Qualquer coisa sobre o encantamento amoroso

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Ela e um bobalhão aí
Ela e um bobalhão aí

Ninguém tem vontade de falar de amor, se não for para alguém.
Roland Barthes — Fragmentos do Discurso Amoroso

O psiquiatra Flávio Gikovate tentou explicar o encantamento amoroso ou aquela mágica que nos dá o clique da fascinação e do arrebatamento. É um assunto que me interessa, pois, quando não esperava mais, tive o maior clique amoroso de minha vida no ano passado, aos 56 anos. Repentinamente, voltei a meus anos jovens. Quando não estava trabalhando ou fazendo algumas dessas coisa chatas a que nos obriga a maturidade, esquecia-me do restante da vida e passava a divagar longa e apaixonadamente sobre o ser amado. E passaram a acontecer coisas que eu quase já havia esquecido, como o prazer de apenas observá-la fazendo qualquer coisa. Ela não precisava estar tocando violino para ser admirada, poderia estar apenas cortando o pão durante o café da manhã ou fazendo outra coisa única e maravilhosa, como amarrar seus tênis. Pois o ser amado insiste em apresentar-se como algo novo e exclusivo. A característica mais marcante do ser amado, seja ele qual for, é ser “totalmente único e totalmente original”, ao passo que o amante, eu, no caso, é sempre ordinário, comum, não merecedor do ser que ama, como talvez tenha dito Barthes.

Flávio explica que o encantamento amoroso “não acontece por acaso e de modo mágico”. E coloca três ingredientes que considera fundamental na escolha sentimental: “o fato daquela pessoa despertar algum tipo de entusiasmo erótico, a presença nela de alguns ingredientes particularmente agradáveis para o aquele que se encanta e também um aspecto claramente racional relacionado com a admiração. Cada um desses elementos tem seu peso e, de alguma forma, todos participam do fenômeno, aparentemente mágico, que faz com que uma pessoa neutra se transforme, em pouco tempo, em alguém essencial e único, longe de quem parece impossível imaginar a continuidade da vida”.

Não vou falar do componente erótico, pois não creio que meus sete leitores estejam preparados para isso. Mas é claro que ele é fundamental e facilmente confundido com o amor. Também costuma ser péssimo conselheiro. Muitas vezes, o interesse que é detonado por uma característica física é pulverizado por um erro crasso de conjugação verbal, por exemplo. Então passemos aos próximos itens.

Às margens do puramente sexual estão a aparência, a voz, o caminhar, o olhar, os gestos, o modo de abraçar, o cheiro. Há outras admirações no campo intelectual. O humor, a resposta inesperada, e tudo que envolve a expressão, incluindo a roupa, que tem de ser colocada no campo da expressão, pois ela nos agrada e desagrada tanto quanto o que diz o ser amado.

Aos itens acima são somados outros ingredientes mais, digamos, psicológicos (ou patológicos). Pessoas com baixa autoestima admiram os mais seguros? Os tímidos admiram os expansivos, os apaziguadores valorizam os agressivos? Não sei. Sempre achei estranha aquela coisa de alguém ver um casal que não tem nada a ver um com o outro e dizer: “Como eles se completam!” Com minha habitual delicadeza interna, costumo pensar: “Se completam uma merda! Vão se detestar em um ano!”. Esse negócio de se completar, de preencher um ao outro, deve ser muito chato fora da cama. Gera atritos. Acho que um casal que cultiva gostos semelhantes deve estabelecer mais e melhores diálogos, tornando a relação mais interessante.

Apesar de seu total desconhecimento — “Um Gre-Nal é Grêmio contra quem?”, perguntou-me ela no ano passado — ela tem suportado até meu futebol. E ajudamo-nos mutuamente. E dividimos os gastos. E vamos muito bem. E não sei como acabar este texto improvisado. Até porque nada acabou e tenho ainda a sensação de que a procurava há incontáveis anos.

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3 comments / Add your comment below

  1. Muito bom !
    Enjoy!!

    Como uma amiga psicóloga me disse:
    “O casal perfeito deve ser o formado por dois arqueólogos: quanto mais eles envelhecem, mais se amam”

  2. A todos desse blog, benignas festividades…

    ALFA DO CENTAURO
    by Ramiro Conceição

    A primavera do contentamento
    converteu-se agora em outono
    debaixo da lua fria da nossa história.
    Os pássaros que outrora enfeitavam
    agora quietos adormecem à janela.
    E a música que acalentava sonhos
    agora virou a insônia de tormentos.

    As nossas gargalhadas compridas,
    as nossas juras… ensandecidas,
    a nossa inocência bendita, agora,
    são cicatrizes em nossos sorrisos.
    Agora, ao invés do entrelaçamento de nossos braços
    ao enfrentamento de qualquer um de nossos horrores,
    há somente nós… Seres incompletos… E separados.

    Porém em nós, os construtores dum jogo amoroso
    não restrito a nós, mas ao mundo em que vivemos;
    em nós, os exilados, os tradutores do fogo sagrado
    e, ao mesmo tempo, tão orgulhosos, tão avarentos,
    gulosos, irados, luxuriosos, invejosos e preguiçosos;
    ainda assim em nós, por mentira que pareça, nascem
    as libélulas metálicas de nosso retorno à Alfa do Centauro.

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