Onze anos de Elena e Milton. Quando digo que, descontando uns outros, és meu primeiro amor, brinco apenas parcialmente. De certa forma é mesmo. Explico. Todo relacionamento de qualidade assim mais ou menos, um dia chega a seu topo e começa a descer. O quão íngrime é a descida depende de muitas coisas, às vezes o ângulo é tão severo que a gente desce como um carro sem freios matando um monte de coisas pelo caminho: respeito, vontade de se aproximar, tudo. Mas, onze anos depois, ainda me dá aquela súbita vontade de te abraçar mesmo quando estou longe e isto é impossível. Ou seja, devemos estar em terreno quase plano. E ontem, quando estava palestrando, eu sempre dava uma olhadinha pra ti em busca de alguma inspiração. Parece até que funcionou. Sou um bobalhão apaixonado. Eu não sei se faço bem pra ti, mas do contrário tenho convicção e quero mais onze.
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Eu e Herbert Caro
Conheci o Dr. Herbert Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já tinha mais de 70 anos. Lembro que tinha 51 a mais do que eu. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a amizade e o carinho. Era um alemão que dava de presente um disco e dizia com meio sorriso: “Para aplacarr tua ignorrância”. E se alguém faltasse àqueles encontros, ele reclamava.
Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável mesmo!) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro). Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: de estão-brrincando-com-algo-que-é-sagrrado-parra-mim. Depois ria conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.
Inesquecível foi o sábado quando chegaram os 3 LPs com últimas Sonatas de Beethoven tocadas por Maurizio Pollini, pianista falecido há 4 dias. Ele brandia os discos e dizia que aquele monumento não serria esquecido tão cedo. Tinha razão.
Creio que todas as vezes que vi o Doktor Carro foi na loja de discos, a exceção das palestras que ele deu no Goethe sobre a pintura dos mestres holandeses. Ele sabia tudo e ficava irritado quando sua esposa projetava uma página ou um detalhe errado. Não a ofendia, mas ficava visivelmente contrariado.
Outra característica dele era o fato de odiar o calor de Porto Alegre. “A canícula” como ele dizia. Em todos os anos de sua velhice, viajava dia 1° de dezembro e retornava ao final de março quando nossa cidade voltava a ficar suportável. (Eu adoraria poder fazer isso…)
É óbvio que me sinto nostálgico e gratíssimo a ele pelas lições. Sei que muitas opiniões que solto no blog PQP Bach e no Notas de Concerto da Ospa são do Doktor Carro e não minhas.
Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia
Dia desses, eu e a Elena estávamos na Academia. Eu estrebuchava numa sala e ela em outra. É fato sabido que a Elena, vestindo qualquer coisa — até mesmo as camisetas antediluvianas que usa em casa — é uma mulher muito bonita e charmosa.
Pois então ela chega até onde estou dizendo que um Sr., quando ela liberou um aparelho, beijou-lhe a mão.
Homem moderno e descolado que sou, pergunto como ele beijou. Ela repete o gesto do cidadão e detecto alguma devoção na atitude.
Como russa, ela me pergunta se aquilo era um agradecimento pela cessão do aparelho ou outra coisa.
Homem esclarecido que sou, penso em esquartejar todos os velhos, gente da minha idade, presentes no local e respondo com um sorriso que ele queria outra coisa.
— Mas recém saí do hospital, tô triste, um caco, por que ficam olhando?
Homem seguro que sou, não respondo e fico fazendo séries de abomináveis, pensando que preciso acabar com minha barriga naquele mesmo minuto.
P.S.: A Elena me corrige: ela não passou o aparelho para o seu admirador, ele foi até ela, pediu licença e beijou sua mão.
Binoche na Bamboletras
Eu peço a vocês: não sintam ciúmes, não me queiram mal.
É que uma vez eu ganhei de aniversário uma foto autografada de e por Juliette Binoche, a aniversariante de hoje.
Eu ganhei de aniversário com um papel comprobatório de autenticidade. Está exposta na Livraria Bamboletras, onde mais?
Notas de Concerto — 16 de outubro de 2023
Shostakovich nasceu em 1906, enquanto Stravinsky veio ao mundo em 1882. Ou seja, Stravinsky nasceu 24 anos antes. As obras mais famosas deste – A Sagração da Primavera, Pétrouchka e O Pássaro de Fogo – foram escritas entre 1910 e 1913, quando Shostakovich era uma criança.
Stravinsky foi o russo cosmopolita. Quando ocorreu a Revolução de 1917, estava em Paris, onde estreara suas principais obras com enorme sucesso e escândalo. Lembrem que quando da Revolução, Shostakovich tinha 11 anos.
A conselho de Rimsky-Korsakov, o compositor russo mais importante de seu tempo, Stravinsky decidiu não entrar no Conservatório de São Petersburgo, em vez disso teve o próprio Korsakov como tutor privado. Diga-se de passagem que Rimsky-Korsakov foi um segundo pai para ele.
Em 1909, o seu Fogos de Artifício foi executado em São Petersburgo, estando presente Serguei Diaghilev, diretor dos Ballets Russes em Paris. Diaghilev ficou impressionado o suficiente para encarregar Stravinsky de algumas orquestrações e para incentivá-lo a compor uma partitura completa de ballet. Isto resultou em O Pássaro de Fogo e em Paris.
Em 1919, aos 13 anos, Shostakovich foi admitido no Conservatório de Petrogrado, então chefiado por Glazunov, que acompanhou seu progresso de perto. Em 1925, aos 19 anos, matriculou-se em aulas de regência.
Em 1925, ainda aos 19 anos, escreveu uma Sinfonia como “peça de formatura”. Shostakovich aspirava apenas tocá-la em particular com a orquestra do conservatório e se preparava para ele mesmo reger. Porém, os professores tiveram suas atenções chamadas pela obra e esta acabou sendo estreada publicamente no final de 1925 pela Orquestra Filarmônica de Leningrado. (1914: Petrogrado, 1924: Leningrado)
É claro que Stravinsky e Shostakovich foram dois grandes talentos precoces, apesar de personalidades inteiramente diferentes. O primeiro era um homem do mundo, um personagem do jet set internacional, o segundo era bem mais retraído e torturado, apesar de saber como ninguém ser sarcástico.
Há uma historinha curiosa entre ambos. Stravinsky tinha enorme habilidade social. Em sua primeira visita à União Soviética, em 1963, após mais de 50 anos de ausência, promoveram um evento social para o qual Shostakovich foi, obviamente, convidado. Os grandes gênios finalmente se encontrariam. Como Shostakovich era silencioso por natureza — e ainda mais quando observado pela KGB –, Igor ficou matutando sobre como trazê-lo para a conversa geral. E, inteligente, procurou em sua mente algo que ambos certamente detestariam. E encontrou Puccini! A princípio, ao ser citado o nome do italiano, Shostakovich fez uma cara contrafeita, mas depois a dupla conversou a noite inteira e não só sobre o italiano. Como veem, o ódio pode ser motor de coisas boas.
Outro fato digno de nota é que na mesa de trabalho de Shostakovich havia fotos de Stravinsky. Ele era fã do cara.
A música de ambos têm poucos pontos de contato. Stravinsky teve seu período russo, depois um longo período neoclássico – onde revisitava, a seu modo, a música de Mozart e Bach e seus contemporâneos, principalmente Pergolesi. Nesta fase, o compositor abandona as grandes orquestras exigidas pelos balés, voltando-se para os instrumentos de sopro, o piano, o coral e obras de câmara. Sua última fase foi a serial, incluindo o dodecafonismo de Schoenberg.
Já a evolução de Shostakovich apenas teve as quebras ordenadas pelo Partido. Algumas vezes, foi obrigado a escrever peças dentro das normas do Realismo Socialista, mas estas não alteraram a espinha dorsal de sua obra. Aliás, ele costumava ficar subitamente pouco inspirado quando compunha tais obras e nenhuma delas tem parte importante de seu repertório.
Mas lembrem que Shostakovich era um patriota e criou espontaneamente obras notáveis inspiradas pelo momentos como a Sinfonia Nº 7, Leningrado, um hino à resistência soviética. Mas também condenou as mortes em Babi Yar (em Kiev, Ucrânia) na Sinfonia Nº 13, onde milhares de judeus foram assassinados pelos nazistas com a ajuda soviética, ao que tudo indica.
Mas vamos às obras.
O Concerto Nº 2 para Violoncelo e Orquestra, Op. 126, é de 1966, ou seja, da última década de vida de Shostakovich. Ele tinha novamente caído em boas graças oficiais após viver e suportar várias vezes o ciclo de denúncia seguida de reabilitação. A URSS homenageou-o com múltiplas medalhas de Estado no concerto em que este concerto foi estreado. Era a data de aniversário de 60 anos do compositor. Mesmo que tenha sido inicialmente concebido como uma Sinfonia, o Concerto, dedicado a Rostropovich, é extraordinário, alternando passagens da maior tristeza com trechos bizarros e danças fantásticas. O final é típico do compositor, sendo especialmente sarcástico e inesperado.
Shostakovich dedicou seus dois concertos para violoncelo para Mstislav Rostropovich. O Primeiro, concluído em 1959, é uma obra espinhosa repleta do recorrente motivo DSCH (as iniciais de Shostakovich transferidas para a notação musical) e citações zombeteiras à canção favorita de Stalin.
O Segundo Concerto para Violoncelo foi composto entre a 13ª e a 14ª Sinfonias, ambas muito críticas, cantadas e com textos provocativos.
O primeiro movimento (Largo) começa com a voz lamentosa do violoncelo solitário. Uma melodia melódica triste, abre a porta para uma conversa musical sombria e cada vez mais intensa. O segundo tema chega como uma dança bizarra e sardônica iniciada pelo xilofone e instrumentos de sopro. Então, a música se desintegra em uma cadência de violoncelo solo, pontuada por violentos golpes de bumbo.
O tema principal do segundo movimento (Allegretto) é uma citação grotesca de uma canção de Odessa. Há uma alegria amarga nas melodias de sabor judaico nas últimas obras de Shostakovich. Depois temos um scherzo frenético e demoníaco que nos conduz diretamente para o movimento final. Os compassos finais desaparecem com um “tick-tock” incessante na percussão. Ficamos com o absurdo pousado em nosso colo.
Pétrouchka é um balé burlesco de Igor Stravinsky composto em 1911 e revisado em 1947. Foi montado pela primeira vez pela companhia russa de Serguei Diaguilev no ano de sua primeira versão. Nijinski encarnou Pétrouchka. A história é sobre um fantoche tradicional russo que é feito de palha com um saco de serragem como corpo e que ganha vida e capacidade de amar. A obra sobrevive perfeitamente como peça de concerto e, apesar de complexa para qualquer orquestra, é deliciosa de ouvir, com seus vários e atraentes temas.
O fervilhamento de timbres, de melodias de inspiração folclórica, a riqueza rítmica estão entre os elementos que compõem o cenário onde passa, dançando, um grupo de bêbados, e aparecem, em delicado contraste, um tocador de realejo, uma dançarina que marca o compasso com a ajuda de um triângulo … É nesta cena de rua, caleidoscópica, que surgem as personagens centrais da história. Anunciado pelos tambores, um teatro de marionetes atrai a atenção do público.
No balé, Petrouchka é um dos personagens de um teatro de marionetes, juntamente com uma bailarina e um mouro.
Tudo começa na Feira de Carnaval de São Petersburgo, no início do século XIX, onde vários grupos de artistas se apresentam.
Um mágico encena um pequeno teatro de marionetes. Uma cortina se abre e revela os três bonecos, que ganham vida e dançam em seus eixos quando o mágico toca sua flauta. Então, em um passe de mágica, para espanto dos presentes, os bonecos saem de seu palco e dançam no meio do povo.
Na segunda cena, já no quarto de Petrouchka, vemos que o boneco possui emoções humanas, e que ele encontra consolo para sua condição de marionete no amor que sente pela bailarina. A bailarina entre em cena e o boneco se declara para ela, mas é rejeitado.
Na terceira cena, vemos o Mouro em seu quarto, e o mágico coloca a bailarina para seduzi-lo, depois colocando Petruchka no quarto também. Petruchka tenta enfrentar o mouro, mas acaba sendo perseguido por ele.
Na cena final, de volta à festa, as pessoas notam barulhos estranhos no teatro de marionetes, de onde sai Petruchka perseguido, até ser alcançado pelo Mouro que o golpeia com a espada.
A multidão entra em pânico, a polícia pede esclarecimentos, e o mágico justifica que nada errado foi feito, que Petruchka era apenas um boneco de palha. A polícia fica satisfeita com a explicação e, junto da multidão, esvaziam o palco, deixando apenas o mágico segurando o boneco.
O mágico vai voltando para dentro do teatro quando nota, em cima do mesmo, o fantasma de Petrouchka, se sacudindo e chamando sua atenção, sacudindo seu punho.
A incrível história da livraria que sobreviveu à pandemia e se mudou para uma igreja
Por Marco Weissheimer no Sul21
Uma das mais tradicionais livrarias de Porto Alegre, a Bamboletras estava há 26 anos instalada no Nova Olaria, um também tradicional centro comercial e espaço cultural da Cidade Baixa. Os últimos dois anos e meio foram de fortes emoções, imprevistos e muita tensão para o livreiro Milton Ribeiro e para todo o grupo de funcionários da livraria. No dia 19 de março, a Bamboletras foi obrigada a fechar as portas para o atendimento ao público, com o início do processo de isolamento social causado pela pandemia da Covid-19. O distanciamento mudou totalmente a forma de operação da Bamboletras, uma livraria que, até então, atendia o público diretamente na sua sede no Nova Olaria, e teve que passar a trabalhar via telefone, tele-entrega, whatsapp e outros dispositivos virtuais.
Assim como aconteceu com a maioria das livrarias e outros estabelecimentos comerciais, a Bamboletras ficou bastante combalida financeiramente em 2020. “Em 2021, a gente estava começando finalmente a respirar quando recebemos a notícia de que o Nova Olaria seria derrubado para a construção de um novo edifício. Foi uma dura notícia para nós. Depois de passar um ano dificílimo, ficamos sabendo que teríamos que sair do Novo Olaria”. Após a frustração inicial com a notícia, Milton Ribeiro e sua equipe começaram a busca de uma nova sede para a livraria. Bernardo, filho de Milton, descobriu, próximo à rua Lima e Silva, onde estava localizado o centro comercial que está sendo demolido, o prédio de uma pequena igreja que estava para alugar.
O prédio, localizado na rua Venâncio Aires, nº 113, pertence à Igreja Nova Apostólica, uma igreja protestante restauracionista surgida na Alemanha em 1863, que se baseia na Bíblia conforme a interpretação dos apóstolos e chegou ao Brasil em 1928, com uma missão numa comunidade alemã que vivia no bairro de Santana, em São Paulo.
Em um primeiro momento, Milton admite que achou a ideia muito estranha. “Uma igreja?” – questionou. “É uma ideia meio europeia. Na Alemanha e na Holanda, é comum prédios de igrejas se tornarem outra coisa, principalmente livrarias. Me deu um frio na barriga, fiquei pensando que poderia ser um lance muito ousado”, conta. Mas a ideia ousada e inusitada acabou virando realidade e, a considerar os primeiros dias de atividade na nova casa, está dando certo. “Estamos aqui há quatro dias (a conversa com o Sul21 ocorreu na quarta-feira, 20 de julho) e as pessoas estão gostando muito e recebendo super bem a novidade”.
Ele destaca ainda que foi muito bem tratado pelos donos do prédio, que gostaram da ideia de que o espaço que abrigava a Igreja Nova Apostólica passasse a ser ocupado por uma livraria. “Não me pediram carteirinha de crente nem nada do tipo, a gente se respeitou bastante e a ideia foi acolhida por eles”. Por enquanto, a Bamboletras ocupa a sala central do andar de baixo, mas há outros espaços no andar de cima, onde morava o padre, um longo corredor lateral e um pátio arborizado nos fundos. Milton planeja utilizar esse pátio para realizar lançamentos de livros e outros eventos, principalmente durante o verão. Além disso, conta ainda, muitos clientes estão pedindo, “com uma certa insistência e veemência”, que a livraria abrigue um café também. “Tem que ter o cheiro do café aqui dentro”, rogou uma cliente. A equipe da Bamboletras está pensando no assunto. “Vamos ver se a gente consegue implantar essa ideia nós mesmos ou em parceria com alguém”, diz Milton.
O livreiro ainda está assimilando todo o simbolismo envolvido na mudança de sede da livraria para uma igreja, no momento em que o país vai saindo do isolamento social provocado pela pandemia e sofre um processo de desmonte de políticas e espaços públicos também na área cultural. “Estou pensando em escrever uma série de textos sobre todo esse processo, justamente para refletir a respeito disso. Foi uma coisa muito súbita e rápida. Quando começaram as obras no Nova Olaria, eles colocaram, sem anunciar para a gente, um tapume preto em frente ao prédio. Com isso, as pessoas deixaram de entrar, porque achavam que não tinha mais nada lá dentro.
Houve muitos sustos e algum desespero inclusive. Não tivemos muito tempo para refletir sobre tudo isso que aconteceu. É óbvio que, para mim, é uma situação muito irônica, eu, uma pessoa que sempre se declarou ateia e sempre reclamou muito da mistura entre política e religião. Ainda fico meio surpreso. De vez em quando eu olho para a nova sede da livraria e penso ‘meu deus, estou trabalhando numa igreja’. Mais ainda, sou o proprietário de uma livraria dentro de uma igreja”.
O movimento, nos primeiros dias de funcionamento da Bamboletras em sua nova casa, está muito bom e deixa Milton Ribeiro animado com o futuro. “As pessoas estão gostando muito da novidade. No Nova Olaria, as lojas foram paulatinamente fechando. Durante a pandemia, praticamente todas saíram, especialmente os bares. A gente não sabia o quanto aquilo impactava a livraria. Foi se criando uma atmosfera meio deprimente. Um ambiente que era culturalmente ativo e brilhante, passou a ficar esvaziado e abandonado. Olhando hoje, vejo que esse processo nos prejudicou demais. A gente devia ter saído antes de lá”.
A mudança de astral fica evidente para quem entra na livraria. A equipe toda com o ânimo renovado e as pessoas, antigos e novos clientes, que entram curiosos para conhecer a novidade. O livreiro e agora também “pastor” Milton Ribeiro parece já estar preparado também para conviver com os inevitáveis trocadillhos que acompanharão o novo espaço, transformado em templo dos livros, capela da leitura e santuário da cultura em uma Porto Alegre tão castigada nos últimos anos.
Confira mais imagens da igreja que virou livraria
Brahms: Concerto Duplo para Violino e Violoncelo / Prokofiev: Sinfonia Nº 5
No próximo dia 25, às 16h, estarei apresentando o Notas de Concerto da Ospa. O Concerto será às 17h. Abaixo, algumas anotações sobre as obras do programa.
Concerto Duplo para Violino e Violoncelo em lá menor, Op. 102, de Johannes Brahms (1887)
O belíssimo Concerto Duplo para Violino e Violoncelo de Brahms tem origem curiosa. Será verdade que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”? Pois este polêmico ditado não foi seguido por Brahms. Em 1884, o célebre violinista Joseph Joachim e sua mulher se separaram depois que ele se convenceu de que ela mantinha uma relação com o editor de Brahms, Fritz Simrock. Brahms, certo de que as suposições do violinista eram infundadas, escreveu uma carta de apoio à Amalie, a esposa, que mais adiante seria utilizada como prova no processo de divórcio que Joseph moveu contra ela. Este fato motivou um resfriamento das relações de amizade entre Joachim e Brahms, que depois foram restabelecidas quando Brahms escreveu o Concerto para Violino e Violoncelo e o enviou a Joachim para fazer as pazes. Acontece. Mas por que o violoncelo? Ora, a combinação inusitada — este é o primeiro concerto escrito para esta dupla de instrumentos — surgiu porque o violoncelista Robert Hausmann, amigo comum de Brahms e Joachim, pedira um concerto ao compositor. Então, o compositor encontrou uma forma de satisfazer ao violoncelista , ao mesmo tempo que reconquistava a amizade do violinista. Clara Schumann escreveu em seu diário: “O Concerto é uma obra de reconciliação. Joachim e Brahms falaram um com o outro novamente.”
Após completar sua Sinfonia Nº 4 em 1885 e embora tenha vivido mais doze anos depois de completá-la, Brahms produziu apenas mais uma obra orquestral, e esta não foi uma sinfonia, mas este concerto. E não era um concerto solo comum, mas sim uma composição que uniu pela primeira vez a forma de violino e violoncelo. Mozart fez os não tão díspares solistas de violino e viola quase se enfrentarem em sua Sinfonia Concertante. Beethoven fez o mesmo em seu Concerto Triplo Concerto, juntando piano, violino e violoncelo. Mas aqui nós temos realmente um casamento. O violoncelo introduz a maioria dos temas, mas há muitos trechos onde um acompanha o outro. Há menos exploração de contrastes violino-violoncelo de Brahms, que se baseia menos na exploração das individualidades contrastantes do casal solista, mas em sua capacidade de viverem felizes juntos. O Concerto possui uma enorme riqueza de ideias que são trabalhadas com a extrema habilidade.
Brahms fez o violoncelo e o violino se fundirem em vez de projetar identidades separadas e talvez conflitantes. Há muitos uníssonos e trechos onde um instrumento acompanha o outro. Exigências artísticas como essas são feitas ao longo do Concerto Duplo. Durante o período de testes do Concerto, tanto Joachim quanto Hausmann aconselharam o compositor sobre algumas questões técnicas de seus respectivos instrumentos.
Sinfonia Nº 5 em si bemol maior, Op. 100, de Serguei Prokofiev (1944)
Prokofiev tinha 26 anos quando da Revolução de 1917. Na época, estava resolvido a deixar a Rússia temporariamente. A decisão era pré-revolução: sua música era considerada demasiadamente experimental e ele já fora muito hostilizado quando da estreia de seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra em 1912. Em maio de 1918, o compositor mudou-se para os Estados Unidos, onde teve contato com alguns bolcheviques como Anatoly Lunacharsky. Para não ter problemas no país natal, Anatoly convenceu-o a sempre divulgar que o motivo da emigração era estritamente musical, e não uma oposição ao novo regime instalado. E era verdade, Prokofiev não era um opositor, ao menos naquela época.
Seu retorno à União Soviética foi extremamente curioso e lento. Quando Prokofiev foi morar nos Estados Unidos, fixou primeiramente residência em São Francisco. Depois, foi indo pouco a pouco para o leste, atravessou o oceano, morou em Paris, fez diversas viagens aos EUA, fixou-se nos Alpes e seguiu seu caminho para a URSS onde chegou apenas em 1935. Mas não adiantemos os fatos.
Em 1927, realizou diversas e bem sucedidas turnês pela União Soviética. No início da década de 1930, Prokofiev deu mais um passo na direção da União Soviética. Já permanecia mais em Moscou do que em Paris.
Em Londres, ele também gravou alguns de seus trabalhos para piano solo em fevereiro de 1935.
No mesmo ano, Prokofiev voltou à União Soviética para ficar. Sua família voltou somente no ano seguinte. Só foi bem recebido no aeroporto, pois, na época, a política musical soviética havia mudado; uma agência havia sido criada para vigiar os artistas e suas criações. Ela era chefiada pelo temido Andrei Alexandrovitch Jdanov, parceiro de Stálin. Ele era um ferrenho defensor do Realismo Socialista nas artes e sufocou toda uma brilhante geração de artistas através de parâmetros políticos e estéticos rígidos, principalmente a partir da década de 1940. E por que Prokofiev decidiu ficar? Por saudades.
A URSS ia se fechando. Limitando a influência externa, o país gradualmente isolou seus compositores e escritores do resto do mundo. Tentando se adaptar às novas circunstâncias, Prokofiev escreveu uma série de canções usando letras de poetas aprovados oficialmente pelo governo, além do oratório Zdravitsa (Op. 85). Na mesma época, compôs para crianças. É o período de Pedro e o Lobo, para narrador e orquestra, uma obra pedagógica e bem comportada, feita para agradar Josef Stálin e o regime. É famosíssima e até hoje é montada no mundo inteiro.
Em 1938, Prokofiev colaborou com o cineasta Sergei Eisenstein no épico Alexander Nevsky.
A Quinta de Prokofiev simplesmente não tem momentos fracos. O ritmo de relógio, tão caro ao compositor, recebe seu melhor momento ao final do segundo movimento, quando quase emperra…
A Sinfonia Nº 5 de Prokofiev tornou-se tão popular no mundo inteiro que, poucos meses após sua estreia nos EUA, um retrato do compositor apareceu na capa da revista Time. Era o ano de 1945. A Guerra Fria ainda não se instalara e os EUA e a União Soviética eram aliados contra o fascismo. A Sinfonia foi um sucesso total em todo o mundo, era a celebração musical da conclusão da guerra. Mas foi isso mesmo? Quando pesquisamos sobre esse trabalho, lemos repetidas vezes os mesmos adjetivos – “heroico” ou “alegre”. E sempre no contexto da vitória de uma nação, da vitória de um povo. Prokofiev escreveu que ela era “uma sinfonia da grandeza do espírito humano, uma canção de louvor à humanidade livre e feliz”, mas a vida do compositor não estava fácil sob os ditames do realismo socialista e talvez a obra seja mais a luta do espírito artístico individual para não ser sufocado. Porém, a grandeza desta Sinfonia supera qualquer ambiguidade. Ela pode suportar uma série de interpretações e nenhuma pode confiná-la. Uma obra-prima.
Sabemos que esta Sinfonia em quatro movimentos foi composta no verão de 1944, logo após o desembarque das tropas aliadas nas praias da Normandia e durante as investidas das forças russas em direção a Berlim. Na época de sua estreia em Moscou, em janeiro de 1945, sob a direção do compositor, disparos de artilharia comemorativos distantes fariam Prokofiev parar, braços erguidos, enquanto se preparava para começar a apresentação.
Certamente a Sinfonia abre com um tom inconfundivelmente otimista, e o clímax esmagador no final do movimento é uma crise vencida. O segundo movimento é um scherzo nervoso, um forte contraste com o triste terceiro movimento. Mas a vitória descrita no movimento final é uma conquista pessoal ou pública?
Antiga igreja vai virar livraria no bairro Cidade Baixa em Porto Alegre
A Bamboletras, que opera na Nova Olaria, está de mudança para novo ponto na Venâncio Aires
Por Mauro Belo Schneider – editor do GeraçãoE, Jornal do Comércio
O capítulo que a tradicional livraria porto-alegrense Bamboletras se encontra tinha tudo para ter um final triste. Mas o proprietário do estabelecimento que opera na galeria Nova Olaria, da rua Lima e Silva, no bairro Cidade Baixa, deu uma reviravolta no enredo.
Amante de histórias que é, o jornalista Milton Ribeiro transformou o fim de um ciclo em um começo que tem tudo para dar certo, embora seja um pessimista nato. O seu negócio funcionará, a partir de julho, dentro de uma antiga igreja apostólica, na avenida Venâncio Aires, nº 113.
O encerramento das operações da Bamboletras na Nova Olaria se deve à construção de três torres que ocuparão o terreno, administrado pela Dallasanta. A ideia é que a loja permaneça no centro dos prédios e que a empresa possa retornar à Lima e Silva quando tudo estiver pronto. Mas, primeiro, Milton verá como ficará o complexo. “Se for legal, eu volto”, revela.
Sua atenção, agora, está voltada para o desafio de tornar o local que recebia cultos, na Venâncio, em um destino turístico. “Na Europa, é muito comum livrarias ocuparem igrejas”, conta ele. “Aqui, nunca vi isso. Espero que seja um atrativo”, emenda.
Desocupada há quatro anos, a igreja receberá as estantes da atual loja e passará por reformas. Há um pátio nos fundos, que abrigará o público, e a possibilidade de incluir uma cafeteria. Além disso, a estrutura conta com uma sala para lançamentos e um palco. “Vamos ver o que dá”, expõe o jornalista.
Milton, que mora no Bom Fim, comprou a Bamboletras em 2018. Ele diz que seu negócio tinha o perfil de atender a clientela no balcão, mas a pandemia gerou uma crise. As pessoas sumiram e entraram os motoboys, os ciclistas e as entregas por correio.
Quando o pior do surto sanitário havia passado, uma nova dificuldade: o fechamento da Nova Olaria e das lojas vizinhas. Não havia mais gente que se surpreendia com a presença de uma livraria ao ir jantar ou beber no centro comercial. Apesar de tudo isso, ele celebra o fato da marca permanecer viva. “Se estivéssemos em outro bairro, estaríamos mortos”, considera.
Isto porque, para ele, a Cidade Baixa é destino de pessoas de vários estados, que estão em Porto Alegre a passeio ou a negócios. A boemia, os casarios antigos e as ruas tranquilas são características que atraem os curiosos, segundo Milton. “O bairro se organiza em torno da Rua da República e da Lima e Silva, mas há muitas outras coisas peculiares”, aponta.
Em breve, uma dessas coisas será sua livraria na igreja. Uma história que colocará, novamente, a Cidade Baixa na rota até de quem já conhece a região.
O Bloomsday do Institulo Ling 2022
Neste sábado, dia 18, no Instituto Ling, serei o mais incapaz dos membros das mesas do Bloomsday. Imaginem que lá estarão Jeferson Tenório, Donaldo Schuler, Edson Luiz André de Sousa, Carlos Gerbase, Elida Tessler, além do ator João Petrillo, da Banda Irish Fellas e da Cervejaria FIL.
Sim, você não é trouxa e entendeu: haverá cerveja da boa em evento sobre o Ulysses de Joyce. Bebam com moderação, mas o bastante para esquecer tudo que eu disser. COMPAREÇAM!!!
Abaixo, a programação:
15h45 – Banda Irish Fellas mais Cervejaria Fil abrem a festa
16h – Leopold Bloom dá as boas-vindas aos presentes
16h10 – Painel Literatura
Ulysses 100 anos e o legado de Joyce: Jeferson Tenório e Donaldo Schuler, com mediação de Milton Ribeiro
16h40 – Banda Irish Fellas
16h50 – Performance Teatral, com Leopold Bloom
17h – Painel Arte e Psicanálise
James Joyce era louco? Divagações sobre Arte e Psicanálise: Edson Souza, Elida Tessler e Carlos Gerbase, com mediação de Milton Ribeiro
17h40 – Banda Irish Fellas
18h – Encerramento
De Alexandre Kovacs, do Mundo de K, sobre Abra e Leia
Por Alexandre Kovacs, no Mundo de K.
Milton Ribeiro é uma das pessoas mais inteligentes e bem-humoradas que você vai encontrar no facebook, mesmo que este humor seja um tanto ácido ou carregado de ironia às vezes, mas não é culpa dele o crescente número de idiotas úteis que desafiam a nossa paciência, espalhando bobagens nas redes sociais. Há alguns anos acompanho os seus artigos como jornalista na mídia tradicional e também nos blogs que ele mantém desde 2003, uma inspiração para todo resenhista. Em 2018, Milton realizou um sonho de adolescência transformando-se em livreiro aos 60 anos, quando adquiriu a tradicional Bamboletras em Porto Alegre. E, no final do ano passado, mais um antigo projeto foi cumprido sob a pressão dos muitos amigos da área de literatura: a publicação de Abra e Leia, seu primeiro livro.
Os 22 contos desta antologia foram escritos ao longo dos anos e não apresentam uma unidade temática, longe disso. Contudo, percebemos em muitas das narrativas os traços biográficos do autor, o conhecimento enciclopédico sobre música erudita, assim como as referências literárias e cinematográficas, sem desmerecer dos assuntos mais populares como o futebol e a sua inusitada paixão colorada. Influenciado por autores clássicos e contemporâneos, Milton sabe como contar uma história, seja em primeira ou terceira pessoa, com uma edição precisa do texto, ele conquista a nossa atenção desde o início, construindo finais que valorizam a imaginação do leitor, sempre mantendo um texto afiado e bem-humorado, sua marca registrada.
Chama a atenção o cuidado na criação dos personagens: Marquinhos é um jogador de futebol da segunda divisão gaúcha que é subornado pelo seu ex-time – o Ipiranga de Erechim – para errar todos os escanteios, faltas e pênaltis na decisão do campeonato. Ele é um pai solteiro, coisa incomum no machismo que impera nesta área e, apesar das dúvidas sobre a paternidade, revela um amor incondicional pelo seu filho Enzo. Neste conto, Marquinhos e Enzo, o grande, a ironia fica um pouco de lado e o autor deixa a emoção correr solta pelo texto, sem clichês.
“[…] Eu sabia falar com a imprensa. Dava mais entrevistas e aparecia mais do que os outros, mesmo medindo 1,63 m. Eu era o baixinho que fazia a ligação entre o meio de campo e o ataque. Quer dizer, jogava em posição de craque, mas não era o caso. Tinha alguma habilidade e batia as faltas, pênaltis e escanteios do time, só que passava mais da metade do tempo machucado. Mas não naquele ano. Como o Enzo dizia na escolinha, aquele era o ano do seu pai. Eu ficava todo orgulhoso, pois tudo o que faço é para ele. / Ganhava cinco mil por mês no Guarany e os caras do Ipiranga me ofereceram vinte e cinco para errar todos os escanteios e faltas na decisão. Pênaltis também, se acontecessem. Eu estava em pânico com essa possibilidade – achava que era impossível errar o gol num pênalti. Se eu treinava diariamente, porra, como ia fazer para bater embaixo da bola a fim de mandá-la para fora? E eu sempre batia coladinho, com jeito. Que merda. Só sei que pedi o dinheiro adiantado, porque depois eles sumiriam, é óbvio. Como eu tinha fama de sério e confiável, me pagaram em dinheiro, um em cima do outro, ali na hora.” – Marquinhos e Enzo, o grande (pp. 15-16)
Já em Passando camisas, conhecemos Ana, uma morena bonita e sensual, daquelas que atraem os olhares masculinos e que recebe cantadas até dos amigos do marido mas, em matéria de traição, parece que é ele, o marido Daniel, que está na dianteira. Ana percebe que algo está errado quando descobre uma nota fiscal no bolso da camisa de Daniel, não de uma joia ou uma lingerie para a possível amante, mas sim de um ferro Ultragliss Diffusion 90 Arno. Nesta narrativa, o autor equilibra humor e ironia com sensibilidade em uma história simples do cotidiano mas que, quando bem contada, como é o caso, se torna um clássico.
“À noite, quando voltava para sua pequena casa na periferia, Ana seguia trabalhando. Ali, ela também preparava a comida, limpava a casa, lavava e passava suas roupas e as de Daniel. Ontem, porém, sua rotina foi quebrada. Ao pegar uma camisa de seu marido, Ana sentira um pequeno papel num dos bolsos. Retirou-o e viu tratar-se de uma nota fiscal. Ele tinha comprado um ferro Ultragliss Diffusion 90 Arno por cento e noventa e nove reais. Estranho. Daniel gostava de andar alinhado, mas era muito dinheiro por um ferro de passar. E, além do mais… Cadê o ferro? Observou melhor a data da nota: a compra fora feita há quinze dias e ela não recebera ferro novo nenhum. Faltava muito para seu aniversário e eles não tinham dado presente para nenhum amigo ou parente nos últimos dias – o que significaria aquilo? Será que ele comprara para um amigo que estava sem crédito? Voltou a olhar a nota: compra à vista.” – Passando camisas (pp. 39-40)
Mas é no conto O Violista, o maior em extensão – praticamente uma novela –, no qual encontramos personagens que só poderiam ter sido concebidos por Milton: começando por Romeu, um violista brasileiro que reside em Portugal, contratado pela Orquestra Nacional do Porto e que se prepara para interpretar a Sinfonia Concertante de Mozart para Violino e Viola, uma das poucas peças que valorizam a viola, um instrumento sempre relegado (os detalhes da comparação entre violino e viola são simplesmente deliciosos). A jovem violinista lituana, Saida Rekasiute (certamente inspirada na esposa de Milton, a violinista Elena Romanov): “alguém com 15 anos e 15 quilos a menos do que ele, e, fundamentalmente, com 15 centímetros a mais de altura”. Sebastián Rivero, um maestro prepotente que ameaça a carreira do violista e, finalmente, a moça brasileira, atendente da pizzaria, com a qual Romeu flerta ao telefone.
“Hindemith, Bartók e Mozart foram dos poucos compositores a voltarem suas luzes para a viola. O primeiro tocava vários instrumentos, dentre eles a viola, os outros dois talvez fossem bons corações que se deixaram levar por violistas pedintes, deprimidos com um repertório de terceira linha. / No dia do primeiro ensaio, Romeu foi apresentado à violinista com quem faria o duo. Ela o deixou instantaneamente irritado. Era jovem, muito jovem, alta e bonita, tinha os cabelos e olhos castanhos dos trópicos, mas a pele muito branca e o sotaque de seu inglês denunciavam a origem mais ao norte. Era báltica, lituana. Romeu não deu grande importância à beleza da moça, mas fixou-se em seus pés. Notou que ela estava de sapato baixo. Concluiu que todo seu esforço, dormindo dias e noites sobre a partitura de Mozart, seria solapado por alguém com 15 anos e 15 quilos a menos do que ele, e, fundamentalmente, com 15 centímetros a mais de altura. Ninguém veria um arredondado, pequeno e feio violista brasileiro. E, pior, ela certamente viria de salto alto no dia do concerto.” – O Violista (p. 108)
Um livro muito recomendado e que demonstra um conhecimento e habilidade para mesclar as referências musicais na trama que só encontro em Haruki Murakami na atualidade. A estreia de Milton Ribeiro na literatura nos deixa ansiosos para conhecer os seu próximos lançamentos.
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Sobre o autor: Milton Ribeiro nasceu e vive em Porto Alegre. É livreiro e jornalista da área cultural. É um melômano apaixonado por Bach, cinéfilo devoto de Bergman, proprietário da Livraria Bamboletras e leitor inveterado. Ministra cursos em Centros Culturais como o StudioClio e o Instituto Ling, além de ser colunista da Mundi | Cultura em Revista. Mantém os blogs Milton Ribeiro e PQP Bach. Também é daltônico como Van Gogh e Uderzo. Músicos amigos dizem que teria ouvido absoluto, uma característica 100% inútil, pois não toca nenhum instrumento.
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Abra e Leia de Milton Ribeiro
Augusto Maurer, sobre Abra e Leia
Milton,
terminei ontem, com certo alívio, de ler teu livro. Explico. Da aquisição à conclusão da leitura, foram quase 4 meses. Não pensa, com isto, que foi uma leitura pesada, trabalhosa. Ao contrário: peguei o livro umas 4 vezes, no máximo, lendo vários contos de cada vez, cada desfecho levando a um desejo inadiável de ler o próximo. Qual meu temor ? Simples: que se tratasse apenas de mais um bom livro. É, com certeza, um grande livro! É que, sabendo de teu conhecimento literário enciclopédico, não esperava (apenas temia) que fosse diferente. Pura burrice: quem estreia nas letras depois dos 60, sabe muito bem a que veio.
Não vou, aqui, entrar em detalhes sobre cada conto. São tantas as observações que prefiro deixá-las para algum momento futuro, ao redor de uma boa mesa e levemente embriagado. Tb não vou te parabenizar – e sim agradecer pelo acréscimo de algo que valha a pena ser lido no já tão saturado universo do corpus literis. E tb, é claro, à Elena, pelo fundamental incentivo a saíres do armário ou melhor, neste caso, da gaveta.
Grande abraço,
Augusto
O Museu Darbot, de Victor Giudice
Este é um livro de 1994 que ganhou o Jabuti do ano seguinte e que recebi de presente do leitor e cliente da Bamboletras Helion Povoa Neto — ele encontrou ecos deste Darbot em meu livro Abra e Leia… Só que eu não conhecia o livro e nem Giudice.
O Museu Darbot está há anos fora de catálogo. Sua editora, a Leviatã… Nem sei se ainda existe. Porém, após a leitura do livro, só posso me sentir lisonjeado, pois o livro de contos de Giudice é excelente!
Victor Giudice foi escritor, crítico, músico e professor que viveu de 1934 até 1997. Talvez Helion tenha visto pontos em comum em duas coisas: (1) o amor e as citações de música erudita e (2) as viradas nas histórias dos contos. O multifacetado Giudice dava aulas sobre música erudita e foi diretor da Sala Cecília Meirelles no Rio de Janeiro, mas também foi um respeitado compositor de sambas que chegou a ser convidado para integrar a ala de compositores da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel. E ganhava a vida como bancário.
No mais, trata-se de um escritor altamente sofisticado. O melhor de todos os contos é o que dá título ao livro. Num livro marcado pela música, este conto fala do mundo das artes plásticas, com seus enganos e enganadores. Também fala de autorias. Os texto é fluido, muito grudento e a verdade vai sendo apresentada em várias camadas que alteram as impressões anteriores. Coisa de mestre mesmo. Cavalos, a original crítica social de Jurisprudência e o censurado pela ditadura O hotel também não são nada esquecíveis.
São nove excelentes contos. Um bem diferente do outro em tema e estilo. Há sátiras e idílios, delírios e lógica, música e pintura, densidade e fluidez, conforme cada conto exige.
Agora, sempre fico triste quando vejo um escritor desta qualidade ser esquecido. Há um site sobre Victor Giudice na internet e pouca coisa mais. Quem fala nele hoje?
Os livros mais vendidos na Livraria Bamboletras em 2021
Nelson Rego, sobre Abra e Leia
Olá, Milton. Antes de abrir e começar a ler, eu estava achando que o título do livro era brincalhão. Bom, e é isso mesmo, mas também é, ao seu modo, apocalíptico, por que não? “Tudo é movimento irregular e contínuo, sem direção e sem meta”, a epígrafe de Montaigne ficou perfeita aplicada não apenas ao conto Breve relato da aniquilação, mas ao livro todo. Há comédia nas histórias e é exatamente por aí, no breve riso, que o irregular sem pausa, sem direção e sem meta, se infiltra por rachaduras abertas a todo instante. Li na ordem em que os contos se apresentam, do primeiro ao último. Perto do fim, estava com sensação de feira do burlesco, com atores mambembes fazendo alegorias da morte. E então encontrei a tua nota final sobre O Sétimo Selo. O bom é que os teus apocalipses insinuados se fazem sem grandiloquência, coerentes com as pequenas comédias do cotidiano cheias de fraturas. Não é um apocalipse de uma só vez, hollywoodiano. A abertura do derradeiro selo acontece em conta-gotas e, por vezes, é de uma graça que desvia o drama de resvalar em direção à desgraça. O teu apocalipse deixa a dúvida, irá mesmo acontecer? E aí está o melhor. Meus contos preferidos foram Adaptações, Para não falar de todas as mulheres (uma pausa no fim dos tempos, um doce com cafezinho), Breve relato da aniquilação, Luciana e o hedonismo, Daqueles que não se denunciam e Vicentina.
Abraço. Espero que 2021 não se torne para o Inter o que 2003 foi para o Grêmio: a prévia da queda mais do que anunciada para o ano seguinte.
Porque a Livraria Bamboletras é bem frequentada
Uma ligação do Milton Saad
Me liga o Milton Saad para dizer que o Arerê é pura alegria, é Carnaval, é festa, é gente dançando feliz.
E completa dizendo que naquele “Um minuto de silêncio”, além de ser uma cópia dos argentinos, não se dança, não se comemora, nada. É fúnebre, denso, pesado, maldoso, fatal.
Nós não queremos ser fatais ou imortais. Somos colorados.
O Arerê é aquela alegria de ver alguém voltando para casa. Já o Minuto de Silêncio é para quando o Bolsonaro cair. O Arerê é para abraçar, o Minuto é para se despedir.
Isso diz muito, né, Saad?
Eu e minha filha Bárbara
Eu lembro de quando eu ficava deitado com minha filha antes de ela dormir. A Bárbara Jardim ainda não era alfabetizada — devia ter uns cinco anos — e adorava ou ouvir as histórias que eu sempre inventava na hora ou ser desafiada em cálculos “complexos”. Pois todo dia chegava uma hora em que eu dizia que ia transformar sua massa encefálica em guisado, que a cabeça dela ia explodir, que ela sujaria a cama com o líquido vermelho que escorreria de seu cérebro destruído para sempre, tal a dificuldade do próximo desafio. Ela ria muito disso tudo e eu perguntava, por exemplo:
— Quanto é 47 + 25?
Então ela se escondia sob as cobertas, provavelmente usando os dedos para resolver algum impasse, e voltava SEMPRE com a resposta certa. Sempre. Mesmo quando passei para os 3 e 4 dígitos. Só por isso é que até hoje, aos 27 anos, ela ainda tem um cérebro.
Posso ser esnobe? Ai, não sei se a Clara tem razão…
Os livros mais vendidos na Bamboletras em outubro
E começamos novembro a todo vapor! Mas, antes, segue a habitual e célebre lista dos mais vendidos da Bamboletras! Em outubro, os autores locais seguiram em destaque, representando o estado melhor do que ele merece… E há também outros ótimos livros nacionais e internacionais. Olha só:
1. Mas em que mundo tu vive?, de José Falero (Todavia)
2. Os Supridores, de José Falero (Todavia)
3. Os Anos de Chumbo e Outros Contos, de Chico Buarque (Companhia das Letras)
4. Abra e leia, de Milton Ribeiro (Zouk)
5. Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (Todavia)
6. O Lugar, de Annie Ernaux (Fosfóro)
7. Meia Siza, de Marieta dos Santos da Silveira (Pradense)
8. O Mapeador de Ausências, de Mia Couto (Companhia das Letras)
9. Escaler, de Paulo César Teixeira (Ballejo)
10. Duas Formações, Uma História: Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio, de Luís Augusto Fischer (Arquipélago)
Sim, muitas novidades na lista, né? Vem conferir!
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📍 De segunda à sábado, das 10h às 19h. Domingos, das 14h às 19h.
🚴🏾 Pede tua tele: (51) 99255 6885 ou 3221 8764.
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Que pessoa de bom gosto é a Morgana Machado… Leiam o que ela escreveu sobre meu livrinho.
Milton, finalizei teu livro hoje.
Não sou analista criteriosa de escrita, narração e de todo o blá blá blá literário. Minha área é outra. Eu só leio. Minha opinião se sujeita ao gostar ou não gostar. Como já feito por alguns amigos teus, gostaria de poder tecer maiores análises para te passar, porém não é minha praia e acho prudente respeitar meus limites.
Posso te dizer que gostei! Gostei muito. Que alegria te conhecer e ter tido a oportunidade de ler teu primeiro livro. Tenho dificuldade com contos, são poucos os livros de contos que li, acabo sendo mais adepta aos romances, questão de gosto. Mas roubando uma frase de um amigo teu “o livro vai num crescendo” e isso nos prende querendo logo ler a próxima narrativa. Eu li parecendo que estava lendo um romance, mesmo sabendo que as histórias não se relacionavam.
Parabéns Milton. Peço gentilmente que providencie o próximo para que eu possa me exibir para os meus amigos dizendo: “Eu conheço esse escritor, ele é da Bamboletras, conheço desde o início da sua obra”.