Publicado na Folha em 13 de abril de 2008
Tradução de Paulo Migliacci
Mais aclamado regente do século XX, Herbert von Karajan, que estaria fazendo 100 anos, esterilizou a imagem da música erudita para as futuras gerações, diz crítico inglês.
NORMAN LEBRECHT
Quando acordo ao som da música de Herbert von Karajan [1908-89] no rádio, esfrego os olhos para ter certeza de que Mao Tse-tung não continua no poder e a União Soviética deixou mesmo de ser uma potência mundial.
Houve um momento, definido pela forte presença de ditaduras, no qual Karajan parecia ser o fundo musical inevitável. Nos anos 70 e 80, ele era onipresente, uma presença cultural imponente cercada por admiradores nos mais altos postos. Afinal, era tudo que um político decaído aspirava ser: ultra-elegante e onipotente.
O centenário de seu nascimento, no último dia 5, está sendo celebrado por um dilúvio de produtos de uma indústria musical que ele conduziu à prosperidade e depois lançou à quase ruína.
Se o mercado de música clássica convencional se estreitou imensamente nos cinco últimos anos, isso é conseqüência inevitável dos excessos da era Karajan. Se a própria música clássica é vista por muitos (injustamente) como elitista, antiquada e retrospectiva, deve-se agradecer a Herbert von Karajan por tê-la transformado em uma forma de entretenimento seguro, empresarial, apresentado em festivais cujos preços são proibitivos ao espectador comum.
Trata-se de afirmações que mal requerem prova, mas continuam a existir nostálgicos que defendem a “grandeza” de Karajan em certas seções da imprensa.
O termo não significa nada em termos críticos, e até mesmo alguém um dia ousado como Simon Rattle se sente obrigado, à frente da Filarmônica de Berlim, que por tanto tempo foi dirigida por Karajan, a homenagear o velho tirano no ano de seu centenário. Quem sabe reviveremos também o culto a Brejnev [1906-82, presidente da União Soviética].
Karajan, como diretor musical e negociante escuso, dominou o cenário em Berlim e Salzburgo dos anos 1950 em diante, pagando cachês extravagantes a seus amigos e usando os ensaios de sua orquestra, cujos salários eram pagos pelo Estado, como sessões de gravação de discos comerciais.
Karajan enriqueceu de forma desmedida e levou muitos de seus músicos à prosperidade com ele, deixando uma fortuna avaliada em US$ 500 milhões [R$ 844 milhões], estruturada de maneira a evitar impostos, e uma pilha de 900 discos.
Ele manipulou a indústria fonográfica, dividindo para conquistar, sempre trabalhando com dois dos grandes selos e cortejando um terceiro. Em dado momento, ele respondia por um terço da receita da Deutsche Grammophon (DG), a maior gravadora mundial de música clássica.
Beleza artificial
Quase tudo o que regia soava muito liso, mais ou menos como camisetas de algodão que passaram por um banho de amaciante de roupa.
Não importa que estivesse executando Bach ou Bruckner, “Rigoletto” [de Verdi] ou uma rapsódia, a música acompanhava uma linha inconsútil de beleza artificial que devia menos à inventividade do compositor do que à intenção do regente de manufaturar um produto reconhecível.
Criado em Salzburgo depois da Primeira Guerra Mundial -uma cidadezinha que se tornou a segunda maior do Estado austríaco encolhido pela derrota-, Karajan aprendeu os perigos de viver em posição de fraqueza. Quando Hitler subiu ao poder, em 1933, ele aderiu ao Partido Nazista não só uma como duas vezes, e foi recompensando com um posto oficial em Aachen -o mais jovem diretor musical do Reich.
Não demorou para que começasse a ser elogiado pelos jornais controlados por Goebbels como “Das Wunder Karajan” (o milagre Karajan), em contraste com Wilhelm Furtwängler, maestro que não merecia a confiança política do regime. Karajan aprendeu com Goebbels como dividir para governar, entre outras artes obscuras da política.
Exibiu seus talentos sombrios na Paris e na Amsterdã ocupadas, servindo para todos os efeitos como o menino de ouro do nazismo.
Industriais ricos
Depois da guerra, foi suspenso de apresentações públicas enquanto suas conexões com o nazismo eram investigadas, mas um executivo da gravadora EMI, Walter Legge, o levou a Londres para conduzir a orquestra Philharmonia, composta por soldados britânicos recentemente desmobilizados.
O relacionamento explosivo entre maestro e orquestra duraria uma década, deixaria Karajan bem treinado nas artimanhas políticas e estimularia sua propensão ao conflito.
Depois da morte de Furtwängler, em 1954, ele se tornou maestro perpétuo em Berlim e usou a destruída capital do Reich como ponto de partida para sua expansão imperial. O festival de sua Salzburgo natal foi transformado em um evento quadrimestral, freqüentado por industriais ricos vestindo smokings, aspirantes a senhores do universo.
Conservadorismo
Nenhum músico da história procurou o poder que Karajan obteve com sua pompa, um poder que se estendeu, por emulação ou submissão, a muitas salas de concertos e festivais do planeta. Reacionário por natureza, ele sempre se manteve fiel ao romantismo convencional, excluindo a música atonal e os estilos de execução posteriores.
Christoph von Dohnányi chegou a acusá-lo de destruir a arte da regência na Alemanha, ao impor à disciplina, de modo tão vigoroso, seu gosto estreito.
Nikolaus Harnoncourt, violoncelista na orquestra de Karajan em Viena, foi excluído de Berlim e Salzburgo depois que começou a reger grupos que utilizavam instrumentos de época, de uma maneira que contrariava a ortodoxia proposta e imposta por Karajan.
A cada vez que gravava um ciclo de Beethoven -e o fez por cinco vezes-, reduzia a chance de interpretações alternativas. Sua hegemonia era autocrática e não admitia oposição.
Quando os músicos de Berlim se recusaram a admitir a clarinetista Sabine Meyer na orquestra, porque não queriam tocar com uma mulher, ele se transferiu para a orquestra rival, a Filarmônica de Viena.
Insatisfeito com a DG, ele estava conspirando para se transferir à Sony na época em que morreu. Karajan só era leal a si mesmo. Seu amor à música estava confinado à maneira como ele a executava.
Imenso charme
O poder dele, ao contrário do que acontecia no caso de Brejnev, no entanto, se baseava em um imenso charme. Muitos regentes que foram vilipendiados por Karajan durante anos, como Daniel Barenboim, se sentiram tentados a esquecer as mágoas em anos posteriores, quando o soberbo maestro os abordou de forma lisonjeira.
Na única ocasião em que me convidou para uma conversa, em 1985, decidi recusar a entrevista, preferindo observá-lo à distância, como a maioria dos músicos fazia. Ele era capaz de gentilezas pessoais tocantes em benefício de seus músicos, mas também de crueldades injustificadas, como a de cortar completamente o contato com um velho amigo sem que houvesse motivo aparente.
O passado nazista de Karajan não é incidental, ainda que ele não estivesse envolvido na promoção de holocaustos. Não há suspeita de que tenha cometido crimes raciais, e sua carreira no Reich encontrou percalços depois de 1942, quando se casou com uma rica herdeira que tinha ancestrais judeus.
O que ele adotou do nazismo foi um conjunto de valores que passou a aplicar à inocente e ineficiente indústria da música de maneira impiedosa e incansável. Se há uma lição que ele aprendeu com os nazistas é a da superioridade da música alemã e o imperativo do domínio mundial. Ele demonstrou que música era, acima de tudo, uma questão de poder.
Muita gente se deixou impressionar, e essa admiração continua. Alguns, como eu, viam sua atitude como desfavorável à música. Para mim sempre foi difícil ouvir Karajan no rádio com isenção.
A “celebração” de seu centenário é uma tentativa final da indústria fonográfica de extrair lucros de um leão morto. Algumas das celebrações são bancadas por subsídios ocultos oferecidos pelo riquíssimo e muito bem organizado espólio do maestro.
Mas é um tanto surpreendente descobrir que a Philharmonia, que nunca o aceitou integralmente, tenha decidido executar um tributo a Karajan.
Um aspecto do debate sobre Karajan, proposto por Dominic Lawson, é se “deveríamos aderir à celebração da vida de um ex-nazista” -e de um homem que jamais renegou suas afiliações passadas. Lawson ampliou a questão para discutir se um mau homem pode fazer boa arte e como devemos nos relacionar com a arte proveniente de fontes maculadas.
Essa questão, relevante quanto a Wagner, importa pouco no caso de Karajan, que jamais criou arte original. Determinar se Herbert von Karajan era um bom ou mau homem é irrelevante. Foi um brilhante organizador, capaz de moldar uma orquestra para executar seu som pessoal, uma capacidade que ele explorou ao extremo.
Karajan infligiu seu ego ao mundo da música clássica de forma que esmagou a independência e a criatividade e prejudicou a imagem da música diante das futuras gerações. Não é o mau homem que deveríamos deplorar, mas o legado reacionário e de exclusão que está sendo “celebrado”.
Para os amantes da música, não há muito a comemorar.
Quando a festa do centenário acabar, a cortina descerá para sempre sobre uma vida reprovável, carente de idéias novas e que não afirmou nenhum valor humano digno. Karajan está morto, e a música passa muito melhor sem ele.
Karajan é culpado de distorções e excessos. Teve conduta questionável em vários episódios. Mas, mesmo sendo um melômano de terceira categoria que se atrapalha para achar o dó no piano, não consigo concordar com vários dos argumentos e afirmações de Lebrecht.
Qual o vínculo lógico necessário entre gravar um ciclo de obras e reduzir a possibilidade de interpretações divergentes? Se a acusação fosse Karajan vedar que a DG gravasse ciclos similares com outros regentes, eu aceitaria a conclusão. Mas não é isso que o texto diz. O mero fato de gravá-las em nada impede que outros o façam de forma diversa.
Não reger música atonal não faz de um regente um crápula. Nenhum intérprete é obrigado a transitar do Renascimento ao Pós-Modernismo. Aliás, na maioria dos casos é melhor que nem tentem. Não vejo como limitar seu repertório faz de você um esterilizador de música.
Atribuir a Karajan o declínio do mercado da música clássica no início deste século é deplorável. O autor não explica como um sujeito morto em 1989 estava determinado o declínio de um mercado global quase vinte anos depois, em plena revolução do MP3. Quer dizer que a monopolização de gravadoras e o colapso do CD foram culpa do Karajan? Quem sabe a gente aproveita e também culpa a criatura pela eleição do Bolsonaro? Acho até, tocando ao contrário a 5ª de Beethoven regida pelo HvK, dá para ouvir o Olavo de Carvalho.
Norman Lebrecht lembra muito alguns setores da direita brasileira, que ficam horrorizados com corruptos, mas não com corruptores. Karajan pode ter sido o rei da autopromoção, mas só comandou orquestras e gravou 900 discos porque executivos de gravadores e administradores musicais o contrataram. É mais ou menos como dizer que a Anitta é a única culpada pelo sucesso que faz – e esquecer, por exemplo, que o portal UOL publica diariamente pelo menos uma matéria sobre esse ser rebolativo.
Não defendo Karajan. Sei que sua biografia tem várias páginas negras. Mas me incomoda demais quando as críticas são feitas por meio de afirmações categóricas sem demonstrar relação de causa e consequência.
Eu também não achei o texto bem fechado. Talvez a raiva dele a HvK nasça no mesmo lugar que a minha nasce: nos ouvidos.
Penso que HvK é tão ruim e prejudicial à música que GOSTARIA que ele fosse um nazista pedófilo racista comedor de criancinhas gremista. Mas parece que não era…
— Você estava usando um violoncelo de época no ensaio de ontem, Herr Harnoncourt.
— Não, main Führer! Era um contemporâneo.
— Mentira. Olha aqui.
Karajan chama o VAR. O vídeo mostra um violoncelo do ano passado.
— Viu? É um instrumento antigo. Você está expulso.
— Como assim antigo? É do ano passado!
— Eu interpreto como um instrumento antigo. Fora. Já escolhi uma moça loira para o seu lugar.
Ao que parece, Karajan era mesmo gremista.
Gremista, gremista, tô falando!