Por Samuel Sganzerla
É um dia muito bom, porque tu ficas! Como eu tinha te dito no meio da semana passada, eu te entenderia se quisesses regressar à Zona Sul carioca, com polpudos vencimentos e um novo desafio em outro clube que fizeste história. Ficará para uma próxima, felizmente. Todo o trabalho de um ano e meio feito por aqui, com tudo que foi conquistado ao longo deste período, foi, sem dúvidas, fundamental para que tu ficasses. E porque tu sabes o que és para o Grêmio! Muito obrigado!
E o “Dia do Fico” veio após sermos campeões estaduais. Sei o quanto tu querias o Campeonato Gaúcho, algo que deixaste expresso nas últimas entrevistas. Era um título que faltava no teu currículo, e isso o fazia ser teu objeto de desejo. Além disso, fazia oito anos que o Grêmio não se sagrava campeão do Gauchão. Estou feliz, claro, por ti, por todo o grupo e por toda a Nação Tricolor.
Agora, posso pedir licença para falar um pouco sobre o Campeonato Gaúcho em si? Como eu disse na última vez, recusei-me a aparecer aqui para conversarmos sobre o estadual – tanto que só dei as caras após os jogos da Recopa e da Libertadores, em 2018. E a razão para isso é bem simples: faz anos que eu tenho uma relação de BOICOTE com o Gauchão. Eu mencionei isso na primeira oportunidade deste ano: “por mim, nem jogaria mais o estadual”.
A razão para isso é que já faz tempo que o Gauchão congratulou a máxima do saudoso mestre Claudio Cabral: a única coisa pior do que ganhá-lo é perdê-lo. Conquistá-lo pouca diferença faz, mas perdê-lo cria crises desnecessárias e, até então, inexistentes. Algo na linha da narrativa surrealista que os adeptos do coirmão conseguiram emplacar por estas bandas nessa toada: o Campeonato Gaúcho só vale quando eles ganham
Eles cansaram de bradar que o Inter “conquistou pelo menos um título por ano durante 15 anos” (sendo que em nove desses o único foi o estadual), ao passo que lembravam que o Grêmio “ficou 15 anos sem ganhar nada” (porque daí era conveniente esquecer as vezes em que vencemos o Gauchão nesse período). Sei que a provocação é inerente à rivalidade, mas a verdade é que é esse o tom que tem ditado nossa relação com o regional: quando ganhamos, de nada valeu, mas, quando perdemos, foi o início de uma crise. Uma beleza, hein?!
Contudo, Renato, a minha implicância com o Campeonato Gaúcho vai para muito além dessa cantilena corneteira. Num país que tem se inspirado há quinze anos no modelo europeu de organização do futebol, simplesmente não há mais espaço para que disputemos os estaduais. O Gauchão encurta absurdamente a pré-temporada e incha ainda mais um calendário bastante extenso num país cujas dimensões continentais jamais permitirão que possamos ter por base o sistema europeu.
E não é um campeonato fácil: depois de um período curto de férias, voltamos para enfrentar equipes que estão se preparando há meses para fazer o jogo de suas vidas contra nós e o coirmão. Poucos ali têm objetivos maiores do que enfrentar a nós ou o coirmão em suas casas, para que a renda desse jogo garanta parte significativa de seu orçamento anual – basicamente, o que dá sustentáculo ao poder da federação estadual. Seria muito bom ter outra forma de buscar a receita que os direitos de transmissão do Gauchão nos trazem, de preparar a equipe para a temporada. Mas estamos dentro de um sistema viciado, Renato!
Ainda poderia ser bem pior: quantas vezes vimos uma das principais contratações do ano se lesionar logo no início, numa partida do Estadual? Quantas vezes o Gauchão não nos atrapalhou em outros objetivos, por coincidir com a disputa da Copa do Brasil ou da Libertadores, de modo que deixamos a equipe ainda mais desgastada? Quantas vezes o bom clima que pairava sobre o Olímpico ou a Arena, com expectativa de um grande título, não foi quebrado por uma simples derrota no estadual?
E não fiquemos apenas no Grêmio, porque faz anos que digo que esse sistema prejudica a Dupla. Lembras da final do Gauchão de 2012? Para não perder o título em casa, para o Caxias, Dorival Júnior, então técnico deles, sacou D’Alessandro e Dagoberto do banco. Os dois voltavam de lesão, mas ajudaram a garantir o título para o rival. Todavia, aquela partida os prejudicou em sua recuperação, de modo que atrasaram ainda mais o seu retorno aos gramados em plena forma – o que foi ruim para o clube inteiro. Para só ficar neste exemplo.
O que eu quero dizer é que a conquista do campeonato estadual é pouco valorizada, porque temos objetivos muito maiores. A receita gerada para o clube em razão dele não é muito significativa – e, por mais que pareça essencial para fechar o orçamento anual, o Gauchão simplesmente nos impede de encontrar alternativas. E isso porque a pré-temporada é prejudicada (gostam de falar do calendário europeu, mas, salvo as Supercopas da vida, por lá todos têm cerca de três meses de intervalo na suas competições, enquanto aqui paramos de jogar em dezembro, para já voltar em janeiro).
Por outro lado, as perdas e prejuízos propiciados pelo estadual são potencializados. E aí vem minha questão: por que disputar o Gauchão? Minha resposta, há bastante tempo: não há motivo. Simplesmente precisamos virar essa página, como um dia viramos a do saudoso Campeonato Citadino. Porque o futebol cresce, porque nossas pretensões crescem, porque nossos objetivos se tornam infinitamente maiores do que o “Ruralito”. O Campeonato Gaúcho, hoje, é a alvorada das ilusões ludopédicas, sua taça é a miragem do oásis em meio à imensidão do deserto.
Para entender isso, basta olhar o início de 2018: o Grêmio era Tricampeão da América, a torcida em lua de mel por tudo que ocorreu nos últimos anos, mas queriam criar uma CRISE, por conta da ameaça de rebaixamento no estadual, em razão do pífio desempenho da gurizada do time de transição. Aí vieram os Grenais, e o que valeu para nós, no Gauchão, foram as boas vitórias nos clássicos.
E isso poderia ter ido água abaixo naquele terceiro jogo, tamanho foi o salto alto com que entramos no Beira-Rio, com o time troteando em campo como quem foi curtir a vida na zona boêmia da cidade na noite anterior. Já imaginaste o tamanho da CELEUMA se perdêssemos a vaga para o rival depois de abrir 3×0, Renato? Se chegasse a ocorrer (e mal eles acreditavam que isso aconteceria), mesmo assim não seria grande coisa. Não para os objetivos maiores, não porque o Grêmio até se esforçou para entregar a paçoca. Mas isso sou eu que penso. Tente lidar com a imprensa depois disso.
Felizmente, entramos a tempo de evitar o cenário pior que a gurizada tinha desenhado para nós, eliminamos o rival e conquistamos o campeonato com duas boas vitórias sobre o bravo Xavante, que vem bem para a Série B deste ano. Lembrando que, na última vez em que havíamos vencido a Recopa, lá em 1996, também conquistamos o Gauchão em cima de um time anterior, pelo placar agregado de 7×0 (igual: 4×0 em casa e 3×0 fora). Naquele ano veio o Brasileirão ainda. Que seja um bom presságio…
Enfim, foi bom o Gauchão de 2018 para testar o futebol de vários guris da base, valeu pelo chocolate no clássico e, tá bem, taça é taça e tu querias bastante essa, né?! Fico feliz por isso tudo! Mas agora deu de falar de campeonato estadual. O Campeonato Brasileiro começa semana que vem, e temos Libertadores e Copa do Brasil pela frente também. Como falamos toda vez que chega maio (ou abril, no caso de anos de Copa do Mundo): é agora que a coisa começa. Que bom neste ano sem uma crise artificial implantada (e sem ilusões também). E que bom que tu ficaste, Renato!
Saudações Tricolores!
E segue o baile…
https://youtu.be/oJ_DfoetWOM