Chico Buarque, lidando com uma canção maior que seu cantor

Imagem: Companhia das Letras
Imagem: Companhia das Letras

Publicado no Sul21 em 14 de dezembro de 2014

Por Éder Silveira (*)
Especial para o Sul21

Logo nas primeiras linhas de O Irmão Alemão, Chico Buarque nos revela o centro do seu mais novo romance, a história da busca, empreendida por Francisco de Hollander, pelo paradeiro de seu irmão, nascido na Alemanha. Diz ele: “Sei que meu pai ainda solteiro morou em Berlim entre 1929 e 1930, e não custa imaginar um caso dele com alguma Fräulein por lá. Na verdade, acho que já ouvi falar de algo mais sério, acho até que há tempos ouvi em casa mencionarem um filho seu na Alemanha. Não foi discussão de pai e mãe, que uma criança não esquece, foi como um sussurro atrás da parede, uma rápida troca de palavras que eu mal poderia ter escutado, ou posso ter escutado mal.” Ou seja, mesmo que não passasse de um segredo de polichinelo, o irmão alemão, cuja existência é revelada por uma carta encontrada dentro de O ramo de ouro, obra clássica de Sir James Frazer, é o estopim para uma busca que haveria de se estender por décadas.

No dia a dia dos Holanda, falava-se do tema com maior desenvoltura. A Sergio Buarque de Holanda, não se sabe ao certo se pelos traços físicos ou se pelo domínio da língua, com certa frequência se perguntava se era filho de alemães. O historiador que, entre outras coisas, ficou conhecido por sua fina ironia, respondia de bate-pronto: filho não, sou pai de alemão. A conhecida historieta, que suponho já deva ter sido contada muitas vezes, é relembrada no belo documentário de Nelson Pereira dos Santos, Raízes do Brasil, filme que faz com que partes do livro de Chico Buarque tenham sabor de déjà vu.

Fato é que tudo o que envolve o nome de Chico Buarque ganha enormes proporções, e com O Irmão Alemão não foi diferente. Na mesma medida que os seus mergulhos em praias cariocas, seus discos ou outros livros, é digno de nota o alarido criado em torno do livro, antes mesmo de ele chegar às livrarias. Dias após o seu lançamento, O Irmão Alemão já contava com pelo menos quatro resenhas, assinadas por críticos respeitados, e com o prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).

Difícil de ignorar, o livro está em todas as livrarias  | Foto: Divulgação
Difícil de ignorar, o livro está em todas as livrarias | Foto: Divulgação

Confesso que mesmo eu, que nem de longe seria lembrado como um apreciador da literatura de Chico Buarque, fui fisgado pelas iscas que foram lançadas. A promessa de contar a história do filho alemão de Sergio Buarque de Holanda, e de tecer uma trama que ligaria os horrores da escalada do nazismo na Alemanha e os anos de chumbo da Ditadura Militar no Brasil, foram o suficiente para me fazer comprar o livro assim que publicado e lê-lo em uma tacada.

Aqueles que se interessam pela trajetória de Sergio Buarque sabem que esse período foi importantíssimo em sua formação. Ele partiu como um jornalista boêmio, ligado aos modernistas de 1922 e editor de Estética, uma revista de vanguarda, efêmera como todas devem ser. Voltou determinado a se tornar um scholar, versado na sociologia de Max Weber e de Georg Simmel. Lembro aqui uma passagem do mestre Antonio Cândido, que evocou de modo preciso o transe germânico de Sergio Buarque:

Por isso a estada em Berlim foi uma oportunidade para abrir ao seu conhecimento um campo novo – o “Domínio alemão” (como diria Valéry Larbaud), que ele incorporou sofregamente aos seus territórios. Lá seguiu sem muita regularidade alguns cursos, inclusive de Meinecke. Leu Sombart, Toennies, Alfred e Max Weber; familiarizou-se com os historiadores da arte; mergulhou na obra de Rilke, de Stefan George e dos discípulos deste, como Gundolf e Bertram; pela vida afora continuou lendo Goethe nos 70 ou 80 volumes da obra completa. E no meio de tudo isso imaginou um livro de interpretação da sua terra. Tinha 28 anos e “Raízes do Brasil” começava a germinar.

Além do tour de force intelectual descrito por Antonio Candido, o que se sabe da temporada berlinense de Sergio Buarque permite acrescentar visitas aos cafés e cabarés da capital alemã. O tempo foi suficiente, ainda, para um relacionamento mais sério, com uma jovem chamada Anne Ernst ou Annemarie Ernst, namorada alemã que permanece em Berlim quando Sergio volta, às pressas, ao Brasil. Ela estava grávida de Sergio Ernst, o irmão alemão de Chico Buarque. Sergio Buarque, até onde se sabe, desconhecia o fato.

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Duas vidas marcadas pela violência | Foto: Divulgação

Não se trata aqui, bem sabido, de comparar o romance aos fatos. Mas esse tema será perseguido ao longo da obra, a busca de Francisco de Hollander, filho do professor Sergio de Hollander, pelo paradeiro de seu irmão alemão, que, nascido na Alemanha da década de 1930, teria visto a ascensão do nazismo ao poder. A descoberta da carta, que desencadeará todos os movimentos de Francisco para descobrir o paradeiro de seu irmão, estica um fio que liga o Brasil à Alemanha, o nazismo e a ditadura militar que já estava roçando os calcanhares do protagonista. Duas vidas marcadas pela violência.

Um tema como esse, carregado de historicidade, nas mãos de um escritor que domina as regras do ofício, nos faz pensar que seria difícil errar. Ou, se quisermos ser mais reticentes, diríamos que as chances de acerto seriam altíssimas. Finda a leitura, no entanto, a sensação é de incompletude. Ora, se é escusado dizer que Chico Buarque escreve muito bem, oferece um texto burilado, bem trabalhado, com frases bem construídas, é preciso que se diga que não foi capaz de se colocar à altura da história que escolheu contar. Não se trata, de modo algum, de um trabalho mal-acabado por imperícia. Mas, seu eu precisasse definir o livro em uma palavra, diria que ele é morno.

Chico e Sérgio, sem o irmão alemão
Chico e Sérgio, sem o irmão alemão

Gostaria de sublinhar aspectos que me parecem enfraquecer o livro. O primeiro deles é a construção dos personagens. Ao longo do livro, quando fala de Sergio de Hollander, Chico Buarque não deixa dúvidas de que fala de seu pai. Quem assistiu o já mencionado documentário sobre ele não terá qualquer dificuldade de identificá-lo nas inúmeras marcas sobre as quais o autor insiste: o cigarro entre os dedos, o hábito de ler com os óculos pendurados na testa, o escritório no segundo andar da casa. Ainda assim, o esquematismo com o qual ele apresenta a rotina de um intelectual chega a ser surpreendente. O “intelectual” descrito por Chico Buarque é, bem pesadas as palavras, caricato.

Outras personagens não têm melhor sorte. Natércia, a colega-superior-amante; o pianista que tinha informações sobre Anne Ernst; o filho do pianista… A voz do narrador, igualmente, está longe de ser empolgante. Ele se dá a ver, quase sempre, por uma lente autodepreciativa. Não é ouvido pelo pai, não é O cara da turma, inveja o irmão bonito e burro que “come todas as meninas”. Em tempo: Chico, lembrado como o poeta que cantou a alma feminina, tem passagens constrangedoras sobre as mulheres com quem o seu narrador convive.

O segundo aspecto que me incomodou com relação ao livro vem da forma mediante a qual ele tratou os dois traumas históricos que servem de baliza para a narrativa, a saber, a ascensão do nazismo, evento de consequências gigantescas, e a Ditadura Militar no Brasil, período no qual transcorre boa parte da trama. A escolha por situar e relacionar a narrativa a esses dois momentos históricos, ligados à vida do autor, não recomenda o andamento, em vários momentos frívolo, a eles imposto. Uma história de amor e de segredos que tenha como eixo traumas históricos do século XX não pode se dar ao luxo de ser amena, quase superficial, sob o risco de fazer com que nossa entrega ao olhar desse narrador sobre a época simplesmente não ocorra.

Ainda que seja sabidamente uma tolice recriminar uma laranjeira por não dar pitangas, acredito que um tema como esse mereceria uma narrativa mais intensa, que fizesse jus às tragédias que, de certo modo, atravessam a vida dos seus protagonistas. Uma vez mais, retorna a questão: por que são tão raras, entre nós brasileiros, as obras artísticas que sejam capazes de traduzir a barbárie que nos cerca? Ok, ok, Chico Buarque não é Thomas Bernhard…

(*) Éder da Silveira é professor da UFCSPA, Doutor em História pela UFRGS e Pós-doutor em História pela USP

5 comments / Add your comment below

  1. Chico Buarque é literatura com cilício. É de costume que só os devotos mais fieis do culto cheguem ao final de um livro dele, mas com este novo romance tenho visto uma cisão na ortodoxia. Muitos tem afrouxado o cinto, ou mesmo se negado a ter a pele da cintura perfurada pelos pregos, abandonando a tralha já nas primeiras páginas. Felizes os países que colocam as Patti Smiths, os Leonard Cohens e os Bob Dylan em seus devidos nichos interessantes na literatura pátria (e olha que li o Só garotos, da Patti Smith, e achei um puta livro!); por aqui nunca houve a lucidez de como realizar essa ciência certa, e gente como Chico Buarque ganha os principais prêmios literários, e gente como Fernanda Torres é levada à feira de livros na Alemanha como exemplo de nosso exotismo eclético. Mas que estupidez a minha em escrever esse comentário, acabo de me lembrar que estamos no país que deu o prêmio Machado de Assis a Ronaldinho Gaúcho!

    https://www.youtube.com/watch?v=Z_8iWrmB_VE

  2. Pior que o título da postagem parece resumir bem o livro, eu não o li então não tenho credibilidade para avaliar o livro, mas o enredo é bem promissor, eu cheguei a assistir o documentário supracitado, e gostei bastante dele, então tinha tudo para ser o melhor livro do Chico, mas parece que ele recuou alguns(ou muitos vai saber né…) passos e desperdiçou um bom tema.

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