Os dois últimos livros de Lídia Jorge, este Diante da manta do soldado (2024) e Misericórdia (2022), ambos publicados recentemente no Brasil pela Autêntica, receberam tantos prêmios europeus que, para um leitor como eu, é impossível não voltar a atenção para esta autora portuguesa. E olha, como valeu a pena! Com uma prosa densa, profundamente poética, Lídia narra não apenas a relação de uma filha com seu pai, como nos dá um surpreendente relato de um país sob ditadura — com sua alta taxa de imigração por absoluta falta de perspectivas –, de sexualidades (bem) ativas e de uma família em desintegração. Pode-se dizer que o livro é um registro poético da memória pessoal e coletiva daquele Portugal.
O ponto de partida é um simples objeto: uma velha manta militar, testemunha de um passado familiar marcado pela Guerra Colonial da África. Mas neste livro não se fala em guerra, fala-se da vida familiar e suas traições. A narradora coloca-se literal e figurativamente “diante da manta” para interrogar o que significa herdar somente memórias. Ela desdobra e desfaz o objeto, fio a fio, revelando o que não é matéria de discussão, e sim os traumas silenciados e a complexa relação das pequenas histórias domésticas.
A narradora tem um pai que deixou Portugal quando ela ainda estava na barriga da mãe. O patriarca da família manda outro filho (o obediente) casar com a moça grávida. Ele seria o pai da criança, que logo descobre ser filha de outro. Não, não estamos numa novela mexicana, esqueça — a coisa aqui é de outro nível. Então, a narradora mergulha em uma jornada de resgate da memória e dos laços familiares, guiada por lembranças incertas, silêncios e saudade. Ela imagina receber a visita do pai, mas os únicos sinais enviados por ele chegam por cartas dos mais diversos lugares, sempre acompanhadas de lindos desenhos de aves exóticas. O final da trama ocorre em Buenos Aires e é totalmente inesperado, penso eu.
O livro tem 100 capítulos e 200 páginas de prosa clara, ritmada e lírica, dando voz tanto à intimidade quanto aos ecos da perda. Tudo começa lentamente, mas vai ganhando velocidade e termina com o leitor engolindo rapidamente as páginas. Diante da manta fala da persistência da memória, do eco das vidas partidas e da responsabilidade que carregamos diante do passado. A palavra e a poesia não alteram o passado, mas reparam um pouquinho o que a violência destruiu.
Recomendo muito!
















O Presidente está catalogado como um dos “romances sérios” de Georges Simenon. Os do detetive Maigret estariam no escaninho dos não-sérios. E, com efeito, trata-se de um livro ambicioso, um exercício plenamente justificado e bem sucedido.