Um abuso (ou quase)

Meu pai era um dentista de conversa leve e cômica. Mesmo quando se irritava era leve. Jamais sairia falando sobre ABUSO. E ele era engraçado. Mesmo sério era engraçado. Quando minha irmã, aos 15 anos, disse que estava namorando, ele respondeu “Mas é platônico, não?”. Isso tornou-se uma clássica piada familiar. Mas eu estava dizendo que ele tangenciava e evitava os papos mais difíceis e que por isso não falaria sobre abuso.

Porém, na noite em que eu — tinha uns 8 anos (1965) — estava passeando com o cachorro e depois saí numa fuga a toda velocidade porque um sujeito sentado numa mesa de bar primeiro puxou conversa, depois acariciou minhas pernas e pegou na minha mão, algo me disse que devia falar com ele. Entrei em casa ofegante e contei o acontecido. Ele me olhou com a maior calma e perguntou:

— Foi só isso?
— Foi.
— Mão nas pernas e depois na tua mão?
— Sim.
— Tu reconheceria o sujeito?
— Reconheceria.
— Então, se a gente cruzar com ele, me mostra.
— Mostro.

E ele me olhou fixamente.

— E nunca mais chega perto ou fala com esse cara.

Meses depois, eu mostrei o cidadão para o pai.

— Mas ele é meu cliente! Incrível.

Um tempo depois ele me disse que o tal cliente tinha marcado hora.

— Vou falar com ele.

Com o sujeito de boca aberta, meu pai disse que tinha um filho que levava nosso cãozinho para fazer xixi na rua, às vezes à noite, que eu devia passar perto do bar tal. E que…

— Essa cárie está muito infectada. Acho que vai doer. Muito. Demais.

Meu pai ria dizendo que o sujeito suava e suava. E que sumiu depois desta consulta.

(Só eu, ele e minha mãe soubemos dessa história. Nada de escândalos).

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