Claro, eu comprei este livro pelo simples motivo de Linn Ullmann ser filha de Liv Ullmann e Ingmar Bergman. Lançado pela Cia das Letras em abril de 2009, o livro vendeu minimamente no Brasil e só o encontrei em sebos. Pois fiquei muito feliz em lê-lo. É ótimo.
Vamos com um mínimo de spoilers. Erika, Laura e Molly são três meias-irmãs, filhas do mesmo pai com 3 diferentes mulheres. O pai, Isak Lovenstad, é um velho e famoso médico aposentado que está vivendo na pequena ilha de Hammarsö. Erika deseja que as irmãs façam uma visita conjunta ao pai.
(Bem, Ingmar Bergman passou sua velhice na ilha de Fårö e teve nove filhos com seis mulheres diferentes. Ullmann é a mais jovem, a última filha do grande homem. E olha, Linn sobrevive bem a isto. A casa de Bergman na ilha chamava-se Hammars, nome muito parecido com a ilha do livro de Linn).
O foco do livro são seus flashbacks, focando-se mais exatamente no quente verão de 1979, quando Erika estava fazendo 14 anos, Laura, 12, e Molly, 5. Elas tinham uma turma de garotos que circulava pela ilha. Um deles era desprezado pelos outros, fato bem conhecido de quem participou de turmas de bairro infantis. Excluído da turma, Ragnar refugiava-se em uma cabana secreta onde também se encontrava com Erika. Nascidos no mesmo dia e ano, ninguém sabia dos beijos e das intimidades entre eles. E era na cabana que eles pretendiam comemorar seu décimo quarto aniversário em 1979. Vinte e cinco anos mais tarde, Erika relembra os acontecimentos daquela noite de verão e decide voltar com as irmãs à ilha onde nunca mais puseram os pés.
O romance começa com Erika dirigindo nervosamente em meio a uma tempestade de neve até a ilha sueca de Hammarsö para visitar o pai de 84 anos. O velho vive ameaçando cometer suicídio e Erika convoca suas duas meias-irmãs para que possam ver como ele está.
A longa viagem de carro na neve gera lembranças em Erika: em 1972, as meninas começaram a passar o verão com o pai em Hammarsö. A Marion de cabelos negros é a abelha-rainha que dirige, com olhares malévolos, qual membro do grupo de adolescentes locais pode tomar sol ao seu lado ou quem terá o privilégio de emprestar-lhe uma blusa. Como disse, na periferia desse grupo está Ragnar, um menino que é o melhor amigo de Erika. Erika e Ragnar compartilham um linguagem secreta e um esconderijo numa cabana da floresta. Mas quando eles completam 14 anos, Erika o trai para ganhar espaço com Marion e esconder a “vergonha” de sua atração pelo vetado Ragnar, dando início a um episódio que faz O Senhor das Moscas parecer contido.
O Senhor das Moscas, de William Golding, gerou décadas de discussões sobre a maldade das crianças, principalmente dos meninos. Normalmente, as meninas são suas maiores vítimas. Linn inverte tudo. Marion, a adolescente-chefe do livro, comporta-se bastante mal — não vou esquecer a cena magistralmente assustadora que termina quando ela “joga o vibrador no mar”.
A estrutura em mosaico do romance, uma montagem de vários pontos de vista a partir de vários pontos no tempo, cria ecos desse acontecimento horrível no presente. A dolorosa gravidez de Erika adulta com seu filho parece uma penitência por sua traição. A preocupação de Laura com a reação de sua comunidade a um suspeito de pedofilia revela seu arrependimento sobre a violência contra Ragnar 25 anos antes.
A autora é perfeita. Se o cerne de Uma Criança Abençoada é um crime, a autora parece não ter certeza de quem é o culpado. A narradora não aponta o dedo para ninguém. Ullmann parece até ter certo amor pelos culpados. Sim, é um livro sem compromissos morais. De quem é a culpa quando as meninas se comportam mal? Ullmann levanta a questão, mas não a responde.
E vale a pena saber do mais recente livro de Linn Ullmann, publicado em 2020.