O Mapeador de Ausências, de Mia Couto

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Este é o segundo livro de minha biblioteca que vem direto de Moçambique. Ambos foram presentes do amigo e cliente da Bamboletras Jonas Fernando Pohlmann, que mora na capital Maputo. O primeiro foi este. E, se o primeiro foi ótimo, não sei nem bem o que dizer desta, sem exagero, obra-prima de Mia Couto.

Quando recebi o volume, pensei que se tratasse de um livro de memórias. Bem, ele é, mas de memórias ficcionais trabalhadas dentro de um romance de grande fôlego.

(…) tenho demasiada história, sofro de um excesso de passado. Quero livrar-me desse tempo que não me deixa existir.
Mia Couto

Mia Couto (1955) é António Emílio Leite Couto. A razão de tal pseudônimo é bem simples e curiosa – desde criança, Couto amava os gatos. Foi com tal pseudônimo que o autor construiu uma extensa obra que inclui poesia, contos, romances e crônicas.

Podemos dizer que O Mapeador de Ausências são memórias ficcionais trabalhadas dentro de um romance de grande fôlego. A ação decorre na Moçambique de antes e de depois da descolonização e conta a história de Diogo Santiago, escritor e poeta de Maputo, que viaja após muitos anos à sua terra natal, a cidade da Beira, às vésperas da chegada do ciclone Idai, que efetivamente arrasou a cidade em 2019. Diogo vai até Beira com a finalidade de receber uma homenagem, mas também pretende descobrir detalhes acerca da história de seu pai, também poeta, que morrera na cidade ainda nos tempos coloniais. Trata-se de um regresso à juventude de Diogo.

A trama de O Mapeador de Ausências não se completa até a última página. À medida que vamos lendo o livro, as lacunas que Mia deixa abertas vão sendo preenchidas com conteúdos muitas vezes inesperados.

Na Beira, Diogo conhece Liana, que lhe repassa um verdadeiro dossiê da PIDE (a terrível Polícia Internacional e de Defesa do Estado, espécie de DOPS português) a respeito das atividades “subversivas” do pai de Diogo. Mia Couto vai empilhando documentos — inacreditáveis, tal a qualidade de sua prosa — e narrativas que vão e voltam no tempo.

Diogo é branco, filho de Adriano Santiago – que, além de poeta, foi jornalista — e de Virgínia, uma daquelas mães cheias de amor e senso prático. Do pai, ele recorda as duas viagens a Inhaminga — local de inacreditáveis massacres cometidos pela tropa colonial –, a perseguição e prisão pela PIDE e, sobretudo o amor pela poesia. Na Beira, fica sabendo da misteriosa Ermelinda (ou Almalinda), quem sabe uma das (muitas) amantes do pai, reencontra o criado Benedito (agora dirigente da FRELIMO, Frente de Libertação de Moçambique), o inspetor da PIDE Óscar Campos, a triste Camila Sarmento, o farmacêutico Natalino Fernandes e a poderosa Maniara.

“É uma homenagem à cidade da Beira, que é mãe desta história”, disse Mia. “É um romance que se desenvolve a partir da minha memória sobre minha cidade”. O Mapeador mostra um poeta que vai à procura da sua adolescência e percebe que aquilo que lhe é presente nasce da ausência de muitos. “A vida aqui é outra guerra. A gente chega a ter vergonha de ser um sobrevivente”, diz um coveiro no livro.

No cenário, há não apenas a chegada do ciclone que destruiu Beira, mas a destruição de Inhaminga, cidade que foi praticamente riscada do mapa durante a guerra civil moçambicana. As descrições de Mia sobre o que restou da cidade são soberbas.

Seja pela violência dos colonizadores, seja pelos desastres naturais — tanta gente morreu em Moçambique e sabemos tão pouco a respeito –, este melancólico livro de Mia Couto está plenamente justificado. Tudo é catalisado pela arte com que Mia Couto conta sua excelente trama. Moçambique é a morte onipresente, e também a alegria, a saudade, deus, o mal, o destino.

Recomendo fortemente.

Meu exemplar tem a assinatura de Mia Couto.

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