Por que o cinema não é ensinado nas escolas?

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É fato conhecido de que a educação no Brasil não funciona. Sei por experiência própria. Fiz trabalhos comunitários dando aulas de matemática na periferia de Porto Alegre e, mais do que a maioria, posso falar sobre como muitos meninos vão para o Ensino Médio sem saber como fazer uma regra de três. Alguns até entendem o conceito, mas ignoram a operação de divisão… Sei também como é complicado manter esses garotos atentos. Eles não têm a menor vivência do que é concentrar-se sobre um tema ou ouvir longamente alguém falar. O assunto deste texto pode parecer uma filigrana, uma ingenuidade, algo como um telhado de 16 m² colocado sobre o crime ambiental de Mariana e seus imensos arredores, mas talvez tenha alguma lógica.

Cena de Numa Escola de Havana
Cena de Numa Escola de Havana

Não tenho nada contra a literatura e outras artes — sou mais apaixonado pela literatura e pela música do que pelo cinema! –, mas creio que o cinema tem a peculiar característica de poder mostrar a nossa e outras realidades de forma desconstruída e facilmente analisável. Tudo isso em duas horas e de forma coletiva, concomitante. Ou seja, imaginem uma sala de aula onde fosse apresentado, por exemplo, o notável filme cubano Numa Escola de Havana (foto acima). É bem diferente de todos lerem um livro, cada um em sua circunstância. Há que considerar também que muitos alunos vêm de famílias disfuncionais, são muito pobres e simplesmente não conseguem isolamento para ler. Além do mais, uns leem pela metade, outros leram faz tempo e talvez lembrem mal do livro, etc. O cinema não. Ele pode ser apresentado in loco e a discussão a respeito dele pode ocorrer logo após sua apresentação, com todos os detalhes presentes na memória.

O cinema não é apenas diversão, é multidisciplinar e, digamos, multiuso. Não encontro argumentos para não colocar o cinema como uma das ciências humanas nas escolas. Seria uma matéria que apoiaria outras, tais como história, literatura e filosofia. O cinema tem a característica de nos mostrar diferentes culturas e formas de pensar, de abalar valores e conceitos. Suas histórias de duas horas desnudam fatos e seus modus operandi, dando novos olhares a fatos conhecidos, estimulando a discussão.

Claro que os filmes teriam que ser clássicos de qualidade indiscutível. As famílias já viram o filme do Oscar do ano passado e as porcarias e filmes médios deveriam ficar de fora. Porém, produções de mais de 20 anos e que permanecem poderiam dar apoio a aulas de história, geopolítica, ética e conhecimentos gerais.

Isto não significa que cinema seja uma arte maior do que as outras. Mas creio que ele seja mais educacional que as outras, talvez por poder ser coletivo. Hhá peculiaridades no cinema — sua instantaneidade, sua facilidade e concomitância de apreensão — que o tornam muito adequado para a criação de espírito crítico nos jovens. Como se não bastasse, o cinema, com seus personagens, torna possível um pensamento afetivo, aquele mais próximo da ética, além de possibilitar o contato com novas estéticas.

Quando eu escrevo ensinar cinema, não quero formar diretores  ou roteiristas de filmes, mas dar uma boa visão da história da jovem arte cinematográfica. Há maravilhosos e exemplares filmes que exploram fatos históricos assim como posturas e resultados de políticas. É claro que os filmes a serem discutidos não seriam os de 007 ou American Pie, e sim as obras mais relevantes sobre os temas escolhidos.

Sou uma pessoa muito preocupada com a baixa qualidade de nossa educação. Vejo nossas crianças deprimidas ou desinteressadas nas salas de aula. Causa ou consequência, nossos professores são péssimos. Aloizio Mercadante, ministro da Educação, tem toda a razão ao dizer que “Se o Brasil formasse médicos como forma seus professores, muita gente morreria”. Sou um filho da educação pública — nunca paguei para estudar, deste o maternal até o ensino superior — e sei que lá se formam garotos para conviver com o fracasso escolar diante daqueles egressos dos colégios particulares (que são um pouco menos péssimos que os públicos). Então, diante da incompetência, da falta de informação e da óbvia infelicidade, acho que devemos mostrar outras realidades, vidas e aspirações para que nossos filhos possam ter adolescências mais suportáveis e críticas.

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6 comments / Add your comment below

  1. Concordo com tudo, meu caro Milton. Divido essa sua preocupação com a educação nacional, aliás a acho o verdadeiro e primordial crime contra o brasileiro, a sua perene imposição cruel em um atraso acachapante. Já fui professor durante anos, acho que quase uma década; já tive enormes felicidades com a certeza de que através do que eu passei transformou alguns poucos alunos. Lembro de uma aluna me encontrar na rua e me dar um puta abraço e me dizer que ela passou no vestibular por conservar fresca na memória uma aula minha sobre darwinismo. Lembro de um aluno lendo Cem anos de solidão e ouvindo Coltrane por eu tê-lo iniciado nessas coisas. Mas minhas tristezas nesse campo eram ainda maiores e me deixavam em um estado de depressão perigosa, de modos que tive de me afastar. Via os alunos não como inimigos, de maneira nenhuma, mas vítimas. O que se faz nas escolas públicas do país é um crime, com múltiplos culpados. Essa sua ideia poderia sem trazer algum alento; tenho um grande amigo meu, professor de história, que já faz isso: ele passou Relatos selvagens recentemente para seus alunos, e o deslumbre foi comovente. O cinema traz o estranhamento e o espanto para a criança e o adolescente, que são as duas características principais para despertar o amor pelas artes e o esclarecimento.

  2. O cinema é mais “educacional” do que as outras artes por ser mais cinestésico do que elas. É preciso reconhecer a primazia das midias visuais sobre as outras em nossa civilização. Usá-lo na educação ajuda a driblar o fim do Parêntesis de Gutenberg.

  3. Milton: ótima ideia. Fico tentado a sugerir Entre Muros, para ajudar os alunos a entender as questões de conflitos raciais (no caso na França) e a Fita Branca, de Hanecke, sobre a construção de uma ideologia fascista.

  4. Olá!

    Aqui, em Portugal, essa ideia já está em prática.

    “O Plano Nacional de Cinema (PNC) está previsto como um plano de literacia para o cinema e de divulgação de obras cinematográficas nacionais junto do público escolar e pretende formar públicos escolares, despertando nos jovens o hábito de ver cinema, bem como valorizá-lo enquanto arte junto das comunidades educativas.”

    Espreite em http://www.dge.mec.pt/noticias/educacao-artistica/plano-nacional-de-cinema-prazo-de-candidaturas, para começar

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