Não diga noite, de Amós Oz

Não diga noite, de Amós Oz

Teo é um arquiteto de 60 anos em vias de se aposentar. Noa tem 20 anos a menos e é professora. Eles formam um casal que vive em uma pequena cidade do interior de Israel, Tel Keidar, no limite do deserto. Teo é respeitado por suas realizações passadas. Noa passou a maior parte de sua vida cuidando do pai. Quando um aluno de Noa morre, ela recebe uma incumbência do pai do garoto: a de criar uma clínica de recuperação para jovens que se envolveram com drogas. Tudo seria mais ou menos pago por ele.

Com Teo e Noa beirando uma surda e educada crise de relacionamento, ela procura de todas as formas concluir o projeto inventado pelo pai do menino. Ela não quer que Teo, o homem que todos consultam e que tudo sabe sobre projetos governamentais, se imiscua em algo que é dela. Só que a clínica dificilmente sairá do campo das boas intenções porque os políticos da cidade não querem drogados na região e não conseguem ver na iniciativa vantagens para a cidade. Quem sabe um memorial para lembrar o menino? Ou um atelier, ou um centro para jovens gênios da computação. Por que logo drogas?

O livro é narrado ora por Noa, ora por Teo. Um e outro revelam um delicado e cansado amor entre pequenas discordâncias. A história parece modesta, Noa e Teo parecem estar atormentados pela pouca importância de seus compromissos comuns e pelo isolamento. Não diga noite descreve-os como duas pessoas que lutam para ficarem juntas, principalmente por meio de rituais domésticos que demonstram a crença resignada, mas romântica, de que tais rituais não são apenas cheios de beleza, mas talvez sejam tudo o que há de prazer na vida.

O enredo consiste em um pequeno conjunto de circunstâncias. É uma história principalmente de boas intenções mal interpretadas. O ex-aluno de Noa morreu de overdose de drogas e o pai do menino, suspeito de ser traficante de armas, aborda Noa com a ideia de um centro de reabilitação de drogas dedicado à memória de seu filho. O pai doará muito do dinheiro necessário para estabelecê-lo. Noa, lisonjeada e surpresa por ser convidada para chefiar o centro, trata de tocar o projeto. Ela organiza um pequeno grupo de pessoas para ajudá-la a planejar a clínica e arrecadar dinheiro. A ideia da clínica torna-se uma oportunidade para o romancista olhar para as tensões e dramas mesquinhos de uma pequena comunidade.

Fiquei mais interessado nas partes da história que se concentram em Noa. Quando a conhecemos, ela é jovem, brilhante e espalha “um rastro de perfume” pelo apartamento. Recentemente, ela foi animada pela ideia da clínica, embora o projeto a tenha afastado de Teo, que observa suas idas e vindas e explosões de entusiasmo com certo ceticismo. Depois de todos os anos juntos, Teo ainda a ama, embora sua condição seja a de um velho sem entusiasmo. Quando ele tenta ajudá-la — como arquiteto, ele está mais conectado aos poderes municipais, especialmente à prefeita de Tel Keidar –, intercedendo por Noa, ela perde o foco, como se tudo tivesse sido estragado para ela pelo interesse e participação de Teo. É uma calma crise.

A verdade é que ela é recebeu a informação de que o estudante morto estava ligeiramente apaixonada por ela. Quem afirma isso é Tali, uma amiga do estudante que diz a ela que o uso de drogas na comunidade não é tão generalizado ou um problema sério na cidade. Isso faz com que Noa perca o foco. De repente, ela começa a passar um tempo excessivo fazendo compras e indo ao cinema com a jovem. Tali é uma filha substituta, é uma negação de sua própria meia-idade ou as duas estão se apaixonando?

Não diga noite é uma melancólica música de câmara. É de um gênero de romance repousante que é regido por uma estética de calma. E é muito bom.

Amós Oz, na época da publicação de ‘Não diga noite’

Judas, de Amós Oz

Judas, de Amós Oz

Judas é o último romance de Amós Oz (1939-2018), publicado em 2014, aos 75 anos de idade do escritor. Sem dúvida, é um belo ponto final para a grande obra de Oz. Trata-se de uma indiscutível obra prima. É um livro que nasceu clássico, mas não pense em algo acadêmico, pense em algo rebelde. Oz ousa muito em Judas. Ele reinventa a história do homem do qual se diz ter beijado e traído Jesus e questiona a criação do estado de Israel. Só isso. Sem artifícios exagerados ou grandes invenções, apenas empurrando as peças para ali adiante ou para o lado, Oz reconstrói a história do cristianismo e de seu povo. A leitura de Judas é um sereno convite para a livre reflexão. Mas sabem o que eu acho? Há duas histórias contadas paralelamente e a melhor é a outra.

A outra história, a de dentro de casa, é a do trio formado por Shmuel Asch, um jovem, reflexivo e quase desistente estudante universitário; por Guershom Wald, um velho professor inválido que é cuidado às noites por Shmuel; e por Atalia Abravanel, nora de Wald. Os três moram na mesma casa, que é de Atalia. Após desistir (temporariamente?) da universidade, Shmuel serve de interlocutor para Wald entre às 17 e às 22h, já que o velho gosta de tagarelar e tagarelar de forma inteligente e contumaz. Atalia é a nora viúva, pois seu marido, filho de Wald, morreu na guerra. É lá, em uma casa de pedra que cheira à mofo, que são discutidas algumas das grandes questões políticas e religiosas da região.

Não pensem em um livro onde as teses políticas competem com os personagens e a fabulação, pense num livro onde a situação dos personagens diz tanto sobre as teses que tudo se confunde. Alívio! Judas não tem um texto que descamba para a filosofia ou a política, tem um texto onde as situações falam tanto quanto as teses.

Shmuel, um estudante ateu de judaísmo, foi contratado por Atalia para conversar com o velho, dar-lhe alguns remédios e alimentá-lo no horário que citamos. No resto do tempo, ele pode fazer o que quiser. Então, ele dorme, passeia e pensa na tese de pós-graduação que talvez jamais escreva, pois está sem dinheiro e desanimado. Mas talvez o que mais faça é o que fizeram seus antecessores no cargo: apaixona-se pela misteriosa e bela Atalia, uma mulher amarga que não quer nada com homens — além de, eventualmente, seu instrumental.

Shmuel fala muito de Judas Iscariotes. Ele acredita que Judas, na verdade, não traiu Jesus, mas foi seu discípulo mais leal. O velho fala sobre seu sogro, um certo Shaltiel Abravanel, pai de Atalia, famoso traidor na época de sua expulsão do Executivo sionista em 1947, por se opor à criação do Estado de Israel. Abravanel acreditava que judeus e palestinos poderiam viver juntos sem fronteiras. Foi considerado também traidor. O velho e o menino conversam sobre as ideias desses dois mortos, mas acima de tudo sobre suas condições de supostos traidores. Quem decide quem é traidor e por quê? Esse é o verdadeiro tema do romance. Oz conhece bem o tema, já que também teve problemas com o nada tolerante fundamentalismo judaico.

Enquanto isso, desenvolve-se o amor sem chances do jovem Shmuel pela bela, atraente e desiludida Atalia, que tem 45 anos, o dobro da idade dele.

Judas é um romance que lida com a questão da traição. Por que Judas teria traído Jesus em troca de 30 moedas de prata? Não é verdade que Judas honrou seu mestre mais do que todos os outros discípulos e só queria provar que Jesus era todo-poderoso e poderia salvar a si mesmo da cruz? A resposta toca o cerne da relação entre judeus e cristãos e tem importância não apenas teológica, mas também política. A descrição da crucificação de Jesus da perspectiva de Judas é uma das passagens mais impressionantes do livro. Mas há mais, há o processo de introdução de Shmuel no cotidiano da casa, também lindamente descrito.

É magistral a forma como Oz consegue evocar a Jerusalém de 1959 e 1960. Na atmosfera densa e cinza, fica claro desde o início que também a história de amor que surge entre Atalia e o (ex-)estudante de Teologia está condenada ao fracasso. Nas conversas, nas perdas e nas esperanças dos três moradores da casa refletem-se todas as turbulências históricas não apenas das últimas décadas, mas dos últimos 2 mil anos.

Certo dia, um grande amigo me disse que as obras-primas literárias sempre giram sobre estes três temas — o amor, a morte e a existência (ou não) de Deus. Judas é um livro que fala de todos estes temas.

Recomendo fortemente.

Amós Oz não era antissemita, mas criticava Israel. Quem elogia sistematicamente? Os fanáticos, ora. Mas isso é outro papo.

Lendo Judas, de Amós Oz

Lendo Judas, de Amós Oz

Estou num relacionamento sério com o livro Judas, de Amós Oz. Livraço. Leio Oz apenas pela segunda vez e repetidas vezes parece que estou numa atmosfera Charles Dickens. Esse cara deve amar Dickens, essa frase poderia ser de Dickens. Mas o tema do livro nada tem a ver. Oz não é sentimental. Judas não é nada semelhante a qualquer livro de Dickens. Oz conjetura, Dickens conta. Estou doido.

Resolvo guglar “Dickens Amós Oz” e descubro um monte de referências de Oz ao inglês. Um monte, principalmente a um dos livros que mais amo, Grandes Esperanças, e ao Um Conto de Duas Cidades. E alguma coisa acontece no meu coração que só quando cruzam e dialogam dois queridos gênios numa esquina qualquer.

Amós Oz em Nova York em 2016

Amós Oz (1939-2018)

Amós Oz (1939-2018)

Por Heitor Lima (*)

É com profunda tristeza que anuncio a morte do grande escritor e pacifista Amós Oz. Morreu aos 79 anos em decorrência de um câncer, segundo sua filha Fania Oz-Salzberger.

A literatura faz parte da humanidade. Oz foi um inesgotável ser humano. A despeito de qualquer silogismo, os dois são signos eternos da vida, do esforço em representar o que há por baixo da realidade — da qual o olho desatento é presa de fácil captura. Impossível falar de Oz sem colocá-lo ao lado da alta literatura: escrevo sobre um homem que não poderia se separar de seus livros nem sob o conluio do tempo e da morte.

Nasceu Amos Klausner, mudando posteriormente para Oz (palavra hebraica que significa “coragem”). Filho de judeus poloneses que fugiram de Odessa, na Ucrânia, passando pela Lituânia e chegando ao Mandato Britânico da Palestina no ano de 1933. Nasceu em 1939 numa “pátria incompleta”, antiga promessa de uma real pátria judaica. Açoitado pelo medo constante dos árabes enfurecidos, dos britânicos armados até os dentes, Oz cresceu como um “pequeno fanático”, como retrata na maravilhosa novela autobiográfica Pantera no Porão e na sua autobiografia, e assim permanece durante boa parte da infância, sob pressão das grandes dificuldades ideológicas e existenciais. Com o tempo percebe que, antes das nossas grandes diferenças existe a nossa unidade evidente: o espetáculo da humanidade. Seus laivos ideológicos tendenciosos se dissolvem enquanto brota a semente da subversão ao preconceito, da compreensão, do amor genuíno. Em seu livro Como curar um fanático admite que todos temos um aspecto de fanatismo no que somos. Porém cabe a nós mesmos identificá-lo e, até onde for possível, enfraquecê-lo. Isso é, segundo Oz, um exercício de compreensão mútua.

Em todos nós há o locus da maldade, crueldade e do egoísmo. Mas há também uma bondade genuína, uma capacidade de raciocínio amplo e inclusivo, uma força modificadora persistente.

Foi um dos fundadores e maior representante do movimento israelense Paz Agora e o escritor mais influente de seu país. Israel aparece em boa parte de seus romances como núcleo gerador. Tel Aviv é como a respiração do desenvolvimento e da velocidade. Mas é no kibutz, o embrião de uma sociedade democrática, que sua obra aponta o esforço da reconstrução da humanidade, partindo de um ponto de vista de respeito, convivência e união.

Oz tinha uma particular posição quanto a guerra entre Israel e Palestina: “É um choque entre o certo e o certo”, diz ele. Para o escritor, a única possibilidade de reconciliação está em abrir mão, ceder um pouco do que é de seu de direito, estar aberto a abraçar a sua dor e a dos outros. Está em sofrer uma perda: mais uma ferida no orgulho de um povo para alcançar uma relação pacífica. O registro em sua obra do microcosmos do kibutz (já que residiu em um, dando aulas, participando de suas demandas e relações) e suas considerações e posições sobre os problemas da guerra (já que lutou na guerra dos seis dias e na guerra do Yom-Kippur) estão sempre no caminho da compreensão, da capacidade de dar e receber, de sofrer e crescer.

Em “O mesmo mar”, um de seus romances mais experimentais, ele escreve o seguinte poema em prosa:

A duas vozes

Por trás do primeiro regato talvez se esconda um segundo.
Por causa da corrente impetuosa desse riacho, o primeiro,
quase não se pode ouvir o murmúrio
do segundo, o oculto. Rico está sentado numa pedra. Quem sabe
só se pode ouvir no escuro? Rico se dispõe a esperar.

Há em Rico, um personagem que vaga sozinho pelos ermos do Tibete para buscar sua paz interior, uma angústia pela morte da mãe, uma dor que o obriga a sair do tumulto. Assim como há também uma angústia em Ionatan Lifschitz do romance Uma certa paz, que deseja, na verdade, sair de uma estagnação interior e um excesso de paz enquanto mora num kibutz. Angústia tão grande que ele decide partir de fato e deixar seu pai, sua companheira e a lembrança da filha que morreu. Para Oz o ser humano não é simples e imutável. É uma existência dinâmica e complexa, repleta de contradições e anseios. A obra do israelense nos diz que a nossa unidade está na imensa capacidade de mudar, de transformar e ser transformado. Não é por acaso que Tchékhov e seus dramas essencialmente humanos sempre foram uma paixão dele. Em Judas há uma desilusão com a própria vida, uma subversão de antigas crenças, um amor quase físico pelo nada, mas há uma posterior reconstrução e uma renovação da dúvida, força geradora do nosso crescimento. Nas seguintes e últimas linhas do romance:

Schmuel continuou ali em pé, no meio da rua deserta. Baixou do ombro o kitbag, depositou-o no asfalto empoeirado. Com cuidado, pôs o casaco sobre o kitbag, e também a bengala e o chapéu. E perguntou a si mesmo.”

E perguntou a si mesmo”. Esta última frase vem depois de um ponto final, quase como se estivesse condensada em si mesma mas, na verdade, sendo a condensação do próprio romance, da humanidade pulsante que permeia a obra inteira. A vida perde uma de suas maiores joias. Mas Amós Oz é e sempre será uma força vital e literária que vibra e reverbera dentro de cada um de seus leitores, amigos, alunos e família.

.oOo.

(*) Heitor Lima é um amigo de Fortaleza, estudante de psicologia e apaixonado por literatura.

De Amor e Trevas, de Amós Oz

De Amor e Trevas, de Amós Oz

De amor e trevas Amós OzLi este livro após enorme insistência do meu amigo de Fortaleza Heitor de Lima, o Rei do Inbox Literário, que só conheço das teclas. É claro que, após a grande propaganda, minha expectativa era muito elevada. Oz não negou fogo, pelo contrário. No início, achei que estava lendo um Dickens moderno, um escritor dedicado a contar uma autobiografia detalhada, uma história familiar que acabaria — isto não é spoiler, está na contracapa e o autor reafirma a cada momento o que acontecerá no final — com o suicídio da mãe de Oz. Os avós, os tios, suas vidas na Europa, a nova diáspora ocorrida antes e durante a 2ª Guerra Mundial, tudo é contado com riqueza de detalhes.

A prosa de Oz é tão viva e humana que o desespero explícito dos filmes de judeus de Hollywood é um item menor em relação à vida interior dos personagens. A tristeza, mesmo o suicídio da mãe, vem digna, sem exageros. O sofrimento é autenticamente judeu, contado sempre com um humor levemente auto-depreciativo. O livro é um sinfonia. Tem momentos de enorme pesar e outros hilariantes. Oz é um mestre. Humor, drama e fatos familiares de então e de agora estão misturados de tal forma que tudo me pareceu potencializado, muito sensível e vivo, mas sem jamais cair na pieguice de um Dickens.

O livro foca a relação de Oz com os pais e as famílias paterna e materna. Vista pelos olhos da criança, as decepções da mãe — uma mulher linda e brilhante do ponto de vista intelectual — e a figura do pai — um erudito árido e chato, espécie de fracassado dentro de uma família com meia dúzia de escritores de peso em Israel — são descritas em pinceladas incompletas, de uma forma onde o leitor compreende o todo por sua própria vivência. Como pano de fundo, está a formação do estado de Israel, fato que encanta o pai de Amós e é visto com indiferença pela mãe.

A autobiografia de Oz é interessante também porque sua vida é muito distinta do comum. Dois anos após a morte da mãe, com apenas 16 anos, Oz saiu de Jerusalém, abandonou a futura carreira de escritor que todos os Klausner — família do pai — previam e foi viver em um kibutz, largando de vez o pai para tornar-se um “um homem do campo”. Mesmo que Oz não fale muito mal do pai, fica claro o motivo pelo qual ele muda o seu sobrenome de Klausner para Oz.

As desajeitadas aventuras sexuais do adolescente também são contadas com especial cuidado e talento. As coisas dos meninos estão lá.

(Já comecei a ler um outro livro hoje, de um escritor gaúcho. Ele logo dá duas opiniões políticas gratuitas e faz uma mal disfarçada autopromoção. Acho melhor voltar a um escritor de virtuosismo arrebatador como Oz. Após mais de 600 páginas de prosa inteligente, bela e modesta, é triste voltar a nossa realidade. E que elegância Oz demonstra em suas considerações políticas sobre Israel!).

Mas Oz é filho de pai e mãe. Afinal, tornou-se o grande escritor que os Klausner prognosticavam e sua relação com a mãe é fundamental. Sua morte marcou as escolhas de Amós de uma forma decisiva. Se numa primeira fase a revolta fez com ele fugisse da literatura, o tempo encaixou os ensinamentos de uma família que se entregava à cultura com intensidade. Também é sugerido que a mãe virou suas opiniões políticas para a esquerda.

A elegância e o perfeito senso de estilo de Oz estão por todo lado. Aqui vou dizer, ali omitir.

O final, que não contarei, é de extrema simplicidade, é comovente, curto e exato. Oz escolhe um lamento, um apelo, um rogo inútil e impotente que torna complicada a leitura das últimas linhas com aquelas letras dançando enquanto a gente tenta se controlar.

De Amor e Trevas é grande literatura. Recomendo fortemente.

Livro comprado na Bamboletras.

Amós Oz
Amós Oz

Amós Oz disse:

Amós Oz disse:

Nunca vi um fanático com senso de humor ou então alguém com senso de humor se tornar um fanático. Humor é a habilidade de rirmos de nós mesmos, e, quando podemos fazer isso, desenvolvemos uma noção de relativismo. Este é um antídoto maravilhoso contra o fanatismo e, se eu pudesse, colocaria senso de humor e curiosidade numa cápsula, distribuiria em todos os lugares para criar imunidade ao fanatismo, e me candidataria ao Nobel da Paz.

amos-oz

Estrela Distante, de Roberto Bolãno

Por Charlles Campos

O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?

Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.

Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.

E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.

Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.

Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).

A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.

Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.

Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.

Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.

Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser uma serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.

Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.

Grafite de Roberto Bolaño numa rua de Buenos Aires