Atrás do balcão da Bamboletras (LXVI)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXVI)

A Livraria Bamboletras está dentro de uma igreja com vitrais e estou ouvindo música sacra de Heinrich Schütz. Apesar das opiniões deste que vos escreve, o ambiente é pra lá de religioso.

Chega um menino meio tímido que se identifica como filho do poeta Marco de Menezes.

Ele estranha um pouco o ambiente, me olha meio desconfiado, creio eu. Então me diz que veio trazer exemplares do último livro de seu pai, “Como estou dirigindo”. Olho a camiseta dele e vejo um dos brasões da torcida Inter Antifascista:

— Nossa que camiseta linda! — eu digo com admiração.

Ele parece desanuviar, incrédulo pelo fato daquele pastor, ou do “Pai Milton da Bambô” ter gostado de uma camiseta com a imagem da foice e do martelo.

— Acha mesmo? — ele pergunta sorridente.

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Virginia

Hoje acordei com a memória insuportavelmente presente, fazer o quê?

Há exatos 84 anos, num 28 de março, Virginia Woolf, com 59 anos, tirou a própria vida ao entrar no Rio Ouse com pedras nos bolsos porque, tendo sofrido de crises recorrentes de doença mental ao longo da vida, a depressão que a atormentava intermitentemente estava retornando e ela não conseguia mais escrever.

É uma figura fundamental da literatura de seu e de nosso tempo. Seu trabalho sobrevive como uma contribuição significativa para nossa compreensão do início do século XX e como uma grande influência sobre escritores, especialmente mulheres, até hoje.

No primeiro comentário, deixo um link de um vídeo sobre sua vida e obra. Ele ajuda a entender a importância de Woolf e dá uma visão simples, mas informativa, do mundo literário de seu tempo.

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E Schütz fará 440 anos de nascimento

E Schütz fará 440 anos de nascimento

Bach, Handel e D. Scarlatti completam 340 anos de nascimento em 2025. Mas não esqueçam de mais um gênio: o extraordinário Heinrich Schütz completa 440 anos. Ele nasceu em 1585.

Uma curiosidade pessoal: ouço habitualmente algum compositor ainda mais antigo? Acho que há três ainda mais velhinhos e dentre eles uma mulher. São eles Hildegard von Bingen (1098-1179), Claudio Monteverdi (1567-1643) e Jan Pieterszoon Sweelinck (1562-1621).

Não gosto muito de Gabrieli nem de Palestrina.

Abaixo, Schütz retratado por Rembrandt.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXV)

O sujeito pede o livro “Uma Vida Pequena” e já sai perguntando se é muito deprimente. Eu respondo que não li o livro, mas que ele vende bem e nunca soube de algo especial a respeito. Ele diz que é o presente que sua filha pediu. Ela está fazendo 18 anos, o sr. sabe, né?

Na verdade, não sei nada. Pergunto se ela sofre de depressão. Ele responde que não, é que ela está naquela idade. Ih, rapaz, um controlador.

— Ela tem saído muito? — eu pergunto.

— Não, ela é correta, mas eu tenho medo de tudo, dos perigos reais e das influências, dos namorados também.

— Tu era correto? Ela vai fazer o que tu fazia.

— É disso que eu tenho medo.

Eu tomo a palavra:

— Eu tenho uma filha de 30 que sempre foi de uma franqueza estúpida. Hoje está casada, parece feliz.

— E como foi com o primeiro namorado?

— A primeira vez? Não sei. Eu a levava e buscava sempre nas festas. Um dia, ela me disse muito séria que eu estava livre de buscá-la de madrugada, que podia buscá-la de manhã, perto do meio-dia. Pensei: futebol é bola na rede. No outro dia, fui lá, busquei ela e conversamos um monte de abobrinhas. Só isso. Seguimos nossas vidas.

— Tu é muito calmo.

— Não, ela não era de enrolar. Então, eu provavelmente sabia onde ela estava e, se é para acontecer, não há vigilância que funcione. Digo mais: se é para transar, que transe em casa.

— Pra psicólogo tu não serve. Vou pensar nisso uma semana, sou capaz de bater o carro agora.

Achei graça.

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Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Este é um livro curioso. Parece leve, parece que não chegará a lugar nenhum, mas é poderoso, muito poderoso. Pequenas coisas como estas foi finalista do Booker em 2022 e figurou na célebre lista dos 100 melhores livros do século XX publicada pelo New York Times. A autora Claire Keegan é irlandesa e, como tantos de seu país, tem uma escrita cheia de beleza e suavidade.

O romance é centrado no personagem Bill Furlong. O ano é 1985. Furlong é um pequeno empresário que vende carvão e madeira, mas que não gosta de ficar no escritório, prefere trabalhar num caminhão caindo aos pedaços, fazendo as entregas. É pai de 5 filhas e casado com Eileen. Todos vão à igreja aos domingos. Na superfície de tudo isso, Bill parece estar contente com sua vida e destino. No entanto, conforme Keegan vai desenvolvendo a história, aprendemos que as coisas não são bem assim.

Na cidade há uma Lavanderia de Madalena — também chamadas de Asilos de Madalena –, instituições comuns na Irlanda no século XX. O que eram? Eram essencialmente casas de trabalho para mulheres, especialmente para mulheres jovens e adolescentes que engravidavam fora do casamento. As Lavanderias eram administradas pela Igreja Católica e as famílias lá deixavam suas mulheres para que pudessem esconder suas gestações da sociedade. Uma vez que a criança nascia, ela era frequentemente retirada à força da mãe e posta para adoção. (Após investigações realizadas antes da desativação dessas casas, houve a certeza de que muitas das crianças nascidas nessas lavanderias eram simplesmente mortas). Embora as Lavanderias de Magdalena fossem particularmente severas na Irlanda, estabelecimentos semelhantes existiam em todo o mundo. Como revela o nome, essas casas prestavam serviços de lavanderia para os locais onde estavam implantadas.

Certo dia, quando Bill deixa lenha e carvão na igreja local, ao lado da lavanderia, ele encontra uma adolescente trancada no galpão de carvão. Ela está coberta de sujeira, passa frio e está aterrorizada. Ele a leva para dentro e as freiras recebem a garota e abafam tudo, agindo estranhamente. Tudo o que Bill consegue arrancar da garota é que seu nome é Sarah — o mesmo de sua mãe.

A mãe de Bill, Sarah, era adolescente quando engravidou de Bill. A família Wilson a acolheu e a deixou trabalhar como empregada da casa pagando-lhe uma pequena quantia, além de quarto e alimentação. Todos dizem a Bill que ele deveria ser grato pela gentileza da família Wilson — especialmente quando a alternativa poderia ter sido uma Lavanderia Madalena para sua mãe. No entanto, Bill parece meio cansado de ser grato. Sua frustração parece palpável ​​ao longo do romance.

Enquanto ele constrói uma vida respeitável para si com sua esposa e filhos, a mãe adolescente de Bill é algo de que ele não consegue escapar. De muitas maneiras, ela parece seguir Bill por toda a sua vida e todos, incluindo sua esposa, usam a gravidez adolescente de sua mãe como uma resposta para qualquer momento em que Bill diga algo fora da linha da calma e da paz.

Quando ele vê Sarah no galpão de carvão, aquilo torna-se um fato importante para ele. Não havia serenidade naquele homem tão cordato, mas há paz no romance de Keegan até o final. Aliás, o final é uma joia de tão bem realizado.

Claire Keegan é uma mestra. Ela equilibra tristeza, delicadeza e perplexidade de uma forma extremamente bela. Os ressentimentos de Bill saem das páginas e parecem vivos, pulsantes. Porém, embora o assunto tenso e doloroso, ele alguma forma não é pesado.

Uma frase ecoa em nossa cabeça após a leitura. Ela aparece quando Furlong, meio perdido após suas entregas, pergunta a um homem na beira da estrada onde vai dar aquela estrada:

— Esta estrada vai dar onde você quiser, filho.

Um tremendo pequeno romance.

.oOo.

Obs.: há um filme homônimo baseado no livro. Bill Furlong é vivido por Cillian Murphy, porém o filme é bem ruinzinho.

Claire Keegan (1968-)

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Roteiro de uma palestra sobre os 340 anos de Bach, Handel e Scarlatti

Roteiro de uma palestra sobre os 340 anos de Bach, Handel e Scarlatti

Bach, Handel e Scarlatti nasceram em 1685. Handel em 23 de fevereiro, Bach em 21 de março, Scarlatti em 26 de outubro.

São três gigantes e o fato de terem nascido no mesmo ano já é coincidência suficiente. Bem que Rameau (1683) e Vivaldi (1678) poderiam ter esperado. Bem, mas isso talvez mudasse bastante a história da música, pois Bach foi muito influenciado pelo Prete Rosso (Padre Ruivo).

Vamos procurar mais coisas em comum entre nosso grande trio de compositores? O trio de 1685 foram figuras centrais do período barroco, contribuindo significativamente para a história e o repertório da arte musical e de meu período musical preferido, o barroco. Cada um à sua maneira e segundo o ambiente em que viveu, os três moldaram a estética e as técnicas musicais da época. Bach ficou conhecido tanto por suas obras sacras, quanto por sua música instrumental, incluindo aí obras que poderíamos chamar de conceituais. Handel tem sua música instrumental, mas destacou-se muito mais nas óperas e nos oratórios, enquanto Scarlatti foi um pioneiro da sonata para teclado, especialmente no cravo. Por obrigações empregatícias escreveu mais de 500 sonatas para cravo.

Outro ponto em comum entre eles é a influência italiana. O napolitano Scarlatti naturalmente não ficaria livre dela e incorporou o estilo italiano em suas obras, claro. O super estudioso Bach estudou e adaptou técnicas italianas, especialmente de Vivaldi, em suas composições. E Handel, alemão como Bach, passou boa parte de sua carreira na Itália e na Inglaterra, absorvendo e transformando o estilo italiano em suas óperas e oratórios. Aliás, as Cantatas Italianas de Handel, escritas em sua juventude na Itália, são esplêndidas!

Mas há mais. Bach, Handel e Scarlatti eram todos exímios tecladistas. Bach era respeitadíssimo como organista e cravista, Handel destacou-se como cravista, e Scarlatti foi um dos maiores virtuoses do instrumento em sua época. Suas obras para teclado continuam sendo pilares do repertório até hoje.

Aparentemente, os três nunca se encontraram pessoalmente, mas há várias lendas e talvez uma tentativa real de encontro. A principal lenda: Handel e Scarlatti supostamente competiram em um “duelo” de cravo em Roma, onde a turma do deixa disso declarou Scarlatti superior ao cravo e Handel no órgão. Um empate real ou arranjado? Enquanto eles duelavam, Bach devia estar bebendo cerveja ou brigando com seus empregadores, mas era um admirador de Handel e diz-se que tentaram entrar em contato, sem sucesso.

Como já disse, os três compositores trabalharam tanto com música sacra quanto profana. Bach é conhecido por suas obras sacras e também pela secular. Handel equilibrou óperas e oratórios, ficando mais na área da música vocal. Já Scarlatti foi muito mais focado na música instrumental, mas também compôs obras vocais sacras.

Outra coincidência é que os três morreram em um intervalo relativamente curto de tempo: Scarlatti em 1757, Handel em 1759 e Bach em 1750. Dá pra dizer que a período barroco é finalizado com suas mortes.

A última coincidência é triste e exclui Scarlatti. Bach e Handel, quando velhos, passaram a sofrer de catarata e foram operados por John Taylor (1703–1770). Pois bem, este médico charlatão britânico — doutor em autopromoção — cegou Bach e Handel, entre muitos outros. Taylor era um notório farsante. Ambos os compositores estavam com dificuldades de visão, mas depois das “cirurgias” de Taylor, ficaram irremediavelmente cegos. Taylor é famoso. Pesquisem.

Mas hoje é dia do nascimento de Bach. E pergunto: afinal, Bach nasceu em 21 ou 31 de março de 1685? No dia 21. Vamos falar de 1582? Naquele ano, o calendário gregoriano foi introduzido em alguns países da Europa, não em todos. A Itália, a Espanha, Portugal e a Polônia, os mais católicos, aceitaram a mudança ditada pela igreja, o resto não. Só depois é que todos os outros países aderiram. O 21 de março de 1685 da Alemanha não era o mesmo 21 de março de 1685 na Itália, Espanha etc. Havia 10 dias de diferença. O dia em que Bach nasceu foi “chamado” de 21 de março na Alemanha, onde eles ainda estavam usando o calendário juliano. Mas Bach nasceu num 31 de março, considerando o calendário que todos usam hoje, o gregoriano. O que vale? Ora, segundo os historiadores, vale o que está escrito lá na igreja onde Johann Sebastian Bach foi registrado. Vale o 21 de março. Perguntem ao Francisco Marshall que ele confirmará.

Da mesma forma, é muitas vezes dito que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, 23 de abril de 1616. A rigor, não é verdade. As mortes foram separadas por 10 dias. A de Shakespeare ocorreu em 23 de abril de 1616 (juliano), que equivalente hoje a 3 de maio (gregoriano). A de Cervantes aconteceu no dia 23 gregoriano. Mas os historiadores dizem que o que vale é o que está escrito, então ambos morreram em 23 de abril, mas com uma diferença de dez dias. Então, eles morreram no mesmo dia, mas não ao mesmo tempo… Vá entender!

O que é certo é que podemos comemorar o(s) aniversário(s) de Bach, nosso maior ídolo, com (muita) cerveja. Bach a amava e era também uma questão de segurança, de saúde. Dizem que ele a produzia em quantidades industriais em sua própria casa. Mas esta é uma história pra a gente resolver aqui entre nós, né?

Mas antes, falemos rapidamente sobre o repertório de sábado (22/03), às 20h, na Casa da Ospa.

A função começa com duas Sonatas de Scarlatti, a K. 141 e a 87. A Sonata K. 141 tem uma curiosa escrita percussiva e passagens em “repiques” que sugerem a guitarra espanhola, instrumento onipresente na corte de Madri, onde o compositor passou grande parte de sua vida. Já a Sonata K. 87, em Si menor, tem um caráter introspectivo e lírico, contrastando com a técnica brilhante que caracteriza muitas das outras sonatas do compositor.

O Fernando Cordella vai tocar no cravo. Mas aqui vai uma provinha da K. 141 de Scarlatti.

Depois, teremos a Cantata BWV 4 de Bach, “Christ lag in Todes Banden” (“Cristo jazia nos laços da morte”), é uma das obras mais importantes e reverenciadas de Johann Sebastian Bach. Ela é baseada em um coral luterano escrito por Lutero, que por sua vez se inspirou no hino medieval Victimae paschali laudes. Acredita-se que Bach tenha composto essa cantata por volta de 1707, durante seu período em Mühlhausen, embora possa ter sido revisada posteriormente. É uma de suas primeiras cantatas sobreviventes. A Cantata foi escrita para a Páscoa, refletindo o tema central da ressurreição de Cristo e a vitória sobre a morte. O texto é uma paráfrase do coral de Lutero, que por sua vez está enraizado na tradição litúrgica da Páscoa. Ele explora temas como o pecado, a morte e a redenção através de Cristo.

Aqui vai uma versão da BWV 4 com o regente e pugilista John Eliot Gardiner:

O oratório La Resurrezione (A Ressurreição), de George Frideric Handel, é uma obra-prima do período barroco e um dos primeiros grandes trabalhos do compositor. Composto em 1708, durante a estada de Handel em Roma, o oratório narra a história da Ressurreição de Cristo, baseando-se em textos bíblicos e tradições litúrgicas. Handel compôs La Resurrezione quando tinha apenas 23 anos. Ele estava em Roma, onde as óperas haviam sido proibidas pelo Papa, mas oratórios e outras formas de música sacra eram permitidas. A obra foi encomendada pelo Marquês Francesco Ruspoli, um nobre italiano e patrono das artes. A primeira apresentação ocorreu no domingo de Páscoa, 8 de abril de 1708, no Palazzo Bonelli, em Roma.

Claro que no concerto de sábado serão apresentados trechos da obra. Abaixo, colocamos o oratório completo.

Então, resumindo, o repertório será o que segue:

PROGRAMA
Domenico Scarlatti (1685 – 1757)
– Sonata em Ré menor K. 141
– Sonata em Si menor K. 87

Johann Sebastian Bach (1685 – 1750)
Cantata “Christ lag in Todes Banden” BWV 4

Georg Friedrich Händel (1685 – 1759)
Trechos do Oratório “La Resurrezione” HWV 47

SOLISTAS
Fernando Cordella, cravo e direção
Cintia de Los Santos, soprano
Diana Danieli, mezzo-soprano
Lucas Alves, tenor
Alexandre Kreismann, tenor
Daniel Germano, baixo
Gustavo Gargiulo (Argentina/França), corneto
Vinicius Chiaroni (SP), flauta doce
Diego Biasibetti, viola da gamba

ENSEMBLE BACH BRASIL (com instrumentos de época)
Fernando Cordella, cravo e direção musical

ENSEMBLE VOCAL
Andiara Mumbach, soprano
Rodrigo Bloch, contratenor
Alexandre Kreismann, tenor
Mauro Pontes, baixo

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Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber é um romance do suíço Max Frisch (1911-1991) publicado pela primeira vez na Alemanha em agosto de 1957 — o melhor mês do melhor ano. É narrado em primeiríssima pessoa pelo protagonista Walter Faber, um engenheiro brilhante que viaja a trabalho pela Europa e pelas Américas. Mais ou menos como o Ricardo Branco era e fazia. Sua visão de mundo — lógica, probabilística e científica — é desafiada por uma série de coincidências incríveis, fazendo com que o passado ressurja. (Você, que está na minha TL e portanto é inteligente, já sentiu a jogadinha entre Homo Faber e Homo Sapiens, né? Se não se deu conta, fora daqui!)

O livro foi editado pela Guanabara em 1986 e relido por mim agora em voz alta para a Elena. É ótimo. Minha cara-metade também aprovou e queria que eu lesse mais a cada noite. Gostei muito das duas vezes que o li, apesar de algumas reflexões antiquadas.

É uma obra importante e curiosa, pois se fala de um tema bem comum — o de nossa fragilidade — também fala de outro mais incomum — da ilusão do controle que temos sobre nossas vidas. É um livro de uma introspecção também pouco usual: a de um engenheiro. Faber é um homem de meia-idade, especializado em engenharia mecânica, que acredita piamente na lógica, na ciência e no controle técnico sobre a vida. Ele viaja constantemente a trabalho, vivendo uma existência organizada e aparentemente imune ao caos emocional. No entanto, durante uma viagem de negócios tudo começa a se descontrolar, como não aconteceu com o Ricardo Branco.

A narrativa se desenrola em duas partes: na primeira, Faber viaja para a América Central e se envolve em um acidente de avião. Na segunda parte, numa viagem de navio, Faber encontra Sabeth, embarcando numa relação cujo caráter é melhor deixarmos de lado.

Faber representaria o homem moderno, que confia na tecnologia e na razão. No entanto, o acaso o força a se desequilibrar de sua posição. Pode-se dizer que Sabeth é filha de uma ex-namorada sua e acaba por expor sua fragilidade emocional e incapacidade de lidar com complexidades “das humanas”. Frisch critica a crença de que a ciência e a técnica podem resolver todos os problemas humanos, mostrando que a vida é cheia de ambiguidades e incertezas.

Max Frisch foi um arquiteto e escritor influenciado pelo existencialismo e por Brecht. O final do livro é de grande categoria, Frisch sabia mesmo como deixar a gente pensando.

Tradução de Herbert Caro.

Max Frisch

 

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXX – Bela do Senhor, de Albert Cohen

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXX – Bela do Senhor, de Albert Cohen

Eu tento, tento, mas não consigo escapar dos calhamaços. Com aproximadamente 1000 páginas no mundo inteiro e 784 na edição de 1985 da Nova Fronteira, este livro me foi indicado por uma excelente e compreensiva leitora-amiga-cliente da Livraria Bamboletras. Ela lera o original em francês. Respondi que eu tinha um exemplar comprado em 1986 que jamais fora aberto por mim… Ela nem sabia que havia a tradução brasileira. Tive que obedecê-la, li o romance com enorme atenção e não me arrependo. Quando iniciei a leitura, ela reapareceu na livraria. Seu nome não é segredo: é Karina Maria. E ela reafirmou: “esse livro merece um monumento”.

Bela do Senhor (originalmente “Belle du Seigneur”), publicado em 1968, é um romance do escritor suíço, nascido na Grécia, Albert Cohen (1895-1981). Mas por que eu tinha o livro? Ora, porque Bela do Senhor fora elogiadíssimo em 1985 pela crítica brasileira (sim, tínhamos crítica literária), além de ter vencido o Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa de 1968 e também o Goncourt. A história gira em torno de dois personagens centrais que, estando juntos, vão pouco a pouco se isolando do restante do mundo.

A primeira é Ariane, a bela esposa do medíocre e arrivista diplomata Adrien Deume. O outro é Solal, um judeu grego brilhante e carismático, que é alto funcionário da Liga das Nações em Genebra. Solal é chefe de Deume na Liga das Nações. Ele fica obcecado por Ariane e, depois da mais estratégica e cínica das seduções, inicia um quentíssimo caso de amor com ela, chegando a uma relação que oscila entre a paixão sublime e o destrutivo.

Talvez seja importante saber que Albert Cohen era um judeu grego que trabalhou na Organização Mundial do Trabalho de 1926 a 1932, em Genebra. Ou seja, ele conhecia profundamente o ambiente onde Deume circulava. E, na primeira parte do livro o foco é dado a Adrien Deume, o marido traído. Ele é o perfeito puxa-saco. Não faz nada em seu trabalho, passando todo o tempo tratando de esquemas para subir de cargo na organização. Ele se vale de tudo, até da beleza da esposa, para obter destaque e galgar cargos. Em casa, a vida do casal Adrien e Ariane é um inferno, com os parentes de Adrien tentando se imiscuir em tudo, criticando a esposa que só dorme e toca piano, enquanto Adrien a protege. A vida de Solal, com um bando de folclóricos tios judeus, também não é muito fácil, mas ele consegue escapar deles com maior facilidade. É uma parte hilariante do romance: o livro satiriza a hipocrisia e o vazio da alta sociedade europeia, especialmente no contexto diplomático da Liga das Nações. O humor e a ironia expõem as falhas morais e éticas desta elite.

Então, começa o caso Solal-Ariane. A história de amor entre eles é avassaladora e, uma vez iniciada, eles realmente são empurrados um em direção ao outro. O ambiente político antissemita tira tudo de Solal, menos seu dinheiro: ele perde posição e reputação. O ambiente moral torna-se opressivo para Ariane e só lhe resta agarrar-se a Solal. E aí nós temos o amor, o grude total. o ciúme, as brigas e o enfado. Há momentos brilhantes em que Solal e Ariane não se suportam mais e mantém a relação apenas devido à situação lá fora. Temos uma análise franca e implacável das ilusões e desilusões que as relações podem trazer. Nunca havia lido um romance que descrevesse com tanto detalhe o tédio a dois, as necessidades de variações — sejam elas quais forem — e o silêncio histérico, por assim dizer.

O livro é uma mistura de paixão, tragédia, ironia e profunda reflexão sobre as identidades. Cohen cria um universo grandioso e íntimo. O relacionamento entre Solal e Ariane é marcado por uma força quase mítica, podendo ser tanto uma fonte de transcendência quanto de autodestruição.

Há um capítulo onde Solal passeia sozinho por Paris observando as paredes dos prédios cheias de pichações antissemitas. Ele até compra um jornal que defende a eliminação dos judeus para poder passear mais despercebido. Deixa-o visível sob o braço. Às vezes, enfia o nariz nele. Sua identidade não é aceita. Sua busca por amor, a necessidade de ser novamente reconhecido — agora que ele não é mais nada — reflete uma luta mais ampla contra a marginalização e o exílio. Por trás dos múltiplos detalhes, há inteligentes reflexões sobre a solidão e a incomunicabilidade. Solal e Ariane, apesar de sua conexão intensa, estão presos em suas próprias angústias e inseguranças. É notável como Ariane tenta mantê-los juntos com diversos estratagemas enquanto Solal apenas observa pensando “coitadinha, inventou essa agora, será que vamos nos divertir ou vamos seguir fingindo?”.

Albert Cohen é um mestre. Sua prosa é cheia de digressões poéticas, diálogos afiados e descrições verossímeis. O estilo varia muito, indo desde o vaudeville para o erótico, passando por fluxos de consciência sem pontuação. É Joyce e, ao mesmo tempo, um Proust meio alucinado. O lírico e o satírico convivem bem, criando um texto comovente e estimulante do ponto de vista intelectual.

Deixo-lhes sem dizer o final, claro.

Lendo outras resenhas, soube que Bela do Senhor é frequentemente comparado a clássicos como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, e O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, devido à sua profundidade psicológica e à sua exploração do erotismo e do amor. No entanto, nenhum dos citados tem o humor ácido, a visão desencantada e profundamente humana da vida. Poderia falar em uma ode ao nosso desespero, medos, amor… Enfim, uma ode à nossa complexidade.

P.S. — Até pelo tamanho e lentidão com que a história se desenvolve, Bela do Senhor é infilmável. Mas foi filmado. Fujam. É um horror. Acho cômico que Ariane, descrita no livro com bunda grande e tudo grande, tenha sido vivida pela modelo russa Natalia Vodianova, uma mulher magérrima e, a despeito da beleza, 100% anti-Ariane, cujas formas são bem descritas. Também a escolha de Jonathan Rhys Meyers para o papel de Solal é uma piada. O mesmo, aliás, ocorreu com Keira Knightley vivendo a arredondada Anna Kariênina. Por que a caracterização de personagens fictícios não é respeitada como as caracterizações de personagens reais? Parece brincadeira com os leitores.

Recomendo!

Albert Cohen (1895-1981)

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