O Último Minuto, de Marcelo Backes (I)

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Farei dois ou três comentários acerca de O Último Minuto, de Marcelo Backes, em razão de minha participação no lançamento do livro em Porto Alegre, lá no StudioClio, na próxima quinta-feira, às 19h30. Serve como anotação, certamente desorganizada. 

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A pedido do Backes, li O Último Minuto quando era ainda um arquivo do Word e tinha o nome de Morte Súbita. Demorei a me resolver a ler, demorei a responder ao Marcelo. Quando o fiz, ele disse: “Olha, já é outro livro. Certamente, tu vais comentar coisas que foram alteradas”. Tudo inútil, portanto, e tudo muito curioso, pois a releitura, feita agora já sob um novo nome e no formato de livro (Companhia das Letras, 221 páginas), é realmente desconcertante. Jamais manteria a sinopse que catalogara em minha memória no ano passado e que vou tentar recriar sem spoilers. Fico pensando na extensão das reformas empreendidas pelo Backes e que agora nem posso conferir porque tenho o hábito de deletar originais. Já imaginaram se aparecem em outro lugar?

O livro é narrado por um seminarista que faz sua pastoral no presídio visitando João, o Vermelho, ou mais exatamente Yannick Nasyniak, um gaúcho oriundo de uma comunidade russa do noroeste de nosso estado. Em sua cela, o Yannick-João aguarda e teme a sentença que inevitavelmente virá. João está longe de ser uma figura amável. A franqueza com que ele brinda o seminarista não é desviada por quaisquer obstáculos quando se trata de falar da vida, porém suas digressões servem claramente para evitar contar o motivo de sua prisão. Ou para antes compreender alguma coisa de si mesmo. É um grande personagem, inteligente e duro, articulado e “grosso”. Na verdade, ele vai pouco a pouco entregando suas vísceras, mal embaladas num relato de homem desesperado, entremeadas de todo o tipo de reflexões.

Somos informados desde o início que ele é um preso que tem medo que o país adote a pena de morte. Com isso, sabemos que seu crime foi algo grandioso ou hediondo. Porém, o tema do livro não é a explicação do crime ou suas circunstâncias. É óbvio que ficamos curiosos, mas não estamos dentro de um whodunit hitchcoquiano cheio de artimanhas. Seu tema é a amizade, a paternidade e o próprio diálogo — o processo por trás do diálogo — , penso. O diálogo que, se não permite mudar as circunstâncias, repõe ideias e dá nova feição ao futuro, não necessariamente sob formato mais luminoso do que o passado. O diálogo que também é muito enganador no início, para depois tornar-se mera superfície e logo fato.

João é um técnico de futebol de segunda linha — treina juniores — e desvia o assunto para o futebol. João explica da forma mais tosca e preconceituosa os motivos que o levaram a largar a mulher de sua terra com a qual se casara jovem, dando explicações absolutamente machistas. Mais teorias. Ele tem uma relação difícil com o filho que não desejava e que não ama. Teoriza de forma brutal e inacreditável a respeito.

No auge da narrativa “dura”, antes das marcas de umidade penetrarem em sua fortaleza argumentativa, há um capítulo cuja lógica e falta de compaixão chegam a tal paroxismo que se torna cômico como alguns de Céline e Bernhard. O capítulo que narra a justificativa da separação de João e “das tranças”, a primeira mulher, por exemplo. Nosso personagem dá um show de explicações do tipo causa e consequência: primeiro ele refere-se PRECONCEITUOSAMENTE às mulheres em geral, todas com comportamento semelhante; depois começa a DESQUALIFICAR “das tranças”. Mesmo morando com ele no Rio de Janeiro, onde ele treinava uma equipe de juniores, ela jamais saíra da roça. Ele não diz A PESSOA SAI DA ROÇA MAS A ROÇA NÃO SAI DA PESSOA, mas fica implícito. Depois reclama da MESMICE daquela “comidinha caseira”, sempre a mesma, comentando as putas que cita de forma mais que VULGAR. Fala nos preços das putas e logo passa à narração — com alguma PENA — de como a fizera sofrer quando morara longe e mandava pouco dinheiro para ela e o filho. Depois entra no assunto de como a das tranças tinha pouco trato social e era INCONVENIENTE e GROSSA. Passa a contar sobre um jantar com o presidente de seu clube e fala em sua VERGONHA por estar ao lado de uma mulher que escolhia os pratos mais baratos só para não fazer o ricaço — que devorava e bebia pantagruelicamente tudo do bom e do melhor e não estava nem aí — ter que pagar. Depois narra uma BRIGA em torno de suas hemorroidas, problema que sua mulher contara à empregada para ver se lhe indicavam um médico. Ele temia que todo o bairro soubesse de SEU CU. Manda-a embora. FIM. Mas o FILHO, aquele inútil, fica e ele o deixa, como insuficiente REPARAÇÃO, de titular de seu time no lugar de um futuroso centroavante. E ele MUDA DE MULHER. Este é o auge da narrativa dura.

E fala, fala e pensa muito porque quer entender o que aconteceu. E aqui e ali seu discurso torna-se profundo e universal, sem perder a irremediável rusticidade.

Devia ter dito antes que o narrador do livro é o seminarista. Contrariamente a João, o seminarista é um narrador confiável e culto, ao estilo do Serenius Zeitblom de Doutor Fausto ou do Nick Carraway de O Grande Gatsby, mas não é tão opaco quanto o primeiro nem tão hesitante quanto Nick. O discurso livre indireto do seminarista frequentemente desencarna de João. O candidato a padre várias vezes toma a palavra, sendo que ganha foros de protagonista ao final do livro, tudo porque João, num dos grandes momentos do livro, volta-se para ele, cede seu lugar na cama e inverte os papéis: agora é a tua vez de falar. E o que ouve não são louvações religiosas — tudo o que não há na relação entre os dois é religião — , o que ouve é um discurso tristíssimo de um filho, não de seu filho, mas um discurso absolutamente inesperado. É bonito.

O livro tem outra característica fascinante: a variação de velocidade. No início, João arrasta-se, avançando lentamente sua história, falando mais sobre generalidades do que explicando sua situação. Há uma grande aceleração no momento em que o seminarista vê em oferta, num shopping, uma camiseta do clube de João — casualmente aquela camiseta gloriosa do amado campeão de tudo. Ele a compra e vai ao presídio com ela. É abraçado em silêncio. A demonstração de afeto e de identificação parcial quebra em boa parte a resistência do preso. Depois, quando os papéis são invertidos, o livro ganha ainda maior velocidade. É o contra-drama do seminarista que, de forma muito bela, precipita o restante da história e a atitude final de João.

Com efeito, O Último Minuto não é apenas o encontro de um pai que procura seu filho e de um filho que procura seu pai, duas tentativas de reconstrução que… não dão certo. Ou que dá certo apenas para um deles, como saber?

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