Amós Oz (1939-2018)

Por Heitor Lima (*)

É com profunda tristeza que anuncio a morte do grande escritor e pacifista Amós Oz. Morreu aos 79 anos em decorrência de um câncer, segundo sua filha Fania Oz-Salzberger.

A literatura faz parte da humanidade. Oz foi um inesgotável ser humano. A despeito de qualquer silogismo, os dois são signos eternos da vida, do esforço em representar o que há por baixo da realidade — da qual o olho desatento é presa de fácil captura. Impossível falar de Oz sem colocá-lo ao lado da alta literatura: escrevo sobre um homem que não poderia se separar de seus livros nem sob o conluio do tempo e da morte.

Nasceu Amos Klausner, mudando posteriormente para Oz (palavra hebraica que significa “coragem”). Filho de judeus poloneses que fugiram de Odessa, na Ucrânia, passando pela Lituânia e chegando ao Mandato Britânico da Palestina no ano de 1933. Nasceu em 1939 numa “pátria incompleta”, antiga promessa de uma real pátria judaica. Açoitado pelo medo constante dos árabes enfurecidos, dos britânicos armados até os dentes, Oz cresceu como um “pequeno fanático”, como retrata na maravilhosa novela autobiográfica Pantera no Porão e na sua autobiografia, e assim permanece durante boa parte da infância, sob pressão das grandes dificuldades ideológicas e existenciais. Com o tempo percebe que, antes das nossas grandes diferenças existe a nossa unidade evidente: o espetáculo da humanidade. Seus laivos ideológicos tendenciosos se dissolvem enquanto brota a semente da subversão ao preconceito, da compreensão, do amor genuíno. Em seu livro Como curar um fanático admite que todos temos um aspecto de fanatismo no que somos. Porém cabe a nós mesmos identificá-lo e, até onde for possível, enfraquecê-lo. Isso é, segundo Oz, um exercício de compreensão mútua.

Em todos nós há o locus da maldade, crueldade e do egoísmo. Mas há também uma bondade genuína, uma capacidade de raciocínio amplo e inclusivo, uma força modificadora persistente.

Foi um dos fundadores e maior representante do movimento israelense Paz Agora e o escritor mais influente de seu país. Israel aparece em boa parte de seus romances como núcleo gerador. Tel Aviv é como a respiração do desenvolvimento e da velocidade. Mas é no kibutz, o embrião de uma sociedade democrática, que sua obra aponta o esforço da reconstrução da humanidade, partindo de um ponto de vista de respeito, convivência e união.

Oz tinha uma particular posição quanto a guerra entre Israel e Palestina: “É um choque entre o certo e o certo”, diz ele. Para o escritor, a única possibilidade de reconciliação está em abrir mão, ceder um pouco do que é de seu de direito, estar aberto a abraçar a sua dor e a dos outros. Está em sofrer uma perda: mais uma ferida no orgulho de um povo para alcançar uma relação pacífica. O registro em sua obra do microcosmos do kibutz (já que residiu em um, dando aulas, participando de suas demandas e relações) e suas considerações e posições sobre os problemas da guerra (já que lutou na guerra dos seis dias e na guerra do Yom-Kippur) estão sempre no caminho da compreensão, da capacidade de dar e receber, de sofrer e crescer.

Em “O mesmo mar”, um de seus romances mais experimentais, ele escreve o seguinte poema em prosa:

A duas vozes

Por trás do primeiro regato talvez se esconda um segundo.
Por causa da corrente impetuosa desse riacho, o primeiro,
quase não se pode ouvir o murmúrio
do segundo, o oculto. Rico está sentado numa pedra. Quem sabe
só se pode ouvir no escuro? Rico se dispõe a esperar.

Há em Rico, um personagem que vaga sozinho pelos ermos do Tibete para buscar sua paz interior, uma angústia pela morte da mãe, uma dor que o obriga a sair do tumulto. Assim como há também uma angústia em Ionatan Lifschitz do romance Uma certa paz, que deseja, na verdade, sair de uma estagnação interior e um excesso de paz enquanto mora num kibutz. Angústia tão grande que ele decide partir de fato e deixar seu pai, sua companheira e a lembrança da filha que morreu. Para Oz o ser humano não é simples e imutável. É uma existência dinâmica e complexa, repleta de contradições e anseios. A obra do israelense nos diz que a nossa unidade está na imensa capacidade de mudar, de transformar e ser transformado. Não é por acaso que Tchékhov e seus dramas essencialmente humanos sempre foram uma paixão dele. Em Judas há uma desilusão com a própria vida, uma subversão de antigas crenças, um amor quase físico pelo nada, mas há uma posterior reconstrução e uma renovação da dúvida, força geradora do nosso crescimento. Nas seguintes e últimas linhas do romance:

Schmuel continuou ali em pé, no meio da rua deserta. Baixou do ombro o kitbag, depositou-o no asfalto empoeirado. Com cuidado, pôs o casaco sobre o kitbag, e também a bengala e o chapéu. E perguntou a si mesmo.”

E perguntou a si mesmo”. Esta última frase vem depois de um ponto final, quase como se estivesse condensada em si mesma mas, na verdade, sendo a condensação do próprio romance, da humanidade pulsante que permeia a obra inteira. A vida perde uma de suas maiores joias. Mas Amós Oz é e sempre será uma força vital e literária que vibra e reverbera dentro de cada um de seus leitores, amigos, alunos e família.

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(*) Heitor Lima é um amigo de Fortaleza, estudante de psicologia e apaixonado por literatura.

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