Atrás do balcão da Bamboletras (LXIX)

Prezados Pais.

Quando seus filhos receberem uma solicitação de livro para a escola, não deixem para comprar no último dia. Acabo de atender um pai totalmente HISTÉRICO, enlouquecido porque a Livraria Bamboletras não tinha um livro publicado em 2015 e eu lhe disse que só conseguiria a coisa para AMANHÃ… Claro, ele queria ter o livro hoje para o guri começar a ler imediatamente porque a prova é amanhã. Realmente, amanhã é tarde.

Perguntei se o pai já tinha a lista de livros há muito tempo e ele disse que há 15 dias. Não fiz mais perguntas.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXVIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXVIII)

(Mil vezes contar uma história autodepreciativa do que uma em que brilho, mas fazer o quê?).

— Boa tarde, Grande Milton!

Ih, mais um louco, pensei.

— Boa tarde — respondo ao desconhecido.

— Tu não vai lembrar de mim, mas tu mudaste a minha vida.

— Pra pior, certamente.

— De jeito nenhum.

O sujeito estava tão entusiasmado que a frase seguinte não era de todo um absurdo.

— E como foi que salvei tua alma?

— Me indicando um livro. Eu te pedi um livro de psicologia que era sobre hiperfoco e obsessão e tu disseste que não tinha a obra e nem tinha como identificar outro sobre o tema. Mas me indicaste um livro de ficção, O LIVRO PERFEITO: Michael Kohlhaas. Aquilo é um tratado sobre hiperfoco e obsessão!!!

— Adoro o Kohlhass — afirmei e é fato.

Neste momento, eu, que não lembrava do cara e que estava no computador sem saber direito o que era hiperfoco, sorri fingindo fazer outra coisa e escrevi rapidamente do DeepSeek: “Kohlhaas e hiperfoco. Há relação?”

E o cara seguia:

— Li o Kohlhaas não sei quantas vezes, é maravilhoso! E pude entender muito mais coisa do que entenderia lendo um livro de especialista.

— Sim, aquilo é um paroxismo tão poderoso quanto manter aberta uma livraria apesar da Amazon… Kohlhaas é um dos livros mais impressionantes que já li, mas sei lá o que é hiperfoco.

— Eu sou psicólogo e…

Deixei de ouvir o cara porque e vi que o DeepSeek me respondia. Fiz uma leitura a toda velocidade. Abro aspas:

“Kohlhaas e Hiperfoco: Uma Relação Inesperada (e Intensa)
A história de Michael Kohlhaas – o protagonista da novela Michael Kohlhaas (1811), de Heinrich von Kleist – e o conceito moderno de hiperfoco (comum em TDAH e neurodivergências) têm mais em comum do que parece. Ambos envolvem:
1. A Obsessão que Consome Tudo
(Mil detalhes que ignorei)
2. A Linha Tênue Entre Determinação e Fanatismo
(Mil detalhes que ignorei)
3. A Neurodivergência como Leitura Possível
(PQP, o que significa neurodivergência?)
Veredito (do DeepSeek): Sim, há relação! Kohlhaas é o hiperfoco em forma de tragédia literária. Se ele tivesse um pouco de flexibilidade cognitiva, talvez sua história terminasse melhor… Mas aí não seria Kleist”.

Olhei para o cara sorrindo e pensei com meus botões:

“Futebol é bola na rede”.

(Abaixo, Heinrich von Kleist).

Heinrich von Kleist, por Anton Graff

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXVI)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXVI)

A Livraria Bamboletras está dentro de uma igreja com vitrais e estou ouvindo música sacra de Heinrich Schütz. Apesar das opiniões deste que vos escreve, o ambiente é pra lá de religioso.

Chega um menino meio tímido que se identifica como filho do poeta Marco de Menezes.

Ele estranha um pouco o ambiente, me olha meio desconfiado, creio eu. Então me diz que veio trazer exemplares do último livro de seu pai, “Como estou dirigindo”. Olho a camiseta dele e vejo um dos brasões da torcida Inter Antifascista:

— Nossa que camiseta linda! — eu digo com admiração.

Ele parece desanuviar, incrédulo pelo fato daquele pastor, ou do “Pai Milton da Bambô” ter gostado de uma camiseta com a imagem da foice e do martelo.

— Acha mesmo? — ele pergunta sorridente.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXIV)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXIV)

Ele entrou atrás de um livro para a filha. A menina precisava de “O Monstro do Guaíba”, um bom infanto-juvenil que poderia ser a respeito do prefeito Melo, mas não é.

Tenho a mania de perguntar o nome antes de atender.

— Meu nome é Ismael.

— Bah, que legal!

— Por quê? Por causa da Bíblia? Isso aqui era uma igreja…

— Não, nem sabia da Bíblia. Tem um Ismael também lá?

— Tem, é filho de Abraão, que tinha 86 anos quando ele nasceu.

— Nossa, os caras da Bíblia tinham uma vida sexual bem prolongada.

(risadas)

— Mas de que Ismael tu está falando?

— Do narrador de Moby Dick.

— Não brinca que o narrador do Moby Dick se chama Ismael!

— Sim. E a primeira frase do livro é muito famosa: “Call me Ishmael”. O livro é narrado na primeira pessoa.

— Bahhh… Só conhecia a baleia e o Capitão Ahab. E só de ouvir falar. Vou ter que ler Moby Dick.

— Tenho também um livro sobre Abraão…

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXIII)

— Oi, tudo bom? Eu quero aquele livro do clitóris.

— Ah, “O prazer censurado: clitóris e pensamento”?

— Sim, esse mesmo! De Catherine Malabou. É sobre o apagamento do clitóris nas narrativas e na arte.

Lá fui eu atrás do livro. Passei no meio de um casal pedindo licença, na maior educação. Parei na frente da estante, suspirei e disse, desatento.

— Agora é só achar o clitóris.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXII)

Este é Junior Rostirola, pastor evangélico e autor do best-seller “Café com Deus Pai”, livro que deverá ser o mais vendido de 2025. A lastimável figura que o acompanha é, infelizmente, conhecida de todos.

A Livraria Bamboletras tem o orgulho de anunciar que não vendeu nenhum exemplar deste livro este ano. E nem venderá.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXI)

Hoje pela manhã, inaugurei uma estratégia de vendas inédita na tua, na nossa Livraria Bamboletras. Adianto que não deu certo. Ou deu.

Desci, liguei os computadores, abri a porta e comecei a responder as mensagens do WhatsApp. Então a Elena desceu e perguntou com um meio sorriso se muitas pessoas já tinham entrado na Livraria. Respondi:

— Pois é, são 10h30 e ninguém entrou.

Ela rebateu:

— Claro, tu não abriste o portão da rua.

Mesmo assim, foi o melhor dia das últimas 3 semanas. Talvez eu tenha descoberto algo novo.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LX)

Um muito jovem casal visivelmente apaixonado entra na Livraria Bamboletras. Havia música ao vivo, com a Elena e o Alexandre Constantino tocando Sonatas de Bach para Violino e Teclado. Cheio de risinhos, o casal cuidava mais um do outro do que de livros, literatura ou música.

Ela tinha certa luz, ou seja, parecia inteligente. O garoto era só bonitinho, e passava a toda hora a mão no fugidio bigode, talvez de duro cultivo. Eu o aconselharia a tirar logo aquilo.

Depois, a menina foi se aproximando dos músicos, enquanto o guri vinha falar comigo. Ele perguntou por um livro muito ruim, daqueles que destroem a poesia da coisa. Pediu um mangá ruim. Fiquei triste.

Na saída, ela disse que nunca tinha ouvido aquele tipo de música ao vivo e que estava encantada.

.oOo.

Prognóstico do terapeuta de plantão da Bambo: não dura muito. É muita areia pro carrinho do menino. Nem com duas viagens. Ele e seu bigode ficarão magoadíssimos.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LVIX)

A cliente, uma querida, entra e diz:

— Quero um livro bem leve, daqueles onde eu possa entrar e ficar. Bem, é muito complicado, né? Se eu entrar e me interessar é porque certamente terá um gatilho. Então queria um livro de crônicas bem… — faz um gesto de leveza, como se fosse voar.

Dou algumas sugestões pensando naquela frase inteligente do gatilho e noto que ela leu quase tudo, inclusive as bigornas. Ela vê um da Martha Medeiros de relatos de viagem e diz:

— É disso que eu preciso.

E encomendou dois livros que, pelo menos um deles, não é nada tranquilo. Eu gosto dos clientes, sabem?

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Atrás do balcão da Bamboletras (LVIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LVIII)

Ontem, eu falava com uma cliente sobre ter “dedo podre”. Ela reclamava do dela, que seria infalível, só apontava porcaria. Sim, o balcão da Livraria Bamboletras é um divã gratuito. O problema é que o terapeuta sou eu.

Mas eu faço o maior esforço. A cliente estava no terceiro relacionamento e foram três “esplêndidos reveses”. Perguntei se ela realmente desejava um relacionamento estável. A resposta foi um sim bem afirmativo.

Então, fiz aquela cara de Freud e — pensando paralelamente que meu segundo casamento fora uma clara manifestação de dedo putrefato (evitei olhar minhas mãos) — disse que a Manuela D’Ávila namorara aquele Maroni, que o Woody Allen e a Mia Farrow apontaram um para o outro, etc.

Depois, resolvi tentar ser inteligente mas só pensava bobagem — que a coisa depende de como a gente se vê (lugar comum), que tudo dependia de um bom período prévio (afinal, ensaiar é bom!), que talvez seja hereditário (caímos na risada…), que é complicado não se deixar levar pelo tesão…

— Não! Um cara feio como o diabo. Nunca tive grande atração por ele.

Foi neste momento que concluí que o caso não era pra mim e desisti da minha carreira como psicólogo.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LVII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LVII)

Estou ouvindo cada um dos meus CDs — são mais de 3 mil — e chegou a vez da Obra Completa para Órgão de meu tio Sebastião Ribeiro, também conhecido como Johann Sebastian Bach (vai ver no dicionário o que significa Bach, vai agora, vai!).

São 12 CDs e eu estou achando muito estranho ouvir órgão às vezes sozinho dentro de uma igreja. Agora chegou uma cliente aqui e falei de minha estranheza para ela. Ela disse que não me achava com cara de pastor. E me olhou nos olhos com tal intensidade que comecei a pensar se ela não teria alguma perversão que incluísse… órgãos, talvez.

Importante dizer que sou uma natureza fiel. E um velho de 67 anos.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LVI)

Atrás do balcão da Bamboletras (LVI)

O carteiro chega aqui na Livraria e me entrega um embrulho. Fico feliz ao abrir. Era um Nossa Parte de Noite que estava encomendado há séculos. Então ele olha pra mim e diz que eu nunca vou ter Alzheimer. Pergunto por quê.

— Quem ouve música clássica aumenta o número de sinapses.

Dou uma discreta risada.

— A ECT está empregando neurologistas como carteiros?

Ele sorri:

— Eu sei das coisas.

Neurons in the head – flight, neuroactivity, synapses, Neurotransmitters, brain, axons

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Atrás do balcão da Bamboletras (LV)

— Tem “O Jardim das Aflições”, do Olavo de Carvalho? — pergunta o jovem com uma carinha engomada de MBL que vou te contar.

— Não.

— E dá para encomendar?

— Conheço uma livraria que encomendaria pra ti. É de um bolsonarista. É a livraria X. É incrível mas o livreiro é bozo.

— E vocês não encomendam?

— Prefiro não — disse eu, pensando em Bartleby –, acho pernicioso.

Outro cliente atrás dele tapava o rosto, rindo. Eu permanecia impávido.

— Tá bom — disse o xófem.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LIV)

Devíamos estar ali pelo início de junho. Houvera a enchente de maio e todo mundo estava deprimido, pois ela atingira, direta ou indiretamente a todos. A livraria, claro, estava com poucos clientes e a gente bem desesperado. Aliás, deixa pra lá… Mas a situação de muitos cães era ainda pior. Centenas ou milhares fugiram e estavam perdidos nas ruas.

Numa tarde nublada, por volta das 15h, saí da livraria para olhar o céu e dei de cara com um simpático cão, meio grande e preto. Não era um viralatão bonito, mas havia muita vida e esperteza naquele corpo. Acho que ele teve a sensibilidade de ver que eu fiquei com pena dele. E entrei de volta para a livraria.

Quando fomos fechar, às 19h, o Bruno me chamou. Queria perguntar o que deveria fazer com aquele cachorro na nossa porta. Ele estava em pé, bem sedutor, abanando o rabo pra nós. Bruno perguntou se eu queria ficar com ele. Respondi que temos o exclusivista Vassily Kandinsky, o gato da Elena, que entraria em crise com a companhia. (Ele não suporta outros gatos e eu sou mal e mal aceito).

— OK, então ele é meu.

E o Bruno chamou o cachorro, que o acompanhou até seu apartamento, sem coleira, a umas 6 quadras da livraria. Depois me mandou fotos do cachorro comendo e bebendo água. Ficou muito feliz e passou a chamá-lo pelo nome ultrachique de Besançon.

Viraram uma dupla. Digno de seu nome, Besançon mostrou-se muito educado. Jamais fez xixi em casa, por exemplo. Só que, na ausência do Bruno, pulava a janela do apartamento de primeiro andar e fazia passeios pela marquise. Óbvio que achava que aquilo era uma parte divertida do apê. Afinal, dava para ver as pessoas lá embaixo indo e vindo.

Um dia, o Bruno estava voltando do almoço quando viu um monte de gente na frente de seu prédio. Iam chamar os bombeiros porque um louco tinha deixado um cachorro na marquise. Impossível que o cão sozinho tivesse chegado ali. E o Bruno viu o Besançon todo feliz com o show. Latia e balançava o rabo, totalmente realizado com o sucesso alcançado.

Então o Bruno gritou:

— Já pra casa, Besançon!

O cachorro levou um susto e pulou pelo vãozinho da janela que ele mesmo tinha conseguido abrir com o focinho. Alívio geral.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LIII)

Entra um cliente esbaforido e pergunta pelo livro X. Diz que precisa dar de presente hoje para sua mulher, que faz aniversário. Eu lhe respondo que vendi o último à tarde, depois olho para trás e vejo que há um exemplar na reserva. Eu prometi para o cliente que reservou entregar-lhe o livro entre 10 e 12h amanhã. Mandei até uma foto do livro, idiota que sou. Chega aquele momento de reflexão que começa por PQP.

— PQP, o cara está aqui, quer o livro. E o livro está ali.

Já notei que todo livreiro gosta de correr riscos. Nem é pela grana, é pela função mesmo, pelo prazer da logística alucinada de correr atrás. Penso que posso ir cedinho na distribuidora, pegar o livro — se houver… — e abrir a Livraria um pouco depois do horário.

Retiro lentamente o livro da prateleira das reservas e digo para o cliente que olha, este está reservado e coisa e tal. O cara é um bom sujeito e diz que não quer me prejudicar junto a outro cliente. Eu reflito novamente, desta vez começando por f°da-se.

— F°da-se, dou um jeito.

E vendo o livro.

Enquanto passamos o cartão, ele me pergunta sobre quem escreve aquelas resenhas no perfil da Livraria Bamboletras. Eu digo que sou eu. E ele diz:

— Muito, mas muito melhor que os textos das editoras. A gente fica se coçando pra ler os livros.

Eu agradeço e digo que se não escrever algo, é como se não tivesse finalizado a leitura.

Então, amanhã pela manhã, às 8h30, estarei correndo para fazer a substituição. Se vocês verem um louco correndo pelo centro de Porto Alegre, há boas chances de ser eu.

.oOo.

Deu tudo certo, mas com emoção. Fui na distribuidora e não tinha o livro. Pedi em outra e tinha, mas o motoboy que foi buscar teve im contratempo — o cabo do acelerador da geringonça se rompeu. Mas entregamos o livro sem problemas ao meio-dia. O livro era fácil de achar: era o excelente Bambino a Roma, de Chico Buarque.

 

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Atrás do balcão da Bamboletras (LII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LII)

9h de sábado. Desço ainda com sono para a Livraria Bamboletras. O telefone toca. Nem tinha ligado o computador. Atendo e do outro lado está uma voz apressada perguntando se eu tenho o último livro do Chico Buarque. Respondo que sim.

— Então vou mandar um Uber aí AGORA. Quero fazer uma surpresa para o café da manhã da minha esposa. Faz uma embalagem de presente enquanto eu faço o pix.

Ainda estava meio dormindo quando o motoboy chegou.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LI)

Eu estava na Livraria Bamboletras e subi correndo para terminar um café. Quando cheguei na cozinha, a Elena me perguntou:

— Quem estava tocando piano lá embaixo? Tocava muito bem.

Pois bem, eu não sei quem estava tocando. Ou melhor, sei muito bem, mas ignoro o nome dela. Era uma senhora de mais de oitenta anos. Sei que ela entrou com sua filha e neto. Olhou para o piano e disse que era pianista. Vi que suas mãos tremiam bastante, só que li Alucinações Musicais, brilhante livro de Oliver Sacks, e sabia que ela deixaria de tremer quando pusesse as mãos no teclado.

Ofereci o piano pra ela tocar. Ela olhou para a filha e perguntou se dava tempo pra ela dar uma experimentada antes do aniversário ao qual iriam.

A filha disse claro mãe, vai. Ela iniciou hesitante, obviamente não conhecia o piano. Na segunda música já estava perfeitamente adaptada e nos fez ouvir um interessante Czardas, de V. Monti.

Ficou tão feliz com o piano que não parava de elogiá-lo e queria dar presentes pra todo mundo, pro neto, pra filha, pro genro que chegou depois, pra todo mundo.

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Atrás do balcão da Bamboletras (L)

Atrás do balcão da Bamboletras (L)

De manhã, bem cedo, a moça me liga. Diz que está em Londres e quer dar dois presentes — um para seu pai e outro para um amigo, ambos aqui em Porto Alegre.

Digo-lhe que Londres é a cidade que mais amo no mundo. Ela conta que a cidade está linda no verão, toda florida. Eu fui lá 4 vezes, passei boas temporadas, mas sempre no inverno.

Ela me pede livros impossíveis, fora de catálogo ou jamais traduzidos, mas logo entramos em acordo sobre os presentes. Ela faz um pix e me diz que passa os dias nos parques, estudando. Tem 25 anos. Eu recebo o pix e digo que temos um solzinho bem tímido aqui. Ela quer saber minha idade, chuta que eu tenho 30 anos. Eu lhe digo que sou um velho de 66. Ela dá uma gargalhada e diz que eu sou mais velho que o pai dela, mas que minha voz é jovem. Minha hora de rir.

Ela repete que o livro do pai tem que entregue na segunda porque é o dia de seu aniversário.

Despedimo-nos e eu fico pensando naquela entrada do Hyde Park, vindo da Exhibition Road. Logo ela me manda os endereços de entrega pelo WhatsApp e uma foto. Tenho quase certeza que é do Green Park.

 

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Atrás do balcão da Bamboletras (XLIX)

Atrás do balcão da Bamboletras (XLIX)

Às vezes acontecem coisas incrivelmente bonitas por aqui. Dia desses, entrou uma senhora na Livraria Bamboletras. Depois eu soube que seu nome era Circe, o que me lembrou da Odisseia de Homero e do Ulysses de Joyce. Ah, esses caras metidos a literatos, né? Mas esqueçam, isso não interessa.

O fato é que ela olhou a escada que leva ao andar de cima e vieram-lhe lágrimas aos olhos. Eu achei que ela estava triste, só isso, e me virei de costas para não constrangê-la. Afinal, ela não estava olhando para mim e sim para a escada. Então, ela chegou ao balcão e disse:

— Vocês mantiveram a escada do tempo de meu avô…

Aí não entendi mais nada. A Bamboletras está em uma ex-igreja. Que negócio é esse de avô? Circe tratou de se refazer.

— Te explico. Meu avô construiu esta casa, depois veio a igreja e reformou tudo, colocando vitrais, torres e derrubando algumas paredes. Ele construiu isso aqui na primeira metade do século passado.

E ela começou a me contar como era tudo — o piano que ficava debaixo da escada, o local onde as visitas eram recebidas, onde ela dormia, as já apagadas marcas no reboco com as “assinaturas” de todos os netos, a sacada que não existe mais e que ficava voltada para o pátio…

E então ela me contou a mais bela das histórias.

Sua mãe, quando jovem adolescente, ia frequentemente até a sacada, para tomar sol, ler e estudar. Ao lado, ficava um edifício com suas janelas. Aliás, ele ainda está no mesmo lugar. Um jovem rapaz que morava num dos apartamentos costumava observar aquela moça que ficava ou flanava pela sacada, que era enorme. Um dia, o rapaz resolveu que tinha que falar com ela de qualquer maneira. Escreveu declarações de amor numa folha de caderno, enrolou a folha numa batata para que não fizesse muito barulho ao cair e atirou o artefato quando a moça estava por ali. Ela pegou a batata, leu tudo e acabou vendo o rapaz na janela.

Ela deve ter gostado, pois mandou a batata de volta com algumas perguntas, interessando-se pelo rapaz. A troca de batatas seguiu por um longo tempo, pois namorar não era como agora.

Bem, esses dois são os pais de Circe.

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Atrás do balcão da Bamboletras (XLVIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (XLVIII)

Várias e boas conversas ocorreram hoje à tarde na Livraria Bamboletras. Um velho professor de literatura conversou comigo e com quem estava próximo sobre o “balaio de preconceitos” que aflorou nos últimos dias. Há os bolsonaristas que criticam O Avesso da Pele sem tê-lo lido, claro, mas há gente mais próxima de nós que só consegue falar nos poucos palavrões do livro e que o acusam de ser, pasmem, um livro racista por causa de uma cena de séquiço da qual, sinceramente, não lembro. A cena seria racista ao inverso! Ou pornográfica… Qualquer coisa serve para acusar. E meu amigo perguntou: quantos livros acusados de pornográficos se tornaram clássicos para a geração seguinte? Um monte. É só o tempo de esvaziar o balaio.

O estranho é que a história do pai sumiu da boca desses caras. O cerne virou coisa secundária. A falência educacional de nosso país descrita no Avesso é terciária. O balaio transformou o livro em outra coisa.

Os outros papos foram mais legais, excetuando-se aquele sobre Israel…

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