Eu lia pouco durante a infância, muito pouco. Queria era jogar futebol. Lia revistinhas da Disney nos dias de chuva e olhe lá. Observava minha irmã parada, totalmente concentrada com um livro aberto, mas não tinha vontade de fazer o mesmo. Quem me acordou para a literatura foi Erico Verissimo com seu O Tempo e o Vento. Só depois dos 15 ou 16 anos, passei a avaliar se era melhor permanecer em casa ou me divertir com os amigos. E normalmente ficava em casa enfiado num livro. Meus pais achavam que eu tinha que sair mais, ver pessoas, só que eu preferia ficar lendo. Por ter começado tarde, meu conhecimento de literatura infanto-juvenil é mínimo. Comecei pelos livros dos adultos, por aqueles que minha irmã e pais valorizavam. Começo esta resenha assim porque não sei como classificar este Kafka e a boneca viajante. A estrutura do livro é de uma fábula. O tema é a infância, mas também é a elaboração de uma perda. Por outro lado, não podemos esquecer que há Kafka, já muito doente, levando a sério o fato de uma menina ter perdido sua boneca. Vou tentar explicar melhor.
A história entre Franz Kafka e a menina Elsi é um episódio tocante e pouco conhecido da vida do tcheco. Esse evento ocorreu nos últimos anos de vida de Kafka, quando ele já estava gravemente doente (sofria de tuberculose) e vivia em Berlim, em 1923-1924. Kafka, durante seus passeios por um parque em Berlim, viu uma menina chorando, muito triste pela perda de sua boneca preferida. Seu nome era Elsi e estava inconsolável. Kafka decidiu fazer alguma coisa. Inventou uma história, disse que a boneca não tinha desaparecido, mas viajado. Ele explicou que a boneca lhe enviara uma carta e que sua profissão a de “carteiro das bonecas”. No dia seguinte, ele traria uma carta da boneca Brígida para Elsi. E durante três semanas, Kafka escreveu cartas diárias para Elsi, supostamente, é claro, enviadas pela boneca. Esforçou-se muito para escrevê-las sem que Elsi desconfiasse de nada. Nessas cartas, ele descrevia as aventuras da boneca em suas viagens pelo mundo, sempre em tom poético. Essas cartas não apenas confortaram a menina, mas também a fizeram acreditar que sua boneca estava vivendo uma vida emocionante e cheia de descobertas.
Esse episódio revela alguma coisa sobre Kafka. Apesar de sua obra literária estar associada ao absurdo, à angústia e ao pessimismo, ele demonstrou empatia e capacidade de se conectar com o mundo de uma criança. E tentou transformar a dor de Elsi em uma experiência feliz. Porém, as cartas que Kafka escreveu para Elsi não foram preservadas, e o episódio só foi conhecido graças ao relato de Dora Diamant, companheira de Kafka na época. Houve muitas tentativas de localizar Elsi e as cartas, mas nada foi encontrado. Houve um historiador que passou décadas atrás dos textos.
Kafka e a Boneca Viajante (no original, Kafka y la muñeca viajera) reconta essa história comovente entre o escritor e a menina Elsi. É uma ficção inspirada pelo episódio real. Claro que o livro é enormemente emocionante e mesmo este calejado leitor teve vontade de se desmanchar lendo o relato. Há uma sensação de estranheza — os excertos das cartas não são nada Kafka! –, porém como ele escreveria para uma criança? Alguém sabe? De forma esperta, Sierra i Fabra tenta capturar a essência do gesto de Kafka, destacando a empatia e a criatividade para transformar a dor de uma criança em uma experiência mágica. E também sobre o problema de um adulto que precisa parar de escrever diariamente para uma criança e voltar a sua obra. O livro é uma homenagem ao poder consolador da literatura. É como uma janela para um momento íntimo.
Creio que é um livro que visa um público mais amplo, incluindo jovens leitores. O autor usa uma linguagem simples e poética — algumas vezes verbosa –, com flechadas certeiras e piegas que me atingiram sem piedade. Claro que me senti injustamente traído ao ver meu sombrio e pessimista autor — também muitas vezes cômico, na minha opinião de leitor — ser tratado como um ser cheio de bondade. AMO Franz Kafka de uma forma que só eu sei. AMO aquele mais obscuro Kafka. Mas não há porque pensar que o Kafka dos livros que conhecemos não fosse capaz de um ato de consolo como o relatado. Sensibilidade não lhe faltava.
Jorvi Sierra i Fabra (1947) é um conhecido escritor infanto-juvenil catalão, mas, sabem?, este livro não me pareceu ser um típico exemplar do gênero.
Recomendo!
