Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra

Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra

Eu lia pouco durante a infância, muito pouco. Queria era jogar futebol. Lia revistinhas da Disney nos dias de chuva e olhe lá. Observava minha irmã parada, totalmente concentrada com um livro aberto, mas não tinha vontade de fazer o mesmo. Quem me acordou para a literatura foi Erico Verissimo com seu O Tempo e o Vento. Só depois dos 15 ou 16 anos, passei a avaliar se era melhor permanecer em casa ou me divertir com os amigos. E normalmente ficava em casa enfiado num livro. Meus pais achavam que eu tinha que sair mais, ver pessoas, só que eu preferia ficar lendo. Por ter começado tarde, meu conhecimento de literatura infanto-juvenil é mínimo. Comecei pelos livros dos adultos, por aqueles que minha irmã e pais valorizavam. Começo esta resenha assim porque não sei como classificar este Kafka e a boneca viajante. A estrutura do livro é de uma fábula. O tema é a infância, mas também é a elaboração de uma perda. Por outro lado, não podemos esquecer que há Kafka, já muito doente, levando a sério o fato de uma menina ter perdido sua boneca. Vou tentar explicar melhor.

A história entre Franz Kafka e a menina Elsi é um episódio tocante e pouco conhecido da vida do tcheco. Esse evento ocorreu nos últimos anos de vida de Kafka, quando ele já estava gravemente doente (sofria de tuberculose) e vivia em Berlim, em 1923-1924. Kafka, durante seus passeios por um parque em Berlim, viu uma menina chorando, muito triste pela perda de sua boneca preferida. Seu nome era Elsi e estava inconsolável. Kafka decidiu fazer alguma coisa. Inventou uma história, disse que a boneca não tinha desaparecido, mas viajado. Ele explicou que a boneca lhe enviara uma carta e que sua profissão a de “carteiro das bonecas”. No dia seguinte, ele traria uma carta da boneca Brígida para Elsi. E durante três semanas, Kafka escreveu cartas diárias para Elsi, supostamente, é claro, enviadas pela boneca. Esforçou-se muito para escrevê-las sem que Elsi desconfiasse de nada. Nessas cartas, ele descrevia as aventuras da boneca em suas viagens pelo mundo, sempre em tom poético. Essas cartas não apenas confortaram a menina, mas também a fizeram acreditar que sua boneca estava vivendo uma vida emocionante e cheia de descobertas.

Esse episódio revela alguma coisa sobre Kafka. Apesar de sua obra literária estar associada ao absurdo, à angústia e ao pessimismo, ele demonstrou empatia e capacidade de se conectar com o mundo de uma criança. E tentou transformar a dor de Elsi em uma experiência feliz. Porém, as cartas que Kafka escreveu para Elsi não foram preservadas, e o episódio só foi conhecido graças ao relato de Dora Diamant, companheira de Kafka na época. Houve muitas tentativas de localizar Elsi e as cartas, mas nada foi encontrado. Houve um historiador que passou décadas atrás dos textos.

Kafka e a Boneca Viajante (no original, Kafka y la muñeca viajera) reconta essa história comovente entre o escritor e a menina Elsi. É uma ficção inspirada pelo episódio real. Claro que o livro é enormemente emocionante e mesmo este calejado leitor teve vontade de se desmanchar lendo o relato.  Há uma sensação de estranheza — os excertos das cartas não são nada Kafka! –, porém como ele escreveria para uma criança? Alguém sabe? De forma esperta, Sierra i Fabra tenta capturar a essência do gesto de Kafka, destacando a empatia e a criatividade para transformar a dor de uma criança em uma experiência mágica. E também sobre o problema de um adulto que precisa parar de escrever diariamente para uma criança e voltar a sua obra. O livro é uma homenagem ao poder consolador da literatura. É como uma janela para um momento íntimo.

Creio que é um livro que visa um público mais amplo, incluindo jovens leitores. O autor usa uma linguagem simples e poética — algumas vezes verbosa –, com flechadas certeiras e piegas que me atingiram sem piedade. Claro que me senti injustamente traído ao ver meu sombrio e pessimista autor — também muitas vezes cômico, na minha opinião de leitor — ser tratado como um ser cheio de bondade. AMO Franz Kafka de uma forma que só eu sei. AMO aquele mais obscuro Kafka. Mas não há porque pensar que o Kafka dos livros que conhecemos não fosse capaz de um ato de consolo como o relatado. Sensibilidade não lhe faltava.

Jorvi Sierra i Fabra (1947) é um conhecido escritor infanto-juvenil catalão, mas, sabem?, este livro não me pareceu ser um típico exemplar do gênero.

Recomendo!

Jordi Sierra i Fabra

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXIV)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXIV)

Ele entrou atrás de um livro para a filha. A menina precisava de “O Monstro do Guaíba”, um bom infanto-juvenil que poderia ser a respeito do prefeito Melo, mas não é.

Tenho a mania de perguntar o nome antes de atender.

— Meu nome é Ismael.

— Bah, que legal!

— Por quê? Por causa da Bíblia? Isso aqui era uma igreja…

— Não, nem sabia da Bíblia. Tem um Ismael também lá?

— Tem, é filho de Abraão, que tinha 86 anos quando ele nasceu.

— Nossa, os caras da Bíblia tinham uma vida sexual bem prolongada.

(risadas)

— Mas de que Ismael tu está falando?

— Do narrador de Moby Dick.

— Não brinca que o narrador do Moby Dick se chama Ismael!

— Sim. E a primeira frase do livro é muito famosa: “Call me Ishmael”. O livro é narrado na primeira pessoa.

— Bahhh… Só conhecia a baleia e o Capitão Ahab. E só de ouvir falar. Vou ter que ler Moby Dick.

— Tenho também um livro sobre Abraão…

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Operação Impensável, de Vanessa Barbara

Operação Impensável, de Vanessa Barbara

O título faz referência a um plano militar secreto (e maluco) de Winston Churchill concebido ao final da Segunda Guerra Mundial. Churchill era um ser bastante raro: um conservador anticomunista que sabia escrever e se expressar com brilho. Ele queria que os aliados ocidentais combatessem a ocupação soviética da Europa Oriental. O objetivo era impor a vontade dos Estados Unidos e do Império Britânico à União Soviética. Foi o início da Guerra Fria. Essa malfadada ideia sugere o tom do livro: uma história onde o impensável e o absurdo acabam com qualquer lucidez remanescente, gerando uma superfetação de mentiras. (Superfetação? Vá ao dicionário, ué).

Importante dizer  que este é o livro que conta, nos mínimos detalhes, mas como se fosse ficção, o rumoroso caso Vanessa Barbara versus André Conti e seu Conselho Consultivo de 14 machos.

Como Vanessa Barbara costuma fazer, há uma mistura entre a “ficção” que é contada — a ascensão e debacle de um caso amoroso — com casos políticos da Segunda Guerra e críticas resumidíssimas dos filmes vistos pelo casal. Tudo isso caminha de forma paralela, regido pelo ritmo intenso de Vanessa. O texto é ultra fragmentado, com seções curtas e constantes mudanças temáticas. Difícil de saber que virá depois, se fatos políticos, o dia a dia, e-mails, citações, notas esparsas, sinopses de filmes, etc. A própria diagramação do livro contribui para esta impressão de fragmentação. Há mudanças de fontes e vazios. Para o meu gosto, o trecho da felicidade do casal é longo demais, mas talvez minha sede de sangue estivesse em alta devido às redes sociais. Nesta parte, que poderia chamar de ascensão, há a mais bela crítica que li de Se meu apartamento falasse (The Apartment), de Billy Wilder. Eu quase chorei lendo. Adoro este filme tanto quanto Vanessa.

Mas voltando, a parte do amor é meio longa mesmo. São várias declarações de parte a parte. É como estar ouvindo a Primavera de Vivaldi e ver um pássaro pousar na sua janela. Não dá, é muito açúcar, melhor enxotar logo o bichinho. Claro que isto serve como contraste para o que virá, mas achei exagerado.

Porém, o livro cresce espetacularmente quando a paranoia toma conta de “Lia”. O pior da paranoia é quando ela — que seria impensável para as pessoas equilibradas — se comprova e se amplifica até o inconcebível. Pois o pior é o paranoico ter razão e dar-se conta de que até minimizou as coisas. É para enlouquecer de vez e Vanessa descreve brilhante e acumulativamente o processo de descoberta. A comprovação revela-se pouco a pouco, alterando-se como um caleidoscópio a cada mentira e chegando efetivamente a uma traição inacreditável, definitiva, bem mais grave do que ir a um motel repetidamente com uma conhecida ou um monte delas. Lemos a descrição de uma traição completa, cabal, radical, profissional, dessas que obriga o traído a se esconder no meio da selva e lá desaparecer. Dessas que deveria obrigar o algoz trocar de lugar com a vítima.

Vanessa expõe os fatos, mas não cria um dramalhão mexicano. Em uma das epígrafes da última parte, ela usa Boris Vian: “O humor é a delicadeza do desespero”. Sim, ela o mantém. E ainda conta curiosidades como o fato de a lei de Hong-Kong permitir que uma mulher traída mate seu marido adúltero, desde que o faça com as próprias mãos, ao passo de que o homem pode usar qualquer coisa, até um lança-foguetes. E conhecemos a expressão “névoa do infiel”, cuja definição você conhecerá logo que comprar o livro na Livraria Bamboletras (WhatsApp 51 99255 6885).

A forma pública que o caso tomou nos últimos tempos surpreende, o que não surpreende que ele permaneça ainda na cabeça de “Lia”, apesar do prazo máximo para traumas de 13 anos e meio estabelecido pela sumidade Pedro Dória.

Tá, vai ler o livro e não me enche. Tem na Bamboletras, já disse.

Vanessa Barbara

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Sobre o Oscar de Fernanda Torres e “Ainda estou aqui” (esperando estar errado)

Sobre o Oscar de Fernanda Torres e “Ainda estou aqui” (esperando estar errado)

Fernanda Torres, “Ainda estou aqui” e o cinema brasileiro já são vencedores.

Não acho que esta seja uma frase defensiva ou vazia. Eles já são vencedores mesmo. Fizeram muita gente ver seu ótimo filme. Entraram triunfantes em muitos países. Fernanda realmente arrasa sob qualquer ângulo. É uma super mulher.
Outro fato óbvio é que os resultados do Oscar seguem o gosto norte-americano e normalmente eu discordo dele. Para mim, normalmente, o melhor filme deles nem entra na disputa e vai aparecer aqui lá no segundo semestre, Talvez até num streaming da vida, no meio de um monte de porcarias.

Houve tempo, quando eu era uma espécie de editor de cultura do Sul Vinte Um, em que eu dava meus favoritos ao Oscar nos sete prêmios principais (melhor filme, melhor diretor, melhor filme estrangeiro e as 4 principais premiações de atores). Lia tudo. Em três anos consecutivos — 2013, 2014 e 2015 –, acertei os 18 de 21 vencedores. (Toma essa, Ticiano, em 2014 acertei todinhos!) E não foi por votar em quem eu achava que merecia, mas interpretando o mau gosto e as necessidades dos produtores estadunidenses. Hoje, acompanho tudo sem atenção.

Só vi três filmes entre os concorrentes: “A Garota da Agulha”, “Conclave” e “Ainda estou aqui”, então estou BEM POR FORA, mas algo me diz que Demi Moore é favorita à atriz principal. Uma atriz que antes era considerada bonitinha e bobinha e que atua bem em um papel dramático é uma twice-born! Tem que ganhar! Há algo mais lindo e enternecedor para o mau gosto deles? Talvez, claro, ela mereça por sua atuação, então será mais favorita ainda.

Espero estar errado.

Filme por filme, desconsiderando minha condição geopolítica, achei “A Garota da Agulha” melhor do que o filme do Salles, só que não conheço os outros concorrentes nem de nome. E acharia deveras estranho que “Ainda estou aqui” ganhasse o prêmio de melhor filme geral.

Mas, claro, se Fernanda e o “Ainda estou aqui” levarem os prêmios estarei com a turma do Brasil-sil-sil.

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Rascunho de meu pai

Rascunho de meu pai

Ele não pertencia ao Departamento de Preocupações e frequentemente licenciava-se do de Sustento. Em nossa casa e em todos os lugares onde ia, suas funções estavam mais ligadas ao Ministério do Lazer, Jogos e Cultura, sem esquecer o de Relações Públicas. Não posso imaginar coisa melhor para uma criança do que um pai sempre presente, brincalhão e meio irresponsável. Desde muito pequeno tive contato com os dois lados do Dr. Milton Cardoso Ribeiro — o pai adorável e o apostador. Meu pai e minha mãe eram dentistas numa época em que os bons profissionais desta área faturavam o que todos nós deveríamos faturar sempre. Ganhavam bem. Só que meu pai direcionava seus ganhos para as corridas de cavalos do Jockey Club. Minha mãe ficava maluca com isto, mas para mim, que não conhecia outra família, aquilo era algo tão normal que suas reclamações eram como a música incidental sob a qual vivíamos tranquilamente. E esta trilha não poderia ser mesmo muito tonitruante, pois meu pai era alguém tão doce que era difícil brigar com ele. Mas a verdade é que ele vivia e se divertia, enquanto ela trabalhava para manter nosso barco sobre as águas.

Ele nasceu em 1927 e morreu em 1993, aos 66 anos. Um dia antes de morrer, dera-me um encontrão por trás no supermercado — era uma tradição nossa esbarrarmos um no outro “casualmente”— e comentáramos sobre um monte de coisas. Estava bem, normal, porém, na manhã seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Minha mãe me ligou às 6h da manhã, dizendo teu pai está caído no banheiro. Quando cheguei, ele já tinha morrido.

Sua internet eram os muitos jornais dos quais não se separava e o chatíssimo rádio de pilha que usava para ouvir notícias e a meteorologia. Algumas vezes suas manias tornavam-se incontroláveis, como demonstra naquele caso ocorrido em pleno casamento de minha irmã. Durante a festa, organizada num dos hotéis mais chiques de POA, um amigo da Iracema chegou-se para dizer a ela que um convidado, desinteressado da festa, estava escondido na privada, ouvindo os páreos num radinho de pilha. Minha irmã voltou-se para ele e disse: “É meu pai”.

Não lembro de grandes brigas ou discussões com ele. Lembro é das disputas. Seu perfil de apostador adequava-se perfeitamente a elas. Eu e ele tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligávamos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, supertreinado em descobrir tudo o que de clássico toca. Hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”.

Quando eu tinha menos de 13 anos, nos dedicávamos — sempre antes de dormir — à atividade de imaginar histórias para a música que estivéssemos ouvindo. Lembro dos numerosos tuaregues que acompanhavam o Bolero de Ravel… Dos prelúdios líquidos e cheios de peixes de Chopin… Dos concertos atléticos de Bach… Das histórias de terror que acompanhavam o Concerto Nº 1 para piano e orquestra de Brahms… Desnecessário dizer que meu pai amava a música. Qualquer música. Colocava Mozart, Beethoven, Noel, Chico e Cartola no mesmo patamar e misturava na mesma noite eruditos e populares. Como pianista amador, chegou a compor e a dedicar a valsa Férias de Julho a mim e minha irmã.

Uma vez, quando eu tinha uns 12 anos, estava levando nosso cachorro para fazer suas necessidades na rua quando um vizinho me chamou em sua mesa na calçada de um bar. Era à noite. Educado, parei a seu lado. O sujeito começou a conversar, conversar e acabou pegando minha mão. Fugi na hora.

Contei o caso para meu pai e ele quis que eu lhe indicasse quem tinha sido. Dias depois, apontei-lhe o cara, de longe. Era um cliente de seu consultório de dentista. Meses depois, o cara foi lá consultar. Meu pai abriu seu dente, disse para o homem ficar de boca aberta e perguntou se ele conhecia seu filho, Milton, um que andava com um cachorrinho assim assado. O cara passou a suar em profusão… Meu pai perguntou se ele estava nervoso, se estava doendo muito, essas coisas. Rindo, me garantiu que fez tudo direitinho do ponto de vista odontológico. OK, acrescento que ele podia ser sádico.

Acho que meus pais se amavam. Lembro de gestos de carinho num e noutro sentido. Minha mãe – ela foi uma das primeiras dentistas mulheres formadas pela Ufrgs e sua família cruz-altense reclamava de meu pai por deixá-la trabalhar (imaginem se soubessem do resto) – referia-se a ele como um homem que só tinha um só defeito (os cavalos) e, quando ele morreu, disse-me com um olhar perdido que estava arrependida por ter recebido muito mais amor do que dera. Disse também que sempre sustentara a casa, mas que ao menos seu marido não fazia dívidas, apenas jogava dinheiro fora.

Considerável parte das minhas boas lembranças da infância e da juventude estão associadas a meu pai. Ele era um sujeito engraçado e bem-humorado que participava de tudo e era moderno o suficiente para não estabelecer distâncias. Sempre me senti seu par, fato que parecia ser um problema para os outros pais com os quais mantínhamos contato. Morreu e não lhe disse que aprendi muita coisa com ele, não lhe disse que sabia que era amado, que o amava e que a gente não falava nisso porque éramos gente comum, dessa que anda por aí cega, surda e muda, falando todo o tempo em coisas secundárias.

Foto: meu pai, minha irmã, eu e minha mãe. Pelo cabelo de minha irmã, estávamos nos anos 80

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Quem imaginaria isso?

Quem imaginaria isso?

Um compositor polonês desconhecido, escrevendo música muito sombria, baseada em textos religiosos, em um estilo que não tem apelo instantâneo, mas exige a atenção do ouvinte por quase uma hora. É dificilmente um material capaz de bater de frente com Madonna ou Beyoncé, certo?

No entanto, a Sinfonia Nº 3 de Henryk Górecki (Symphony of Sorrowful Songs) bateu. Em 1993, uma gravação com Dawn Upshaw e a London Sinfonietta, regida por David Zinman, chegou ao topo dos CDs mais vendidos não apenas de eruditos, mas também de populares, e continua sendo o álbum mais vendido de todos os tempos de música de um compositor contemporâneo — vendeu 1 milhão de cópias, ganhou Discos de Ouro, essas coisas.

É difícil que qualquer CD clássico venda tão bem, mas para uma peça clássica contemporânea, cheia de profundidade e nada feliz, vender tanto assim é inédito.

O mais surpreso de todos, talvez, tenha sido o próprio Henryk Górecki, que nunca se propôs a escrever música popular. Ele fazia parte da escola radical de compositores que incluía Szymanowski e Serocki, que ficaram conhecidos como a escola polonesa, conhecida por seu estilo de composição usando massas sonoras altamente dissonantes. O grupo escreveu música que dispensava ritmo e melodia e focava apenas na cor do tom -– e quanto mais áspera e mais dissonante, melhor, arrisco dizer.

Górecki chegou tarde à composição, antes era um respeitado professor de música na universidade de Katowice. Ele estudou em Paris e foi influenciado por Webern, Stockhausen e especialmente Messiaen, cuja música não estava disponível na Polônia controlada da Guerra Fria.

A maior fonte de inspiração de Górecki, no entanto, sempre foi seu fervoroso catolicismo e seu respeito pela herança cultural polonesa, incluindo textos folclóricos e medievais. Para Górecki, a música deve sempre ter significado e mensagem.

Após o período de vanguarda dos anos 1960, Górecki se afastou da dissonância, foi da aspereza para a harmonia. Nos anos 1970, ele pegou carona no movimento minimalista no ocidente e fundiu tudo numa voz única.

A Sinfonia Nº 3, Symphony of Sorrowful Songs, é uma obra de uma hora de duração que exige nossa atenção. É composta de três movimentos, todos rotulados como Lentos. A música tem deliberadamente uma qualidade ritualística de oração, com a intensidade do canto gregoriano. Os três movimentos têm progressões harmônicas extremamente lentas.

Em 1992, quando a Nonesuch gravou a Sinfonia Nº 3, esta já tinha 15 anos de existência. E foi para o topo da venda de discos no Reino Unido. Em dois anos, a Nonesuch comemorava 700 000 cópias no mundo inteiro, e esse valor é pelo menos quatrocentas vezes mais a expectativa de vendas de uma sinfonia de um compositor relativamente desconhecido no séc XX.

Entretanto, o sucesso da gravação não despertou o interesse em outros trabalhos do compositor. Mas seus Quartetos de Cordas são extraordinários. A Nonesuch bem que tentou repetir o feito com outras composições de Górecki, mas o fenômeno não se repetiu.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXIII)

— Oi, tudo bom? Eu quero aquele livro do clitóris.

— Ah, “O prazer censurado: clitóris e pensamento”?

— Sim, esse mesmo! De Catherine Malabou. É sobre o apagamento do clitóris nas narrativas e na arte.

Lá fui eu atrás do livro. Passei no meio de um casal pedindo licença, na maior educação. Parei na frente da estante, suspirei e disse, desatento.

— Agora é só achar o clitóris.

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O bem que a leitura faz para o cérebro

O bem que a leitura faz para o cérebro

Pesquisa realizada em conjunto entre as universidades de Michigan e Stanford garante que a leitura de ficção traz diversos benefícios, entre eles a redução do stress e a empatia. Mas vamos nos ater hoje aps fatos médicos. Ela também proporciona uma melhoria na área da memória, pois coloca teu cérebro para trabalhar a imaginação, fundamental para a memorização de longo prazo. O processo de envelhecimento reduz pouco a pouco nossas habilidades cognitivas, entretanto essa perda pode ser recompensada com atividades intelectuais estimulantes. Uma outra pesquisa feita pela Dra. Natalie Phillips (Montreal Cognitive Assessment) investigou o papel da atenção nas modificações que a leitura faz no cérebro. Ela comparou uma leitura dispersa com uma leitura mais engajada, onde entramos pra valer na história. A conclusão foi que a leitura dispersa não aumenta muito a atividade cerebral. Mas aquela em que você se gruda na história faz você aumentar sua atividade cerebral de maneira significativa. Ou seja, a leitura que desperta mais o seu interesse, que mais envolve, é justamente aquela que vai trazer maiores benefícios. Em outras palavras, LÊ AQUILO QUE TU GOSTA, VIVENTE!

Esta é uma ótima notícia para os clientes da Livraria Bamboletras. Afinal, aqui nós temos uma curadoria que pode auxiliar você a encontrar aquele livro que vai grudar em ti que nem chiclete.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXII)

Este é Junior Rostirola, pastor evangélico e autor do best-seller “Café com Deus Pai”, livro que deverá ser o mais vendido de 2025. A lastimável figura que o acompanha é, infelizmente, conhecida de todos.

A Livraria Bamboletras tem o orgulho de anunciar que não vendeu nenhum exemplar deste livro este ano. E nem venderá.

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Fernanda Torres e as “velhas”

Fernanda Torres e as “velhas”

A brilhante atuação de Fernanda Torres como embaixadora de nossa melhor cultura deve ser saudada. Num mundo ideal, Fernanda seria clonada para atuar em filmes e como embaixadora ao mesmo tempo. Mas, para ela ficar igualzinha, a Fernanda 2 precisaria de pais e ambiente iguais, então esqueçam minha ficção, ela fracassou. A Fernanda original cresceu sem o sertanejo universitário e os bolsonaristas. Bem, talvez aí se encontre uma boa ficção. Uma Fernanda nova e apenas boba!

Mas o assunto é sério — tem mais uma coisa sobre Fernandinha. Ontem, vi-a chegar no palco do Festival de Santa Bárbara toda de preto e sentar. Repentina e estudadamente, o vestido abriu e ela cruzou as pernas. Foi lindo de ver aquela fenda. Teve graça, estilo e sensualidade. O minimalismo tem classe, penso eu com meus botões e chinelos de dedo. Estou neste mundo há 67 anos e sei que, antigamente, mulheres de 59 anos, não se permitiam a isso, eram consideradas umas velhas e deviam se comportar de acordo com as normas da decência e da menopausa.

Era uma bobagem, né? Observo mulheres há mais de 50 anos e as adoro. Por exemplo, como são belas aquelas velhas atrizes inglesas que vão ganhando idade naturalmente, com o talento e a inteligência se derramando pelos olhos! Vanessa Redgrave, Judi Dench, Helen Mirren, Maggie Smith… Elas capturam nossos olhos.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXI)

Hoje pela manhã, inaugurei uma estratégia de vendas inédita na tua, na nossa Livraria Bamboletras. Adianto que não deu certo. Ou deu.

Desci, liguei os computadores, abri a porta e comecei a responder as mensagens do WhatsApp. Então a Elena desceu e perguntou com um meio sorriso se muitas pessoas já tinham entrado na Livraria. Respondi:

— Pois é, são 10h30 e ninguém entrou.

Ela rebateu:

— Claro, tu não abriste o portão da rua.

Mesmo assim, foi o melhor dia das últimas 3 semanas. Talvez eu tenha descoberto algo novo.

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Uma filha de Tolstói

Uma filha de Tolstói

A filha de Tolstói, Tatiana, amava Tchékhov. O pai adorava o escritor. A mãe disse que, se ela casasse com ele, jamais teria um travesseiro confortável, talvez só um pano de algodão vermelho para colocar a cabeça, ou seja, que ela seria pobre. Tchékhov fez fortuna, apesar de doar quase tudo o que recebia. Algumas mães vou te contar… A filha casou com outro. Tchékhov era um homem bonito. Eu acho.

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A Sinfonia Nº 4 de Shostakovich

A Sinfonia Nº 4 de Shostakovich

A partir de 1936, a vida de Shostakovich foi num embate desigual contra o leviatã soviético. De saúde frágil, o compositor fazia parte de um grupo de artistas cada vez mais raro: o dos provocadores. Porém, quando digo provocadores, falo em artistas com substância e consequência. Mesmo que sofresse pessoalmente, prevendo a morte ou o desaparecimento, mesmo doente e sabendo que seria censurado, seguia cutucando os burocratas do governo com um sarcasmo que até hoje deixa deliciados seus admiradores. Foi um artista que, além disso, soube equilibrar-se entre a extrema sofisticação e a comunicação com o público numa época em que boa parte de seus pares andava perdido num experimentalismo que hoje quase não é mais ouvido. Contrariamente, Shostakovich está cada vez mais vivo e presente nos repertórios das mais importantes salas de concertos. O conteúdo humano e a profundidade de suas composições dizem muito ao século XXI.

(Sei lá o motivo da introdução acima).

A Sinfonia Nº 4 de Shostakovich (Op. 43) foi composta entre setembro de 1935 e maio de 1936. Shosta estava tarado ou, melhor dizendo, fortemente influenciado por Mahler. Ele estivera estudando as sinfonias do marido de Alma durante os anos anteriores. O estilo de orquestração, a imensa orquestra e o uso de melodias banais e sobrepostas, todas vieram de Mahler. Em janeiro de 1936, na metade da composição da 4ª, o Pravda — espécie de porta-voz Stálin — publicou um artigo chamado “Bagunça ao invés de Música”, que denunciava o compositor e especificamente sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk. Stálin teria chamado a ópera de “pornofonia”, o que comprova o humor peculiar dos psicopatas. Apesar das ameaças, Shostakovich não somente concluiu a obra, como também planejou sua estreia, programada para dezembro de 1936 em Leningrado. Só que a pressão foi demasiada e ele cedeu. Deixou pra depois. O trabalho foi apenas apresentado no dia 30 de dezembro de 1961 pela Orquestra Filarmônica de Moscou, conduzida por Kirill Kondrashin. É um espanto de boa música!

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William Blake

William Blake

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Sarinha

Até os 13, 14 anos, eu era um mau aluno, só lia quadrinhos e jogava futebol. Minha mãe ficava louca na certeza de que estava criando um idiota. Não que ela estivesse de todo errada, ainda mais quando me comparava com minha irmã, brihante em tudo até hoje.

Mas então veio a Sarinha, a professora de português e literatura que todo mundo deveria ter. A Sarinha mandou a gente ler O Tempo e o Vento. Minha mãe pegou O Continente da estante e me entregou a coisa com aquele sorrisinho tipo agora eu quero ver.

Não comecei a ler imediatamente, mas alguns colegas sim. A Sarinha reservava os 15 minutos finais de cada aula para sentar com os alunos que estavam lendo o livro a fim de discuti-lo com eles. As discussões eram de igual para igual, ela usava os nossos termos, a nossa expressão. Aquilo foi se tornando tão bom que logo todos estavam lendo para poder participar. A Sarinha tinha 1,50m com carisma de muitos centímetros a mais. Logo me agreguei ao grupo de leitores e não saí dele até agora, mais de 50 anos depois.

Hoje de manhã, lembrei daquela professora do ensino público. (Aliás, fui 100% do tempo do ensino e universidade públicas).

Grande Sarinha!

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Insan Hina Kelana: Tristeza profunda

Insan Hina Kelana: Tristeza profunda

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Três Camadas de Noite, de Vanessa Barbara

Três Camadas de Noite, de Vanessa Barbara
Version 1.0.0

É importante começar dizendo que o tema deste livro não tem nada a ver com o atual rolo relacionado ao podcast de Vanessa Barbara na Rádio Novelo (ouçam!). O livro onde este aparece é Operação Impensável, já lido por mim e a ser resenhado quando voltar às livrarias. Sobre o caso, já me manifestei nas redes sociais pouco antes de ele se tornar o atual vaudeville. Sou #TeamVanessa e não abro.

Sou leitor de Vanessa desde 2010, quando li seu famoso texto O Louco de Palestra. Desde então tenho acompanhado sua carreira. Também li o extraordinário e hoje raro O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify). Por escrever muito bem — gosto muito! — e de uma forma quase sempre hilária — gosto mais ainda! –, Vanessa não me era uma desconhecida quando da recente celebridade. Ou seja, não sou um neófito da autora.

Três Camadas de Noite é um romance que trata com inteligência e leveza de depressão em geral e da depressão pós-parto em particular. (Esta frase não foi uma tentativa de piada. Vanessa penetra em becos escuros com medo e graça. É como ler as desventuras de Lucia Berlin, entendem?). Pior, tudo começa em 2020, durante a pandemia. Pior ainda, a personagem principal do romance não dorme porque o bebê é “difícil”. E Vanessa consegue ser muito séria e fazer humor com ambos os temas. O livro é narrado na primeira pessoa e, como poderíamos imaginar, a personagem principal tem um filho — um menino chamado Heitor que passa de um bebê com dificuldades para dormir para uma criança agitada e muito inteligente. Vanessa não costuma contornar situações e o drama é drama, mesmo que crivado de boas piadas. Ela chora segundas, quartas e sextas, às vezes nos outros dias também. Como uma Rosa Montero brasileira, ela intercala a narrativa com seções de não ficção que contêm histórias reais de grandes autores que sofreram com a depressão. São eles Sylvia Plath, Clarice Lispector — belamente inserida na história –, Alice e Henry James, Natalia Ginzburg e Franz Kafka.

As três camadas podem ser (1) a da depressão da narradora, (2) o Diário de Campo, tomado pelas peripécias de Heitor e (3) a dos escritores que sofreram de depressão. A expressão “três camadas de noite” é citada no livro, mas não a reencontrei… (sempre ler com uma caneta ou lápis, Milton!). Talvez seja importante dizer que a narradora não se compara aos autores focalizados, apenas traça paralelos. Também há uma forte presença de efeitos causados pelo covid, capturando a atmosfera de incerteza e isolamento. O trabalho frequentemente transita entre a ficção e a não ficção, sempre com um olhar interessado aos detalhes da vida moderna, muitas vezes desconhecidos do velho de 67 anos que sou.

Como disse, não creio que seja um livro difícil de ler, a não ser para quem é experiente em depressão e tema gatilhos. Vanessa não narra uma viagem da vida normal ao desespero — também não narra uma história do fundo do poço à luz –, mas a personagem principal chega a uma situação aceitável para seguir a vida. Adorei as crônicas dos autores depressivos. Afinal, sou como Ingmar Bergman –, investigo o inferno com curiosidade, mas sem pedir ingresso.

Recomendo!

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Literatura russa…

Literatura russa…

Cansei de escrever esquemas nas páginas em branco dos livros.

Ivan = Vanya = Vanyechka = Vanyucha…

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Ernest Hemingway

Ernest Hemingway

“– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
– E isso importa?
– Mais do que a própria guerra.”

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Sobre a hora de se aposentar

Sobre a hora de se aposentar

Os grandes virtuoses do piano vão tocando com cada vez maior mestria, mas também mais lentamente, a não ser que seu nome seja Martha Argerich, a que bebeu da poção mágica. Alguns passam do ponto: meu pianista preferido, Maurizio Pollini, passou e andou fazendo discretos fiascos, esquecendo músicas (tocava sempre de memória) e tal.

Daqui do Brasil, acompanhando gravações e vídeos, penso que o gênio que soube o momento de parar foi Alfred Brendel. Parou aos 77 e ainda hoje está vivo, aos 94, dando palestras e entrevistas mal-humoradas. Suas últimas gravações são primorosas. Isto é bem raro. Afinal, como alguns artistas de rock e seus agentes, os caras querem o “último dinheiro” e ficam rolando por aí.

Isso me lembra que meu psiquiatra — o qual tenho visto de dois em dois meses — um dia me disse que quer ser avisado sobre quando deve parar. Deve estar lá pelos 70 e poucos. Eu não vou avisar coisa nenhuma.

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