um complexo de inferioridade quanto aos outro escritores latinoamericanos.

  6. Caro Charles Campos, sou leitor de quase toda a obra de Autran Dourado e, como goiano, conheci pessoalmente Bernardo Élis. De fato, ele tinha uma baixa estima incompreensível. Tinha grande admiração pela cinema, apesar de não ser um cinéfilo, e se queixava de não ter sua obra filmada. Estranho, pois é um dos escritores brasileiros cuja obra mais inspirou filmes, alguns com expressivos cineastas nacionais. Creio que Bernardo Élis foi emudecido pelo fenômeno Guimarães Rosa, que obscureceu sua obra, em que pese a grande qualidade dela, especialmente, como dizeste bem, os contos, alguns dois quais antológicos, como A Enxada. Bernardo viveu muito, mas escreveu relativamente pouco, provavelmente afetado pela falta de rumos do regionalismo pós-Rosa. Os lamentos de Bernardo Élis quanto à falta de dinheiro também eram infundados. Levava uma vida confortável, ainda que não fosse rico, e gozava de muito prestígio no Estado, não lhe faltando homenagens, até pelo fato de ser um imortal da ABL. Salvo no final da vida, quando incorreu no grave erro de ser secretário estadual de Cultura aos 80 anos, sem nenhuma experiência administrativa anterior. Além de ser um homem indeciso por natureza, com uma personalidade intrinsecamente avessa ao mando. E aceitou ser secretário de Cultura exatamente de um governo que tinha uma fama justificada de ser inimigo da área. Acabou sendo execrado pelo próprio pessoal da Cultura, sempre muito dependente das verbas estatais. Com isso, perdeu a unanimidade local a que tinha direito e que poderia lhe garantir, no final da vida, homenagens e paz.

  7. Machadiano, só hoje vi a sua resposta. Agradeço por sua atenção e pelas informações importantes do comentário. Élis, apesar de suas limitações, foi um escritor muito lido por mim na adolescência, e guardo o impacto desses contos mencionados como guardo o impacto da melhor literatura universal que me passou pelas mãos. García Márquez_ que é um autor do qual já li tudo, sem exageros ou necessidade de falsa modéstia ( afinal pra que, já que costuma-se contar vantagem sobre dinheiro, e não algo obsoleto como cultura)_ disse que o escritor deve escrever por prazer e sacerdócio, sem se preocupar com reconhecimento e dinheiro. A vida ideal para Kafka seria escrever de dentro de uma caverna, de tal maneira que o alimento fosse-lhe passado por uma fresta. Apesar do romantismo e exagero, não dispomos de uma quantidade representativa de grandes escritores por a maioria deles se renderem, entregarem as armas, não resistirem ao processo alienante que mata o escritor. Élis é o exemplo emblemático: a fúria e o asco com que retratou a injustiça do coronelismo goiano em sua melhor produção, e, no fim da vida, cai tão miseravelmente no engodo do coronelismo em seu mais elevado grau de pureza que é a burocracia do estado goiano. A propósito, as informações do primeiro comentário, tirei de uma edição do jornal “Opção”. de há muito…

  8. Eu achei que o que é apontado como limitação em Autran Dourado houvesse sido devidamente justificado na sua Poética do Romance. Mas o que você diz sobre virtuosidade técnica acompanhada por limitação imaginativa me recorda uns ensaios esquisitos do Fernando Pessoa, nos quais, citando Shakespeare como exemplo notório, defende que uma poderosa faculdade intuitiva, tal como a tinha o dramaturgo inglês, vem quase necessariamente acompanhada por deficiências quanto às capacidades construtivas, ou seja, técnicas, do escritor, sendo o caso inverso, o de um senso ou rigor construtivo muito apurado, relacionado a uma forma mais intelectual, menos “inspirada” e imaginativa de literatura. Talvez o problema de Autran Dourado seja justamente o de virtuosismo técnico excessivo, do qual seria indício a capacidade de teorizar sobre os próprios processos, capacidade manifestada na citada Póetica do Romance. Seguindo o raciocínio de Pessoa, talvez pudéssemos ver em Clarice Lispector uma espécie de antípoda de Dourado na literatura brasileira.

  9. “eu nunca conversei com ninguém sobre Autran, pois nunca mantive contato com alguém que tivesse lido um de seus livros… É inacreditável.”

    Escrevi sobre isso no meu blog. Metade de minha cidade (Irecê, na Bahia) compartilha do sobrenome Dourado, e sempre me perguntei se ele era meu parente, o que ninguém sabia responder direito. Há poucos anos, saiu uma genealogia que o colocava entre os Dourados ilustres (junto com a atriz Regina Dourado, entre outros), mesmo assim, ainda não o li, e não conheço ninguém aqui que o fez.

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