Para um amante da música, dificilmente a literatura brasileira oferecerá um banquete melhor servido do que este Leopold. Li o livro em voz alta para minha mulher Elena e Assis Brasil quase destruiu minha garganta com seus longos capítulos, parágrafos e frases, prova de nosso envolvimento com a narrativa. Era difícil interromper a leitura. AB ajustou sua prosa para que o discurso transmitisse uma ideia crível e realista do pensamento de Leopold Mozart durante toda uma viagem de volta a Salzburg após visitar seu filho em Viena. É um longo fluxo de consciência raramente interrompido e sem as ousadias formais que costumam acompanhar este gênero de narrativa. No começo da leitura, há também a surpresa com a fala em primeira pessoa de uma figura histórica pertencente a uma cultura alienígena.
Bem, se você não sabe, o filho de Leopold chamava-se apenas Wolfgang Amadeus Mozart e, se você não sabe quem é, talvez não devesse estar lendo este texto.
Durante a leitura, pensava que AB fizera uma pesquisa de mais ou menos uma década. Porém, o autor afirma no posfácio que trabalhou apenas 4 anos no projeto, mas que W. A. Mozart era (é) uma paixão antiquíssima e que “caso me candidatasse nesses concursos de televisão que aferem o conhecimento da pessoa acerca de qualquer assunto, eu teria ficado milionário respondendo sobre a vida e obra de Wolfgang Amadeus Mozart.” Ou seja, considerando a parte Mozart (a partir de agora, quando escrever Mozart, estarei me referindo a Wolfgang Amadeus), talvez tenha sido uma pesquisa informal de toda uma vida. E a citada paixão deve apontar também que Leopold seja o opus magnum do autor. E é.
1785. Mozart tem 29 anos, Leopold tem 66 e viaja numa diligência acompanhado de um casal adormecido. Atribui-lhes nomes e, sussurrando ou não — para não acordá-los — passa a narrar sua vida de pai de um gênio. A história se desdobra como nossos pensamentos, a coisa vai e volta, às vezes sem direção — artifício perfeito para quem conta uma história para ninguém, para quem conta uma viagem interior durante uma viagem –, às vezes de forma atônita com o talento do próprio filho.
Leopold demonstra ser uma pessoa autoritária, centralizadora e difícil, que desejava e procurava impor aquilo que via como melhor para seu Mozart: uma postura mais pragmática a fim de que este alcançasse a segurança financeira, uma esposa adequada e, sob sua orientação, a chegada ao Olimpo de melhor compositor de todos os tempos. Mas então Haydn, o grande Haydn, derruba a fantasia do pai ao dizer que Mozart era um compositor melhor do que ele próprio e o maior da Europa.
E o mundo de Leopold vai ao chão, pois o que ele teria a ensinar a seu filho se Haydn dissera aquilo? E, se Mozart era melhor do que Haydn, o que sobraria para Leopold ensinar? Ele se vê esvaziado. Nos últimos tempos, vivendo em Salzburgo afastado do filho em Viena, Leopold mandava-lhe cartas com instruções e exercícios… Mas claro que Mozart fazia o que bem entendia há muito tempo. E Leopold finalmente vê-se frente a si mesmo, como alguém que não escreveu uma obra digna de imortalidade, apenas um Método de Violino. Como alguém consciente de que, no futuro, o nome Mozart seria sempre utilizado para designar Wolfgang Amadeus e que ele sempre precisaria de um Leopold antes para saber de quem se tratava.
Neste jogo entre ser pai, mentor, professor e também compositor é que Leopold tem que se virar. Só que sendo um catolicão com aspirações iluministas na pequena Salzburgo, um empregado do arcebispo, a coisa não é tão simples. E esta é uma das universalidades do livro. Muitos de nós somos pais e mães que se tornam perfeitamente inúteis para os filhos. E a presença próxima de um imortal parece acentuar a impressão de finitude do pai e também da irmã… Mas tergiverso. Termino dizendo que o final do livro é muito bonito.
Saibam que Assis Brasil chegou lá. Escreveu um tremendo romance, uma consistente obra de arte que aponta para as intercertezas mais importantes da vida — envolvendo amor, arte, deus e morte.
Recomendo fortemente a leitura.
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Só uma coisa, meu caro Luiz Antonio, sou bachiano de quatro costados e não gostei muito desse negócio de ficar repetindo que o maior de todos é outro, tá?
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Caríssimo, muito obrigado pela bela resenha, que me mandou meu editor, que vive em Berlim. Ele ficou empolgado, e eu, fascinado pelo tom do leitor competente e que demonstra saber bem do que fala. Não foi uma decisão fácil, como explico no “Pósfácio para ler antes”. Muitas dúvidas, muitas angústias, sendo a principal, a síndrome do impostor. Sua resenha será traduzida e mandada para o editor da Sujet Verlag, de Bremen, que publicará o “Leopold” no ano que vem, com a tradução do Kurt Scharf, que foi por muito anos o diretor do Goethe-Institut aqui em POA.
MUITO OBRIGADO.
Quanto a Bach… bueno, estamos falando de meros músicos. terrestres, e aqui repito uma história muito germânica, que eu aceito e divulgo:
Mozart morreu, foi para o céu. Deus o convidou para ser o compositor celeste, ao que Mozart respondeu que ficava muito honrado, mas decerto haveria no céu alguém mais qualificado para a função, Bach, por exemplo… Deus disse: mas eu sou Bach…
Comprado! muito obrigado pela dica!