“Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”, diz o personagem Ivan Karamázov em Os Irmãos Karamázovi, de Dostoiévski. O russo era cristão e escritor genial. Tão genial que lograva transferir-se para a pele de seus personagens de tal forma que é difícil supor as ideias do homem por trás das do romancista, que era indiscutivelmente cristão. Mas que cristão ele foi? Não sabemos, pois Dostoiévski não parece projetar-se em ninguém, em seus romances não há uma voz onisciente que comanda tudo. Desta maneira, o ateu Ivan Karamázov era provocativo, principalmente com seu irmão mais moço, o beato Aliócha, e a célebre frase é um caso exemplar de descontextualização por ter sido pronunciada por Ivan para Aliócha e não de Dostoiévski para uma plateia.
A noção de entidades superiores que julgam os atos dos homens talvez preceda a própria noção de humanidade. Para a antiguidade, mais ainda do que hoje, Deus criara não apenas a vida e a existência do mundo e do universo, mas encarnava os preceitos éticos do certo e do errado. Deparando-se com o caos da vida e com leis insuficientes, os homens precisavam de limites. Sem eles, talvez os homens roubassem e matassem uns aos outros, cada um pensando ter direito a tudo. Deus os olharia e julgaria, no papel de representante do bem, do correto e da retidão, enquanto o Diabo representaria o mal, o errado, a destruição, o roubo e a morte. O ser humano que estivesse em união com Deus seria também um bom cidadão, por assim dizer.
Depois — durante toda a Idade Média e além –, Deus permaneceu identificado com o Bem, a Justiça e a Verdade. Santo Agostinho (354-430), bispo, teólogo e filósofo da Igreja Católica, fundamentou a moral cristã na busca pela felicidade e a felicidade suprema consistiria num encontro com Deus na imortalidade. Só assim o homem poderia ser verdadeiramente feliz. E, para sê-lo, bastaria obedecer a suas leis e preceitos morais.
Já o ateísmo, meus queridos, como explica o filósofo e escritor Gonzalo Puente Ojea, apenas nega o teísmo. O ateísmo não existe com a finalidade de atacar os crentes, apesar de alguns de seus membros viverem enchendo o saco dos crentes só por encher. Mas dá para entendê-los: o Brasil, país provavelmente em situação pré-fundamentalista, tem uma Constituição que declara o estado como laico mas que foi escrita ‘sob a proteção de Deus’.
Já disse e não canso de repetir: as religiões jamais serão extirpadas da humanidade. Mas, do ponto de vista individual, acreditar ou não em uma delas é algo de foro íntimo. A venda da religião, a agressão a ateus e a membros de outras religiões prejudica o mundo, as relações sociais e é a mais funesta das intervenções da subjetividade sobre a sociedade. A grande vitória a ser obtida por nosso século seria o recuo das religiões, pois a consequência de sua presença impositiva é a desconstituição de direitos por parte de seus representantes. O Brasil até hoje não permite o aborto, por exemplo.
Os ateus e os teístas tolerantes deveriam manter suas posições, impedindo a invasão do público pelo privado. Nas escolas, a história das religiões seria ministrada por historiadores, não por religiosos, por exemplo. Porém, …
O UOL diz que “as eleições deste ano contarão com 270 candidatos que se declararam pastores, um crescimento de 40% com relação ao pleito de 2010 — quando 193 pessoas disseram ocupar o cargo. Além disso, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) registrou a candidatura de 32 bispos (25% a menos do que em 2010) e 16 padres (30% a menos)”. Tal fato é um perigo para as instituições democráticas. Ele demonstra apenas a crise educacional de nosso país, tendo em vista que os países de maior IDH e desenvolvimento material são os que possuem maior número de ateus.
E o Dostoiévski lá do início? Melhor esquecê-lo? Não, de modo algum. Afinal, a frase deve ser limitada a uma inteligente provocação de Ivan Karamázov a seu irmão Aliócha. A quem duvidar disto, bastará ler o que diz Raskolnikov em Crime e Castigo. Neste romance, há a apologia do assassinato: o personagem principal justifica-se com Napoleão — “há que se sujar a fim de se obter poder”… Temos informações que Dostoiévski jamais assassinou velhinhas a machadadas. O personagem acaba antes do autor, assim como o privado antes do público.
Esta é uma resposta muito livre a esta provocação.