Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan

Um livrinho estupendo. Pelo nome, não parece, mas Nurit Bensusan é brasileira, bióloga, e tem alguns livros publicados e premiados — sempre sobre questões socioambientais. Este é seu primeiro livro de ficção e ele não trata diretamente de problemas ligados à biologia ou ao ambiente.

No Alto de Pinheiros — bairro da elite paulistana –, um sem-teto chamado Raimundo vive solitário numa praça próxima a uma sinagoga e a edifícios residenciais. Como não incomoda, mora na praça também sem ser importunado. Mas um dia ele pede para que o rabino distribua alimentos para os pobres. A proposta é aceita. É um estranho pedido de quem não fala com quase ninguém, parece viver de ar e que passa seus dias escrevendo em cadernos e mais cadernos. A aceitação por parte do rabino também é inesperada. A partir deste ponto, a ação bondosa vira problema, pois os habitantes do bairro nobre não veem aquilo com bons olhos.

É esquisita aquela gente que vem pegar comida, eles sujam tudo e, mesmo que o rabino contrate pessoas para fazer a limpeza diária, não adianta, os moradores querem o fim daquilo. Ou seja, a fila de famintos tem que ser retirada dali. Mesmo as domésticas e diaristas acham que aquilo não é para aquela região. Ou seja, o preconceito de classe é algo mais complexo e enraizado do que parece. Acionado, o poder público, representado pela subprefeitura, manda acabar com a distribuição de alimentos sem maiores explicações. Claro, no Brasil há um acordo tácito de tratar de modo diferente as pessoas em razão de sua situação econômica e acesso a bens de serviço. As pessoas de baixa renda “não devem” ter acesso aos mesmos espaços daquelas que são das “classes mais altas”, os pobres devem viver em isolamento social, não precisam ser vistos. O livro também explora o rabo preso de religiosos e alguns dos moradores dos elegantes edifícios. E mais não conto…

Com quantos rabinos usa a primeira pessoa do singular, porém com muitas vozes solistas, à exceção do personagem principal, que só escreve em seus cadernos e não tem revelados seus diálogos com os rabinos — um verdadeiro achado na construção do clima. A polifonia é geral, a dissonância idem. O curioso é que poucos gritam, tudo é um sufoco surdo, é como se estivéssemos assistindo um bando de mímicos em ações não tão cômicas assim. Bensusan rege seu coral com um grande virtuosismo, fazendo com que a ficção efetivamente arranhe a realidade. E, curioso, há espaço para humor no livro.

Recomendo muito.

Nurit Bensusan: escrevendo como Raimundo

1 comment / Add your comment below

  1. Acabei de ler agora a pouco, li com calma saboreando cada palavra desse universo que ela nos apresenta. Cada ferida escondida, cada dor, cada lembrança. Recomendo fortemente um mergulho nesse mundo de ficção tão real.

Deixe uma resposta