Por Bruno H.B. Rebouças, no Substantivo Plural
Quando Pep Guardiola chamou Xavi Hernández para uma conversa em particular, com o intuito de lhe contar o novo esquema que o FC Barcelona utilizaria a partir daquela temporada, o meia pensou que o treinador estava ficando louco.
A ideia era muito simples: “recuperar a bola em seis segundos”.
Xavi saiu atônito da conversa pensando que isso era impossível.
Era um ano de mudanças no Barça, Temporada 2008-2009.
Xavi havia liderado há pouco tempo a seleção espanhola de Luis Aragonês no título da Eurocopa, depois de 44 anos de jejum.
Guardiola não estava brincando e começou uma revolução que fora iniciada em 1974, quando Johan Cruyff comandou o Carrossel holandês na Copa de 1974.
O técnico Rinus Michels criou o sistema conhecido como ‘Laranja mecânica’.
Segundo a lenda, Pedro Rocha, ídolo uruguaio e ícone do São Paulo FC nos 1970, disse querer chamar sua mãe duas vezes quando esteve em campo: a primeira com 17 anos, na sua estreia no clássico Peñarol e Nacional, com o estádio Centenário repleto.
A segunda, aos 32 anos, quando enfrentou a Holanda na Copa de 1974.
“Quando peguei a bola pela primeira vez, quatro jogadores vieram para cima de mim e me tiraram a bola. Não entendi nada, mas na segunda vez, a cena se repetiu, e foi assim o jogo todo. Ali, eu quis a minha mãe”, disse o craque da Celeste Olímpica.
A “laranja mecânica” ficou conhecida assim pela maneira que fulminava seus adversários/vítimas, tal qual no filme de mesmo nome de Stanley Kubrick.
Eram duas faces de um mesmo time.
Com a bola era um Carrossel em um sistema de jogo equilibrado, conciso, paciente, em que todos jogam, giram, defendem, atacam, em posicionamentos giratórios.
Atacante na defesa, defensor na área.
Foi assim no primeiro gol da Holanda contra a Alemanha, na final de 1974. Vinte dois jogadores no campo de atacante. A Holanda sai jogando e depois de vários toques Cruyff recebe no meio-campo, sozinho.
Às suas costas apenas o goleiro Jongbloed.
Cruyff avança, dribla seu marcador, leva mais dois, até ser derrubado na área alemã.
Silêncio em Berlim.
Neeskens cobra e faz Holanda 1 a 0.
Finalmente a Alemanha pega na bola.
No sistema do Carrossel há altos e baixos. O jogador que sobe também desce. Como num parque de diversões – alguns dos cavalos ficam estáticos em sua posição como jogadores de pebolim.
O carrossel laranja é mais moderno. Ele se mexe. O sistema podia vencer o talento individual, um grande time. Sem a bola era fulminante, todos atrás do esférico, parecendo moleques no tempo da escola.
O Brasil encantou o mundo com a melhor seleção de todos os tempos em 1970.
A Holanda quebrou a roda giratória do talento individual misturado em uma mesma equipe.
Um ditado holandês diz: “Deus fez o mundo. E o holandês fez a Holanda”.
Seguindo o mesmo exemplo: o brasileiro criou o futebol arte.
O holandês o revolucionou com seu futebol total.
Quando camisas laranjas reluziam em campo com três listras horizontais nos ombros dos atletas, a de Cruyff estampava duas.
Johan se negou a usar a camisa da patrocinadora da seleção, a Adidas, com suas tradicionais três listras. A Federação holandesa acabou cedendo por pressão popular e midiática, e por não poder perder sua maior estrela.
Naquela Copa a Holanda triturou o Uruguai, fulminou a Argentina e amassou o Brasil, em Dortmund, apesar das chances que o time de Zagalo teve para abrir o placar.
Perdeu a final de virada, mas é mais lembrada e festejada que a campeã Alemanha.
Na semifinal, Jairzinho pega na bola na altura do meio-campo. Gira para direita, esquerda, recua, tenta se safar do marcador holandês. Chega mais um, dois, três. O furacão da Copa de 1970 tenta um passe no meio, procura respirar, mas chegam dois holandeses e antes do Brasil tocar novamente na bola a Holanda a recupera.
Algo em torno de seis segundos, como pediu Guardiola a Xavi 34 anos depois.
Cruyff foi o grande nome daquele sistema.
Tricampeão continental com o Ajax, depois da Copa do Mundo chegou à Barcelona. Tempos difíceis aqueles. Quatorze anos sem vencer a Liga, final do regime franquista. O FC Barcelona já era “Més que un club’, por sua resistência ao regime e todas as suas arbitrariedades dentro e fora do mundo do futebol.
Quando o revolucionário Cruyff pisou em Barcelona já era um ídolo da Catalunha, pois se negara a jogar no Real Madrid e forçou a direção do Ajax a aceitar a proposta do Barça: 60 milhões de pesetas, na maior transação do futebol mundial até meados dos anos 1990.
O Barcelona voltou a ser campeão espanhol depois de 14 anos, com direito a histórica vitória por 5 a 0 contra o Real Madrid dentro do Santiago Bernabéu.
Se um Barça-Madrid fosse somente um jogo de futebol, aquele resultado já seria épico. Como não é, aquela goleada dentro do coração de Madri foi o grito preso na garganta contra a opressão e proibição que catalães e barcelonistas (culés) sofreram durante o regime franquista – como não poder celebrar títulos em público.
A semente da revolução foi plantada na Catalunha na sua passagem como jogador do FC Barcelona.
Em 1988, 20 anos antes de Pep Guardiola assumir o comando do Barça e quebrar recordes de títulos conquistados em quatro anos de Santos e Ajax, Cruyff transformou o Barcelona naquilo que seria hoje em dia o ‘dream team’ campeão europeu de 1992, com Koeman, Guardiola, Laudrup, Stoichkov e outros.
A história do FC Barcelona tem um antes e depois de Cruyff, como a do futebol passa por antes e depois de Pelé.
Futebol é religião. E se todas as religiões têm messias, profetas e apóstolos, Cruyff se posiciona em uma Santíssima Trindade subjetiva, na qual cada um de nós têm ao menos um na mesa de 12 apóstolos, junto com o Criador.
O futebol total que o ‘Pep team’ jogou e encantou o mundo com posse de bola inimagináveis de 70% contra equipes tops do mundo é a evolução do ‘Carrossel Laranja-Laranja Mecânica’, do ‘Dream team’ do Barcelona de Cruyff.
Johan Cruyff nos deu adeus hoje pela manhã, o mais revolucionário dos jogadores de futebol que existiu.
Conhecedor das regras do jogo, em dezembro de 1982 rolou a bola para frente em um pênalti na vitória do Ajax por 5 a 0 contra o Helmond Sport, na qual adversários ficaram sem entender o que acontecia.
Foi o primeiro e, talvez um dos poucos, que se rebelou contra um patrocinador por não achar justo reluzir a marcar de uma empresa capitalista e não receber nada por isso.
Foi expulso contra o La Coruña em 1974, em Riazor, e por considerar injusta a expulsão se negou a sair de campo. Só saiu quando a polícia entrou em campo para retirá-lo – momento registrado em fotografia no Museu do Barcelona.
Em 1992, quando perdeu a final do mundial de clubes para o São Paulo de Telê Santana, de virada, proferiu uma das mais lindas frases sobre futebol, que envaidece muito a todos os são-paulinos como eu, ao demonstrar um exemplar espírito esportivo ao dizer:
“Se é para ser atropelado, que seja por uma Ferrari”.
Hoje o mundo do futebol amanheceu de luto e de luto ficará por oficiais três dias.
Perdemos não somente um grande e brilhante jogador, mas um filósofo, idealista e revolucionário jogador e técnico que preparou 20 anos antes como um time de futebol iria jogar e conquistar o mundo com o melhor futebol de todos os tempos.
A France Footbal resumiu a história do FC Barcelona com uma foto. Nela se vê a camisa 14 de Cruyff, a 4 de Guardiola e a 10 de Messi. Na legenda se lê, respectivamente: o Pai, o Filho, e o Espírito Santo.
O futebol ficou de luto, mas em especial todos nós, culés, ficamos órfãos.
Descanse em paz Johan.
E obrigado!
Lindo e comovente texto! Segurei uma pequena lágrima que quase me escorreu no rosto! Eu o vi jogar na Copa de 1974, quando tinha apenas 10 anos. Jamais esqueci do tamanho assombro que me dominou ainda menino. Meus ídolos pouco a pouco estão partindo, e a vida fica cada vez mais chata. Como disse certa certa vez meu poeta predileto, “melhor fora que vivesse bêbedo”.