No Matinal
Se eu fizesse uma enquete aqui sobre os assuntos mais abordados numa livraria, imagino que surgiriam respostas bem diversas. Um pouco porque, de alguma forma, dá pra dizer que todo assunto é assunto de livraria. E também porque seu objeto e motivo principal de existir é o livro, logo uma livraria inspira e fornece muitos insumos para qualquer debate.
Mas tem um assunto que me chama especial atenção quando aparece, porque mobiliza paixões. Tanto de quem trabalha na livraria quanto de alguns clientes. É um assunto nada óbvio. Não é política nem religião. Também não é futebol.
Acho que o assunto que mais mobiliza paixões dentro de uma livraria é a Amazon. E não é um assunto raro.
Essa semana mesmo aconteceu um desses momentos. Recebemos na Livraria Baleia um pedido de orçamento para aquisição de livros. Isso, a priori, é algo bem corriqueiro na nossa rotina operacional. E na grande maioria dos orçamentos que a gente manda, os preços são os “de capa”, que no jargão livreiro se refere aos preços sugeridos pelas editoras, sem qualquer desconto. A exceção é quando o orçamento pede muitos exemplares de um mesmo título, pois isso nos permite fazer uma compra maior junto à editora e negociar condições mais favoráveis do que no varejo, pois nas compras grandes, a gente ganha na escala.
Pois bem: no tal pedido, enviado pelo setor de compras de uma empresa, a solicitação era de 300 exemplares de um mesmo título. Por isso, conseguimos conceder um bom desconto. Ao menos era o que a gente achava.
Mandamos o orçamento no mesmo dia para o potencial cliente. E a resposta dele veio logo em seguida, com o tom da mais sincera indignação.
Entendedores já devem ter entendido o ponto da questão: ele tinha a expectativa de receber uma lista de preços ao menos parecidos com os da Amazon. Ele estava mais do que indignado: ele parecia decepcionado.
Eu fiquei preocupada com aquele retorno, não só por ser uma venda importante e significativa para o caixa da livraria, mas também pela janela de emoções que se abre sempre que alguém nos acusa (é sempre com paixão, como eu disse) de vender livros “mais caro do que a Amazon”, como se a livraria estivesse sendo desonesta, abusando nos valores e extorquindo quem gosta de ler.
Pode até parecer, mas esse último parágrafo não contém ironia. Eu sinto que é isso mesmo que as pessoas sentem quando descobrem a diferença de preços. E eu também sinto uma indignação profunda quando isso acontece. Porque não poderia haver acusação mais injusta.
Pois, voltando ao tal orçamento, eu parei tudo o que eu estava fazendo para redigir uma resposta que estancasse aquela indignação (a do moço do setor de compras e também a minha).
Fui cuidadosa, pois é assim que se lida com paixões. E também porque parti do pressuposto de que ele realmente não sabia como as coisas funcionavam.
Fiquei satisfeita com a resposta que redigi, no conteúdo e no tom. É sempre bom poder falar em nome de causas justas. E pensei depois que é bem possível que muita gente não saiba como essas coisas funcionam ou como diabos a Amazon oferece aqueles descontos inexplicáveis. Foi aí que decidi contar publicamente esse causo real, que me aconteceu essa semana, em pleno Amazon Prime Day, para dizer que, se esse é o seu caso, você não está só.
A quem interessar possa, reproduzo aqui alguns trechos didáticos sobre o funcionamento da Amazon em relação a livros:
“A primeira coisa a dizer é que a relação da Amazon com livros é diferente da nossa. E pra explicar melhor isso, vou te abrir alguns números: a gente trabalha normalmente com uma margem de ‘lucro’ de 35 a 40% sobre o preço de capa, variando de editora para editora. (…)
Enquanto isso, a Amazon pratica valores menores do que o preço de custo do livro, por mais estranho que isso possa parecer, pois o seu maior ganho não está numa eventual margem de lucro, mas sim nos dados de consumo que todas as pessoas atraídas pelas promoções fornecem a cada clique (é por isso, também, que não é possível fazer compra empresarial com CNPJ na Amazon, pois essa interação não é valiosa para eles). Isso é uma estratégia da empresa, que envolve também enfraquecer outros pontos de venda por meio da concorrência desleal com o objetivo de concentrar vendas e, com isso, poder ditar suas condições comerciais com as editoras.
Procurei o livro na Amazon, ele está com 35% de desconto. Pegue o que sobra e desconte mais impostos, taxa da transação financeira do site, embalagem, manuseio e outros serviços… e a conta não fecha. Entende?
Não vou nem me estender em outras questões éticas, que eu particularmente julgo relevantes, como relações trabalhistas abusivas, o fato de ser uma empresa estrangeira cujos impostos não retornam para a nossa cidade e a contrapartida cultural esperada de qualquer livraria, que, no caso da Amazon, é inexistente. E talvez aqui eu já esteja tratando de opiniões minhas… mas achei que poderia ser produtivo pontuar mesmo assim.
Dito isso, é óbvio que qualquer consumidor tem o direito de comprar onde quiser. E melhor ainda se for sabendo das informações que compartilhei acima.”
Por fim, o assunto já não era mais grana. Ao menos, não pra mim. Finalizei dizendo que a possibilidade de um desconto maior era, de fato, “irreal para qualquer livraria, tenho certeza. E, a rigor, Amazon não é livraria.”
Para saber mais sobre o comércio de livros na Amazon e por que deveríamos evitá-lo (e como deveríamos regulá-lo), eu recomendo dois livros: Contra Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros de Jorge Carrion e Como resistir à Amazon e por quê de Danny Caine, ambos publicados pela Editora Elefante, que não fornece diretamente nenhum livro de seu catálogo para a Amazon.
Mas, afinal, se a Amazon pratica valores menores do que o preço de custo do livro, quem arca com este “prejuízo”: a editora ou a Amazon?
A Amazon é uma empresa gigantesca e o que mais dá dinheiro pra ela nao é o comércio, é a oferta de serviços digitais da “AWS”, Amazon Web Services. Eles ganham mais dinheiro prestando serviços de cloud para grandes empresas. Então eles podem se dar o luxo do prejuízo por anos pra quebrar todos os setores e formando, eventualmente, um monopólio.
Grandes empresas como a Amazon, Ambev, redes de supermercado e farmácias operam em uma escala que o pequeno empresário jamais conseguirá igualar. É inviável para um pequeno negócio competir, por exemplo, com o preço de um salmão vendido no Carrefour. Essas grandes corporações compram em volume — vários contêineres de uma vez —, o que lhes garante condições e preços muito mais vantajosos. Minha esposa, que foi revendedora de medicamentos veterinários, frequentemente via a Petz vender produtos mais baratos que os próprios distribuidores e fabricantes de ração! O preço de venda para o pequeno empresário era superior ao que Petz vendia para o consumidor final! E esse preço costumava ser menor até mesmo que o preço que o Distribuidor comprava do Fabricante. Inacreditável.
Há uma nova e crescente tendência, originada no Vale do Silício, em que grandes empresas operam com prejuízo por anos a fio para dominar o mercado e eliminar a concorrência. Essa prática predatória é claramente observada em empresas como Amazon, Spotify e Uber. São empresas listadas na Bolsa e que conseguem alavancar esses investimentos e gerir os prejuízos contábeis de forma eficiente e artificial. Vide Tesla, por exemplo.
É comum que grandes redes de farmácias, como a Araújo em Belo Horizonte, abram duas ou até três lojas muito próximas na mesma rua, especialmente em áreas de grande movimento. O objetivo é desestimular a concorrência. O pequeno empresário, ao ver tantas unidades de uma mesma rede, pensa: “Por que eu abriria uma farmácia aqui para competir com eles?”. Essa estratégia visa aniquilar a concorrência, conforme me foi relatado por um diretor da própria rede Araújo. Supermercados, como a rede Supermercados BH em Minas Gerais, adotam a mesma tática.
Embora o consumo consciente seja importante, a maioria dos consumidores sempre buscará o preço mais baixo. Essa é uma batalha perdida para os pequenos negócios, pois a tendência de concentração de mercado é inevitável.
No meu caso, como compro muitos livros, procuro adquiri-los em sebos da minha cidade antes de procurar por edições novas. Embora os sebos estejam cada vez menores, essa é uma forma de tentar resistir a essa concentração, mesmo sabendo que minha contribuição individual não fará uma diferença significativa no mercado geral.