Antes de abrir a livraria, respondendo a alguns contatos:
— Olá! Bom dia, tudo bem? 😊 Eu me chamo X., sou escritora/jornalista e estou à frente do projeto Mapa das Livrarias de Rua de Porto Alegre, junto com minha amiga, a artista visual X. Vocês aceitam responder a 2 perguntas para que eu possa incluir no Mapa? Obrigada!
— Boa tarde! Sim, claro!
— Obrigada por toparem:
Perguntas:
1 – Qual o tempo de existência da livraria?
2 – Se a Bambo fosse indicar um livro ao seus leitores, aquele que melhor lhe representa, qual seria?
— Respostas:
1. A livraria tem 30 anos.
2. Bem, os livros que nós mais vendemos nos últimos quatro anos foram “Os Supridores”, “O Infinito em um Junco”, “Manual da Faxineira”, “O Avesso da Pele”, “Pessoas Decentes”, “Mas em que mundo tu vive”, “O Mestre e Margarida” e “A Contagem dos Sonhos”. Talvez o somatório destes livros seja como os leitores nos veem. E somos orgulhosos desta lista.
Eram umas 18h quando Eveline entrou correndo buscar um livro. O livro era Ellis Island, de Georges Perec. Ellis Island é uma ilha no porto de Nova Iorque, um símbolo da imigração para os Estados Unidos. Por lá chegaram mais de 12 milhões de imigrantes, inclusive a família Trump.
Mas o que interessa foi o diálogo que tivemos. Eu perguntei a Eveline:
— Quem era o joyceano, o teu pai ou a tua mãe?
— Não entendi. Por que joyceano?
— Porque teu nome é o título de um conto de Dublinenses de James Joyce e nunca tinha conhecido alguém com este nome.
— Não brinca! Tem um conto de Joyce chamado Eveline?
Fui até a estante e puxei o Dublinenses. Abri o celofane e comecei a procurar o conto. Demorei a encontrar. Enquanto isso contava como era a história de sua homônima no livro. Jurava que o conto estava lá pro final. Nada disso, estava quase no início. Mostrei-o a ela, que ficou bem feliz.
— Tu não vai acreditar. Eu estou dando o Ellis Island pra minha filha porque ela se chama Ellis e todo mundo diz que é por causa da Elis Regina e eu quero mostrar a ela — que agora está ficando maiorzinha — que o nome Ellis existe.
Olhei surpreso para ela, que completou:
— Mas agora acabo de descobrir algo que diz respeito ao meu nome!
Falei um pouco sobre o Dublinenses e, pô, ela levou dois livros fantásticos para casa. Ela saiu dizendo:
Cada vez mais entram mendigos desesperados aqui na Livraria Bamboletras. Fome, simplesmente, está na cara deles. E a gente quase só recebe em pix e cartões. Eles não acreditam que não tenhamos cédulas ou que as moedas já tenham sido solicitadas.
Li hoje que a Argentina está numa situação social de século XIX, com poucos super-ricos e muitíssimos super-pobres. Não creio que nossa situação seja muito diferente.
Estou no meio, recebendo os mendigos e tentando não cair, apesar das pauladas do quase trilionário Bezos e sua horrenda Amazon.
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Obs. das 10h48: abri a livraria às 10h. Já entraram 2 pessoas pedindo dinheiro.
Todas as livrarias devem estar cheias de histórias bonitas. Vejam o que aconteceu hoje pela manhã aqui na Bamboletras. Isto nunca vai acontecer na Amazon.
Veio um rapaz querendo comprar um livro para sua namorada. Pediu uma sugestão dentre os livros da Annie Ernaux. Eu lhe apresentei rapidamente os que tínhamos (quase todos) e ele se interessou claramente por um deles.
E me contou que ontem sua namorada (ou esposa, o que sei eu) narrou-lhe uma história passada na sua pré-adolescência em Santo Ângelo (RS). Ela tinha uma amiguinha que morava numa fazenda. Nos aniversários, muita gente era convidada, mas havia três ou quatro amigas preferidas que ficavam mais uns dois ou três dias para brincar na fazenda. Ela sempre ficava. Mas, um dia, o convite não foi extensivo a ela. Ela contou a história e chorou, voltando àqueles dias.
O livro pelo qual o rapaz se interessou foi “Memória de Menina”.
Hoje teremos música à noite, mas não me sai da cabeça a visita que recebi pela manhã da parte de uma professora aposentada.
Há alguns dias, ela tinha me enviado um Whats pedindo livros infantis que tratassem de abuso sexual na infância. Pesquisamos e encontramos alguns. Ela escolheu dois e hoje veio buscá-los.
Ficamos conversando bastante — ela comprou também um Oblómov — e depois eu perguntei:
— Posso te perguntar porque quiseste estes livros infantis, ou seja, livros sobre este tema?
— É que eu faço um trabalho voluntário na Vila X no contraturno do horário escolar e o tema deste mês é o abuso. Preciso dos livros para me inspirar. No ano passado, já fizemos isso. A coisa teve resultados…
— Resultados?
— Sim, duas denúncias. Uma mãe expulsou o padrasto quando a criança teve coragem de contar pra ela o que acontecia e outra disse dentro da sala de aula que seu avô fazia aquelas coisas feias com ela. O crime é quase sempre cometido por gente de dentro de casa. Como estudei a respeito, posso te dizer que é assim em 68% dos casos. E não tem relação com classe social.
Hoje, veio uma turma de uma escola aqui na Bamboletras. Eles tinham 10 e 11 anos e eram de um colégio particular. Vieram de ônibus a fim de aprenderem a andar no transporte público. As crianças estavam acompanhadas de duas professoras bem legais e de uma menina um pouco mais velha que parecia uma monitora. Deu tudo muito certo. Eles se comportaram, fizeram carinho no Max, compraram livros, lancharam no nosso pátio e se despediram.
Lembrei de minhas turmas escolares. Tenho 67, então lembrei de 57 anos atrás. Havia o colega chato, o agitado, o com problemas, o deprimido, o nota-dez, o que não queria nada com nada, etc. Pensando no passado, ouso me atribuir o papel de nota-dez bagunceiro, uma figura não tão comum.
Os papéis estavam claros na turma. O chato queria só livros de adultos — uma das professoras cortou o “Ainda estou aqui” que ele queria — e o deprimido não queria nenhum livro. Foram os que não compraram. Eu não poderia ser professor de alunos dessa idade. Estava louco pra chacoalhar o deprimido. Ele queria um livro de “Mistério”. Trouxe 3 e ele nem olhou, ficou de braços cruzados. O agitado com problemas só queria DVDs — sim, temos alguns de música e ele encasquetou que ia levar os quartetos de Villa-Lobos… A professora interveio. As duas meninas notas dez compraram livros adequados, mas queriam mesmo era saber o preço de “Tudo sobre o amor”, da bell hooks. Para o que não queria saber de nada sugeri um livro curto. Saquei na hora qual era a dele.
Foi muito, muito bom recebê-los. O Max ficou tímido com tanta gente perguntando sobre sua idade, nome e passando-lhe a mão. Acho que ele se sentiu desrespeitado. Vá entender os felinos.
Quando seus filhos receberem uma solicitação de livro para a escola, não deixem para comprar no último dia. Acabo de atender um pai totalmente HISTÉRICO, enlouquecido porque a Livraria Bamboletras não tinha um livro publicado em 2015 e eu lhe disse que só conseguiria a coisa para AMANHÃ… Claro, ele queria ter o livro hoje para o guri começar a ler imediatamente porque a prova é amanhã. Realmente, amanhã é tarde.
Perguntei se o pai já tinha a lista de livros há muito tempo e ele disse que há 15 dias. Não fiz mais perguntas.
(Mil vezes contar uma história autodepreciativa do que uma em que brilho, mas fazer o quê?).
— Boa tarde, Grande Milton!
Ih, mais um louco, pensei.
— Boa tarde — respondo ao desconhecido.
— Tu não vai lembrar de mim, mas tu mudaste a minha vida.
— Pra pior, certamente.
— De jeito nenhum.
O sujeito estava tão entusiasmado que a frase seguinte não era de todo um absurdo.
— E como foi que salvei tua alma?
— Me indicando um livro. Eu te pedi um livro de psicologia que era sobre hiperfoco e obsessão e tu disseste que não tinha a obra e nem tinha como identificar outro sobre o tema. Mas me indicaste um livro de ficção, O LIVRO PERFEITO: Michael Kohlhaas. Aquilo é um tratado sobre hiperfoco e obsessão!!!
— Adoro o Kohlhass — afirmei e é fato.
Neste momento, eu, que não lembrava do cara e que estava no computador sem saber direito o que era hiperfoco, sorri fingindo fazer outra coisa e escrevi rapidamente do DeepSeek: “Kohlhaas e hiperfoco. Há relação?”
E o cara seguia:
— Li o Kohlhaas não sei quantas vezes, é maravilhoso! E pude entender muito mais coisa do que entenderia lendo um livro de especialista.
— Sim, aquilo é um paroxismo tão poderoso quanto manter aberta uma livraria apesar da Amazon… Kohlhaas é um dos livros mais impressionantes que já li, mas sei lá o que é hiperfoco.
— Eu sou psicólogo e…
Deixei de ouvir o cara porque e vi que o DeepSeek me respondia. Fiz uma leitura a toda velocidade. Abro aspas:
“Kohlhaas e Hiperfoco: Uma Relação Inesperada (e Intensa)
A história de Michael Kohlhaas – o protagonista da novela Michael Kohlhaas (1811), de Heinrich von Kleist – e o conceito moderno de hiperfoco (comum em TDAH e neurodivergências) têm mais em comum do que parece. Ambos envolvem:
1. A Obsessão que Consome Tudo
(Mil detalhes que ignorei)
2. A Linha Tênue Entre Determinação e Fanatismo
(Mil detalhes que ignorei)
3. A Neurodivergência como Leitura Possível
(PQP, o que significa neurodivergência?)
Veredito (do DeepSeek): Sim, há relação! Kohlhaas é o hiperfoco em forma de tragédia literária. Se ele tivesse um pouco de flexibilidade cognitiva, talvez sua história terminasse melhor… Mas aí não seria Kleist”.
Olhei para o cara sorrindo e pensei com meus botões:
A Livraria Bamboletras está dentro de uma igreja com vitrais e estou ouvindo música sacra de Heinrich Schütz. Apesar das opiniões deste que vos escreve, o ambiente é pra lá de religioso.
Chega um menino meio tímido que se identifica como filho do poeta Marco de Menezes.
Ele estranha um pouco o ambiente, me olha meio desconfiado, creio eu. Então me diz que veio trazer exemplares do último livro de seu pai, “Como estou dirigindo”. Olho a camiseta dele e vejo um dos brasões da torcida Inter Antifascista:
— Nossa que camiseta linda! — eu digo com admiração.
Ele parece desanuviar, incrédulo pelo fato daquele pastor, ou do “Pai Milton da Bambô” ter gostado de uma camiseta com a imagem da foice e do martelo.
O sujeito pede o livro “Uma Vida Pequena” e já sai perguntando se é muito deprimente. Eu respondo que não li o livro, mas que ele vende bem e nunca soube de algo especial a respeito. Ele diz que é o presente que sua filha pediu. Ela está fazendo 18 anos, o sr. sabe, né?
Na verdade, não sei nada. Pergunto se ela sofre de depressão. Ele responde que não, é que ela está naquela idade. Ih, rapaz, um controlador.
— Ela tem saído muito? — eu pergunto.
— Não, ela é correta, mas eu tenho medo de tudo, dos perigos reais e das influências, dos namorados também.
— Tu era correto? Ela vai fazer o que tu fazia.
— É disso que eu tenho medo.
Eu tomo a palavra:
— Eu tenho uma filha de 30 que sempre foi de uma franqueza estúpida. Hoje está casada, parece feliz.
— E como foi com o primeiro namorado?
— A primeira vez? Não sei. Eu a levava e buscava sempre nas festas. Um dia, ela me disse muito séria que eu estava livre de buscá-la de madrugada, que podia buscá-la de manhã, perto do meio-dia. Pensei: futebol é bola na rede. No outro dia, fui lá, busquei ela e conversamos um monte de abobrinhas. Só isso. Seguimos nossas vidas.
— Tu é muito calmo.
— Não, ela não era de enrolar. Então, eu provavelmente sabia onde ela estava e, se é para acontecer, não há vigilância que funcione. Digo mais: se é para transar, que transe em casa.
— Pra psicólogo tu não serve. Vou pensar nisso uma semana, sou capaz de bater o carro agora.
Ele entrou atrás de um livro para a filha. A menina precisava de “O Monstro do Guaíba”, um bom infanto-juvenil que poderia ser a respeito do prefeito Melo, mas não é.
Tenho a mania de perguntar o nome antes de atender.
— Meu nome é Ismael.
— Bah, que legal!
— Por quê? Por causa da Bíblia? Isso aqui era uma igreja…
— Não, nem sabia da Bíblia. Tem um Ismael também lá?
— Tem, é filho de Abraão, que tinha 86 anos quando ele nasceu.
— Nossa, os caras da Bíblia tinham uma vida sexual bem prolongada.
(risadas)
— Mas de que Ismael tu está falando?
— Do narrador de Moby Dick.
— Não brinca que o narrador do Moby Dick se chama Ismael!
— Sim. E a primeira frase do livro é muito famosa: “Call me Ishmael”. O livro é narrado na primeira pessoa.
— Bahhh… Só conhecia a baleia e o Capitão Ahab. E só de ouvir falar. Vou ter que ler Moby Dick.
Este é Junior Rostirola, pastor evangélico e autor do best-seller “Café com Deus Pai”, livro que deverá ser o mais vendido de 2025. A lastimável figura que o acompanha é, infelizmente, conhecida de todos.
A Livraria Bamboletras tem o orgulho de anunciar que não vendeu nenhum exemplar deste livro este ano. E nem venderá.
Hoje pela manhã, inaugurei uma estratégia de vendas inédita na tua, na nossa Livraria Bamboletras. Adianto que não deu certo. Ou deu.
Desci, liguei os computadores, abri a porta e comecei a responder as mensagens do WhatsApp. Então a Elena desceu e perguntou com um meio sorriso se muitas pessoas já tinham entrado na Livraria. Respondi:
— Pois é, são 10h30 e ninguém entrou.
Ela rebateu:
— Claro, tu não abriste o portão da rua.
Mesmo assim, foi o melhor dia das últimas 3 semanas. Talvez eu tenha descoberto algo novo.
Um muito jovem casal visivelmente apaixonado entra na Livraria Bamboletras. Havia música ao vivo, com a Elena e o Alexandre Constantino tocando Sonatas de Bach para Violino e Teclado. Cheio de risinhos, o casal cuidava mais um do outro do que de livros, literatura ou música.
Ela tinha certa luz, ou seja, parecia inteligente. O garoto era só bonitinho, e passava a toda hora a mão no fugidio bigode, talvez de duro cultivo. Eu o aconselharia a tirar logo aquilo.
Depois, a menina foi se aproximando dos músicos, enquanto o guri vinha falar comigo. Ele perguntou por um livro muito ruim, daqueles que destroem a poesia da coisa. Pediu um mangá ruim. Fiquei triste.
Na saída, ela disse que nunca tinha ouvido aquele tipo de música ao vivo e que estava encantada.
.oOo.
Prognóstico do terapeuta de plantão da Bambo: não dura muito. É muita areia pro carrinho do menino. Nem com duas viagens. Ele e seu bigode ficarão magoadíssimos.
— Quero um livro bem leve, daqueles onde eu possa entrar e ficar. Bem, é muito complicado, né? Se eu entrar e me interessar é porque certamente terá um gatilho. Então queria um livro de crônicas bem… — faz um gesto de leveza, como se fosse voar.
Dou algumas sugestões pensando naquela frase inteligente do gatilho e noto que ela leu quase tudo, inclusive as bigornas. Ela vê um da Martha Medeiros de relatos de viagem e diz:
— É disso que eu preciso.
E encomendou dois livros que, pelo menos um deles, não é nada tranquilo. Eu gosto dos clientes, sabem?
Ontem, eu falava com uma cliente sobre ter “dedo podre”. Ela reclamava do dela, que seria infalível, só apontava porcaria. Sim, o balcão da Livraria Bamboletras é um divã gratuito. O problema é que o terapeuta sou eu.
Mas eu faço o maior esforço. A cliente estava no terceiro relacionamento e foram três “esplêndidos reveses”. Perguntei se ela realmente desejava um relacionamento estável. A resposta foi um sim bem afirmativo.
Então, fiz aquela cara de Freud e — pensando paralelamente que meu segundo casamento fora uma clara manifestação de dedo putrefato (evitei olhar minhas mãos) — disse que a Manuela D’Ávila namorara aquele Maroni, que o Woody Allen e a Mia Farrow apontaram um para o outro, etc.
Depois, resolvi tentar ser inteligente mas só pensava bobagem — que a coisa depende de como a gente se vê (lugar comum), que tudo dependia de um bom período prévio (afinal, ensaiar é bom!), que talvez seja hereditário (caímos na risada…), que é complicado não se deixar levar pelo tesão…
— Não! Um cara feio como o diabo. Nunca tive grande atração por ele.
Foi neste momento que concluí que o caso não era pra mim e desisti da minha carreira como psicólogo.
Estou ouvindo cada um dos meus CDs — são mais de 3 mil — e chegou a vez da Obra Completa para Órgão de meu tio Sebastião Ribeiro, também conhecido como Johann Sebastian Bach (vai ver no dicionário o que significa Bach, vai agora, vai!).
São 12 CDs e eu estou achando muito estranho ouvir órgão às vezes sozinho dentro de uma igreja. Agora chegou uma cliente aqui e falei de minha estranheza para ela. Ela disse que não me achava com cara de pastor. E me olhou nos olhos com tal intensidade que comecei a pensar se ela não teria alguma perversão que incluísse… órgãos, talvez.
Importante dizer que sou uma natureza fiel. E um velho de 67 anos.
O carteiro chega aqui na Livraria e me entrega um embrulho. Fico feliz ao abrir. Era um Nossa Parte de Noite que estava encomendado há séculos. Então ele olha pra mim e diz que eu nunca vou ter Alzheimer. Pergunto por quê.
— Quem ouve música clássica aumenta o número de sinapses.
Dou uma discreta risada.
— A ECT está empregando neurologistas como carteiros?
Ele sorri:
— Eu sei das coisas.
Neurons in the head – flight, neuroactivity, synapses, Neurotransmitters, brain, axons